O CHAMADO PARA EXERCER UM SERVIÇO DE AMOR
Dom Pedro Carlos
Cipolini
Bispo Diocesano de Amparo – SP
Bispo Diocesano de Amparo – SP
Santo
Agostinho escreve que o sacerdócio é um serviço de amor (amoris officium)
porque é um serviço de pastor, é gastar a vida no zelo pelo rebanho que é o
povo de Deus. A caridade pastoral é a pedra de toque da vida sacerdotal bem
vivida, constitui o eixo da espiritualidade do padre diocesano e também a nota
característica da nova evangelização: “Evangelização nova em seu ardor supõe fé
sólida e caridade pastoral intensa…” 2. Deste modo, quem sente no íntimo do
coração o chamado de Deus para seguir a vocação sacerdotal deve se preparar
para o serviço de amor ao próximo no seguimento de Jesus, ou seja, na entrega
da vida. Há necessidade de um período relativamente longo de preparação.
Esta
preparação vai exigir um discernimento contínuo durante o tempo de formação que
inclui a vida no seminário, estudo na faculdade de filosofia e teologia,
trabalho de estágio pastoral, etc. Discernimento para descobrir a vontade de
Deus a respeito da própria vocação, e discernimento para perceber até que
ponto, está correspondendo com sinceridade aos sinais que Deus aponta no íntimo
do coração. “Discernir é separar, selecionar, interpretar e julgar, para escolher
e decidir”3.
Há hoje um
conflito entre vida como projeto pessoal e vida como vocação. A vida como
projeto pessoal coloca o acento na liberdade da pessoa para fazer o que lhe
apraz, e a vida como vocação coloca a pessoa diante do mistério de um chamado
que faz do homem interlocutor de Deus. Daí surge o desafio de harmonizar e
relacionar o projeto pessoal com o chamado de Deus. O período de discernimento
tem como objetivo mostrar que a liberdade pode ser colocada a serviço da causa
do Evangelho, e a vida pode ser descoberta como dom e missão. A vocação é dom
do Espírito Santo, o vocacionado deve aprender a discernir com ajuda da
comunidade, daqueles que a Igreja coloca tendo a missão de ajudar no processo
de discernimento e de formação. São pessoas que tem o “ministério da
orientação”, pessoas espirituais que vão ajudar perceber a qual é a vontade de
Deus.
Daquele que
se sente chamado ao sacerdócio, o período de discernimento e formação vai
exigir muita atenção, disponibilidade e sensibilidade, para perceber os sinais
que serão emitidos a partir do interior. Nesta situação a vida de oração, a
espiritualidade é essencial para iluminar todo o processo de formação em todas
as suas dimensões. “A voz do Senhor que chama não deve ser esperada de forma
nenhuma, como algo que vá chegar de modo extraordinário aos ouvidos do futuro
presbítero. Pelo contrário deve ser entendida e distinguida por meio dos sinais
que diariamente se dão a conhecer aos cristãos atentos, prudentes”.4
Todo jovem
chamado ao seguimento de Jesus na vida sacerdotal, recebe uma grande graça de
Deus, mas ao mesmo tempo esta graça, este dom é exigente. É um chamado que
impõe condições novas de vida, que faz o vocacionado diferente dos outros e
isto às vezes pode pesar. Já no Antigo Testamento se enfatiza a separação,
mesmo a respeito de familiares (Gn 12,1; Is 8,11; Jr 12, 6; 1Rs 19,4). Jesus
vai também ser exigente (Lc 9, 23-24). O seguimento radical de Jesus exige a
opção precisa de perder a vida no dom de si: “é morrendo que se vive”. Esta é a
experiência profunda que o jovem chamado ao sacerdócio deve conseguir fazer,
para ter paz durante o exercício de seu ministério e não ficar à mercê de uma
imaturidade que nunca termina, com seu corolário de indecisões, meias verdades
e decisões incompletas.5
Durante o
período de formação para o ministério sacerdotal, muitos serão os elementos que
vão ajudar o seminarista a consolidar sua vocação e adquirir aquela certeza de
ter sido chamado, aquela intimidade com Jesus Cristo, que vai sustentá-lo por
toda a vida. Gostaria de destacar aqui três elementos que julgo fundamentais,
faço-o a partir da sinalização que nos dá o Concílio Vaticano II. “Ao afirmar o
primado da evangelização, o Vaticano II propõe ao presbítero uma
espiritualidade apostólica, profética e missionária, não só voltada em primeiro
lugar para o culto e a vida interna da Igreja, mas para a missão no mundo e a
convivência fraterna com os leigos (cf. PO n. 9)” 6. Lembremo-nos que somos
hoje recordados de que a Igreja é missionária por sua natureza e quer responder
aos desafios de hoje estando em permanente estado de missão: “A Igreja deve ir
ao encontro de todos com a força do Espírito”.7
Em primeiro
lugar sinalizo o amor à Palavra de Deus. Quem se sente chamado ao ministério
presbiteral deve ser um apaixonado pela Palavra de Deus, pois será o “homem da
palavra”. O papa Bento XVI deixa bem claro a necessidade de se apresentar a
Palavra de Deus aos jovens vocacionados e seminaristas como sendo fonte de
firmeza e sabedoria: “Autênticas vocações para a vida consagrada e para o
sacerdócio encontram seu terreno propício no contato fiel com a Palavra de Deus
(…) Queridos jovens não tenhais medo de Cristo! Ele não tira nada, e dá
tudo. Quem se entrega a Ele, recebe o cêntuplo”.8 O papa recorda ainda que
o estudo destes livros sagrados deve ser como afirma o concílio Vaticano II, a
“alma da teologia”.9 O padre é profeta a serviço de um povo de profetas.
Sem conhecer e assimilar a Palavra de Deus, o padre corre o risco de pregar a
si mesmo e cair na mediocridade.
É a partir
da Palavra de Deus lida, refletida, meditada e rezada, que se fortalece o amor
a Jesus Cristo que é a seiva da árvore da vocação sacerdotal. Ele é a suprema
revelação de Deus: “Se eu te falei já todas as coisas em minha Palavra, que é meu
Filho, e não tenho outra palavra a revelar ou responder que seja mais do
que ele, põe os olhos só nele; porque nele disse e revelei tudo, e nele acharás
ainda mais do que pedes e desejas”.10
Em segundo
lugar sinalizo o amor à Eucaristia. A Eucaristia é fonte e ápice de toda a
evangelização, é o centro da Assembleia Eucarística, o centro da comunidade de
fiéis presidida pelo presbítero.11 Sem a Eucaristia e a vivência do
mistério eucarístico impregnando a sua vida, o presbítero não vai perceber a
dimensão comunitária da Igreja, não vai captar a Igreja como mistério de
comunhão, poderá ser um diretor de consciências, conselheiro atento à vida
íntima das pessoas. Porém, o múnus de pastor não se reduz ao cuidado individual
dos fiéis, mas abarca a formação da comunidade cristã. “Não se edifica, no
entanto, nenhuma comunidade cristã se ela não tiver por raiz e centro a
celebração da Santíssima Eucaristia: por ela há de se iniciar por isso toda
educação do espírito comunitário”12. O padre é sacerdote a serviço de um
povo sacerdotal. Sem o gosto pela liturgia, cujo cume é a celebração
Eucarística, haverá sempre o risco de se tornar um “funcionário do culto” e
podendo ser fonte de desilusão para o povo de Deus.
Há um
contraste entre o fixismo e absolutização de expressões litúrgicas, de um lado
e o descuido e ignorância das normas litúrgicas de outro. Recordo aqui o que
escreve o Papa Bento XVI sobre a Eucaristia e a evangelização das culturas: “A
Eucaristia torna-se critério de valorização de tudo o que o cristão encontra
nas diversas expressões culturais”.13 Assim, é necessário que o
presbítero tenha cuidado, zelo e atenção às normas liturgias, mas também que
tenha abertura para o que nos ensina ainda o papa Bento XVI ao discorrer
sobre Bíblia e inculturação: “A aculturação ou inculturação será
realmente um reflexo da encarnação do Verbo, quando uma cultura, transformada e
regenerada pelo Evangelho produzir na sua própria tradição expressões originais
de vida, de celebração, de pensamento cristão”.14
Em terceiro
lugar o amor ao Reino de Deus que exige o empenho para a construção de uma
sociedade justa e fraterna. Sem alçar o olhar para o que os Evangelhos indicam
como Reino de Deus, corre-se o risco de uma excessiva espiritualização do
ministério presbiteral que, não raro, desemboca no fanatismo ou na idolatria de
lideranças. O Catecismo da Igreja Católica aponta a Doutrina Social da Igreja
como “o desenvolvimento orgânico da verdade do Evangelho sobre a dignidade da
pessoa humana e sobre sua dimensão social. Ela contém princípios de reflexão, formula critérios
de juízo e oferece normas e orientações para a ação em favor do Reino de
Deus”.15
O Papa João
Paulo II foi firme na doutrina, mas não menos firme em apontar a necessidade do
empenho social da Igreja, na busca de defender os princípios de uma ética
evangélica que trabalhe pela promoção integral da vida16. Sua preocupação com a
justiça social nos legou o Compêndio da Doutrina Social da Igreja no qual
podemos ler: “Não menos relevante deve ser o esforço por utilizar a doutrina
social na formação dos presbíteros e dos candidatos ao sacerdócio os quais, no
horizonte da preparação ministerial, devem desenvolver um conhecimento
qualificado do ensino e da ação pastoral da Igreja no âmbito social e um vivo
interesse pelas questões sociais do próprio tempo”.17 A Congregação para
a Educação católica ofereceu indicações e disposições precisas para a correta e
adequada programação do estudo da Doutrina Social da Igreja por parte dos
seminaristas.18 O padre é rei/pastor a serviço de um povo real de
pastores.
Esta tria
munera, que são características, mas também tarefas da Igreja, povo de profetas
(Palavra), sacerdotes (Eucaristia) e Reis/Pastores (Paixão pela justiça do
Reino) devem ser plasmada na vida e na consciência daqueles que estão se
preparando para assumir o ministério presbiteral na Igreja. Um processo
formativo malconduzido, pode tender o formando a fixar-se somente em um destes
itens. Ou privilegiando um em detrimento do outro o que produzirá padres
desequilibrados no exercício de seu ministério: alguns querem se dedicar
somente à Palavra conforme a tradição protestante. Outros com atenção somente
para a liturgia e sacramentos conforme a tradição da reforma tridentina e
outros ainda somente se ocupando da dimensão ética e social da fé caindo muitas
vezes na tentação do secularismo.
Quero
concluir esta reflexão sobre vocação e formação dos futuros presbíteros
recordando as palavras do apóstolo Pedro a Jesus: “Tu sabes tudo Senhor, Tu
sabes que eu vos amo” (Jo 21, 15-17). É o amor profundo por Jesus, Palavra
encarnada, Palavra que se faz pão na Eucaristia para a vida do mundo, que deve
nortear o itinerário de quem deseja tornar-se padre, ou quem já o é. O amor por
Jesus deve ser a explicação do caminhar, a síntese da história de cada um. Este
amor deve ser para o padre a chave de compreensão de toda sua vida e de seu
empenho pastoral. É este amor que dará forças ao padre para exclamar como
Ezequiel; “Andarei à procura da ovelha perdida e reconduzirei ao redil a que se
extraviou, carregarei aquela ferida e cuidarei da que está doente”(Ez 34, 16).
São
oportunas as ponderações do papa Bento XVI sobre a escassez de vocações
sacerdotais que transcrevo aqui e desejaria fossem lidas à luz do que refleti
acima: “A solução para a escassez não se pode encontrar em meros estratagemas
pragmáticos; deve-se evitar que os bispos, levados por compreensíveis
preocupações funcionais devido à falta de clero, acabem por não realizar um
adequado discernimento vocacional, admitindo à formação específica e à
ordenação candidatos que não possuam as características necessárias para
o serviço sacerdotal. Um clero insuficientemente formado, e admitido à
ordenação sem o necessário discernimento, dificilmente poderá oferecer um
testemunho capaz de suscitar noutros o desejo de generosa correspondência à
vocação de Cristo. Na realidade, a pastoral vocacional deve empenhar a
comunidade cristã em todos os seus âmbitos”.19
Enfim, o
desabrochar da vocação sacerdotal e o processo de formação deve ser capaz de
introduzir o futuro presbítero na compreensão do dinamismo do amor cristão, o
qual consiste em abraçar a causa do amor-serviço como caminho para a liberdade,
no seguimento daquele que veio para servir e não para ser servido. É este amor
que sustentará o padre quando ele tiver que segurar nas mãos de Jesus e
caminhar sozinho com Ele.20
Notas
1. Cf. In Iohannis Evangelium Tractatus 123, 5: PL 35, 1967
2. CELAM Doc. de
Santo Domingo n. 28
3. DOMINGUEZ,
L.M.G., Discernir o chamado, a avaliação vocacional, Paulus, S. Paulo,
2010,p.23
4. VATICANO II,
PO n. 11
5. Cf., MANETi,
A., Vocacione, psicologia e gazia, Dehoniane, Bologna, 1981
6. CNBB/CNP –
Comissão Nacional dos Presbíteros (13º ENP/fev. 2010, documento final): “ENPs,
25 anos, celebrando e fortalecendo a comunhão presbiteral – “Eu me consagro por
eles” (Jo 17, 19), Ed. CNBB, 1ª Ed., p. 27
7. BENTO XVI,
Verbum Domini, n. 95. Recorde-se também o apelo à missão feito pelos bispos da
América Latina e Caribe reunidos em Aparecida onde ressoou o apelo a ser
Igreja de discípulos e missionários.
8. Cf. Verbum
Domini n. 104
9. Cf. VATICANO
II, Dei Verbum n. 24 e BENTO XVI, Verbum Domini n. 31
10. S. JOÃO DA
CRUZ, Subida do Monte Carmelo, Livro II – cap. XXII n. 5
11. Cf. VATICANO
II, Presbyterorum Ordinis n. 5
12. Idem n. 6
13. BENTO XVI,
Sacraementum Caritais, n. 78.
14.IDEM, Verbum
Domini, 114
15. Compêndio do
Catecismo da Igreja Católica n. 509; cf. tb., CIC ns. 2419 – 2423
16. O papa João
Paulo II publicou três grandes encíclicas “sociais”; Laborem exercens,
Sollicitudo rei socialis e Centesimus annus. Não deixa de ser tendencioso o
gosto em frisar muito a defesa da ortodoxia por parte do papa João Paulo II,
esquecendo-se da sua relevância na moral (ortopraxis).
17. PONTIFÍCIO
CONSELHO JUSTIÇA E PAZ, Compêndio da Doutrina Social da Igreja,Paulinas, S.
Paulo, 2005, p. 298.
18. Cf.,
Orientações para o estudo e o ensino da Doutrina Social da Igreja na formação
sacerdotal, Itipografia Poliglota vaticana, Cidade do Vaticano, 1988. Não
podemos esquecer que: “O sacerdote constrói a ponte entre Deus e os
homens, mas também as pontes entre os homens”, GRUN A., Ordem, vida sacerdotal,
Loyola, S. Paulo, 206, 15.
19. BENTO XVI,
Sacramentum caritatis, n.25; JOÃO PAULO II, pastores Dabo vobis, n. 41
20. TERESA DE CALCUTÁ,
in KOLODIEJCHUK, B., Madre Teresa, venha seja minha luz, Thomas Nelson Ed, Rio,
2008, p.25.
Fonte: https://www.cnbb.org.br/vocacao-sacerdotal-chamado-para-exercer-um-servico-de-amor/
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