UMA CATEQUESE PARA OS NOSSOS DIAS
"O evangelista Mateus produz sua catequese para ajudar os irmãos de fé a enfrentar os desafios que provinham tanto do ambiente romano quanto do ambiente judaico. Havia, também, problemas gerados no interior da comunidade cristã, como era o caso do autoritarismo dos líderes, a marginalização das mulheres, das crianças e dos considerados pecadores, o enfraquecimento da fé, inclusive dos líderes. Os problemas surgiam de todos os lados", escreve Jaldemir Vitório, S.J., doutor em Teologia Pública pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, professor da graduação e pós-graduação da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE e membro da Comissão de Teólogos Jesuítas da América Latina.
Eis o artigo.
A transmissão e o incentivo à vivência da fé em nossas comunidades constituem–se
em verdadeiros “nós” da ação
evangelizadora. Se, por um lado, o ambiente familiar se torna
sempre menos propício para o cultivo
da fé e da religião, por outro, as comunidades eclesiais são
incapazes de pensar uma pedagogia adequada
no âmbito da catequese. A transmissão de doutrinas ou a insistência em
conteúdos irrelevantes são ainda práticas catequéticas comuns. Somem-se a isso
a catequese oferecida em ambientes que se parecem com salas de aula e a
catequese em função dos sacramentos: catequese de batismo, catequese de primeira eucaristia, catequese de crisma,
como se a vida de fé se reduzisse a esses momentos eventuais e separados.
Os frutos da catequese pensada nesses
termos estão à vista: dificuldade de criar o espírito eclesial-comunitário nos
batizados, ausência
de ardor missionário, proliferação de práticas devocionais
incapazes de gerar uma religião engajada com o projeto de Jesus,
abandono da Igreja e das práticas de fé, transformação da liturgia em encontros
barulhentos sem qualquer espaço para a interioridade, surgimento de gurus,
especialmente os da mídia, como lideranças religiosas. A lista dos malefícios
da catequese proposta
com pedagogia, didática e conteúdos inadequados pode ser largamente estendida.
A catequese do evangelista Mateus, que será
lida nos domingos do Tempo
Comum no próximo ano, contém pistas preciosas para nosso
fazer-catequético, apesar da distância no tempo e no espaço. Seu lugar de origem
foi a comunidade
cristã de Antioquia, naquela época, pertencente à Síria, por volta dos
anos 80. Essa cidade às margens do Mar Mediterrâneo era a sede do Império Romano no Oriente,
de onde se fazia o controle dos povos dominados pelo poder imperial naquela
parte do mundo. A convivência com os romanos suscitava uma série de problemas
para as comunidades
cristãs, de modo especial, no referente ao culto prestado ao
imperador, abominado pelos discípulos de Jesus de Nazaré. A mentalidade imperial,
centrada na violência, na força das armas e no espírito de grandeza,
contrastava-se com o projeto de vida das comunidades cristãs, focado no amor,
no perdão e no serviço ao próximo. Praticar a fé em tal contexto pressupunha
fazer frente ao gigante imperial, com os riscos inerentes dessa opção. Ser
discípulo de Jesus significava optar por uma vida arriscada.
Por outro lado, a comunidade de Mateus passava
por sérias dificuldades no trato com as sinagogas dos judeus. Até aquele momento,
as comunidades cristãs estavam inseridas no ambiente judaico, consideradas como
um movimento a mais dentre as várias correntes do judaísmo. Na catequese de Mateus, o
grupo mais referido será o dos escribas e fariseus, apresentados como inimigos
de Jesus, sempre à espreita para lhe colocar armadilhas, com a finalidade de
pegá-lo em alguma palavra e terem como denunciá-lo seja às autoridades
religiosas seja aos romanos, que mantinham os povos do Oriente sob seu domínio.
A comunidade de Mateus sofria forte
pressão para abrir mão de sua identidade
cristã, correspondente à maneira como Jesus de Nazaré entendia
e vivia a fé judaica, para se submeter às imposições das lideranças da sinagoga
que, naquela ocasião, tentava fazer uma grande reforma no judaísmo, gravemente
golpeado com a destruição do Templo de Jerusalém, no ano 70, pelas tropas
romanas.
O evangelista Mateus produz sua
catequese para ajudar os irmãos de fé a enfrentar os desafios que provinham
tanto do ambiente romano quanto do ambiente judaico. Havia, também, problemas
gerados no interior da comunidade cristã, como era o caso do autoritarismo
dos líderes, a marginalização das mulheres, das crianças e dos
considerados pecadores, o enfraquecimento da fé, inclusive dos líderes. Os
problemas surgiam de todos os lados.
Vejamos dez lições que o Evangelho de Mateus nos
oferece, quanto à pedagogia
catequética nas comunidades cristãs.
1. Fazer catequese a
partir da vivência da fé
Sermão da Montanha, por Jesus Mafa
A primeira lição ensina-nos a
fazer catequese a
partir das questões levantadas pela vivência da fé, de modo especial, nos
momentos de crise, quando é grande a tentação de abandonar tudo e romper com o
projeto Jesus de
Nazaré. Em Mt 24, 12, Jesus alerta para o fato que, “pelo
crescimento da iniquidade, o amor de muitos esfriará. Aquele, porém, que
perseverar até o fim, esse será salvo”. O catequista Mateus não
está interessado em ensinar os irmãos
de comunidade a interpretar a Lei de Moisés, como
faziam os escribas e fariseus, e, sim, uma sabedoria de vida que os permitisse
caminhar com sentido, embora perseguidos.
Só assim poderiam viver a bem-aventurança
da perseguição, sem se deixarem abalar. São para eles estas
palavras de Jesus: “Felizes sois, quando vos injuriarem e vos perseguirem e,
mentindo, disserem todo o mal contra vós por causa de mim. Alegrai-vos e
regozijai-vos, porque será grande a vossa recompensa nos céus, pois foi assim
que perseguiram os profetas, que vieram antes de vós” (Mt 5,11-12). A fidelidade ao projeto de vida abraçado
por causa de Jesus os tornaria como uma casa construída sobre a rocha. “Caiu a
chuva, vieram as enxurradas, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, mas
ela não caiu, porque estava alicerçada na rocha” (Mt 7,25).
2. Transmitir a fé,
narrando a vida de Jesus de Nazaré
Uma segunda lição a ser aprendida com o catequista Mateus consiste em transmitir a fé narrando a vida de Jesus de Nazaré. Sua catequese é construída a partir daquilo que a comunidade conservou e transmitiu da vida e do testemunho do Mestre. Diferentemente dos escribas que tomavam como base a Lei e se punham a interpretá-la, Mateus, possivelmente um escriba que se tornou “discípulo do Reino dos Céus” (Mt 13,52) parte de uma pessoa.
O formato dos evangelhos permite seguir
o itinerário de Jesus, desde o nascimento até a morte e ressurreição, e fazer
dele o catequista do leitor – ouvinte e da comunidade, por meio de suas
palavras e suas ações. A contemplação e a escuta do Mestre, quando feitas com
sinceridade de coração, têm a força de penetrar no coração da pessoa de fé e
transformá-la desde o mais íntimo. Essa pedagogia catequética exige
engajamento de quem faz o percurso da fé, tirando-o da passividade de quem
escuta lições de doutrina, com a finalidade de aceitá-la, mesmo sem
compreendê-la, como exigência das igrejas. Santo Inácio de Loyola fala
de “conhecimento interno de Jesus Cristo”, que podemos contrapor ao
conhecimento externo e superficial ou ao conhecimento puramente racional. Quem
conhece Jesus Cristo internamente, deixa-se moldar por ele, ao escutar seu
convite: “Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29).
3. Insistir na
centralidade do Reino de Deus
A terceira lição que aprendemos de Mateus diz respeito à centralidade do Reino de Deus na catequese. O imperativo “Buscai, em primeiro lugar, o Reino de Deus e sua justiça” (Mt 6,33) corresponde à baliza da vida do discípulo. A expressão Reino de Deus significa o senhorio de Deus na vida das pessoas e da sociedade. Onde o Reinado de Deus acontece não existe espaço para o egoísmo, a violência, as divisões e tantas outras formas de destruição da “imagem e semelhança de Deus” que cada ser humano traz consigo. O Reinado de Deus afasta para longe todo tipo de idolatria, onde as criaturas ocupam o lugar do Criador e impõem sua tirania, de modo especial sobre os mais fragilizados da sociedade. Assim acontece com o ídolo do dinheiro, do poder, do saber, do narcisismo e tantas outras maneiras de afastar Deus do coração humano. A busca continuada do Reino de Deus permite à pessoa de fé conhecer a vontade de Deus e, como Jesus nos ensina a rezar, lutar para que ela “aconteça assim na terra como no céu” (Mt 6,10), ou seja, sempre e em toda parte. Torna-se inútil a catequese cujo efeito primeiro e fundamental não seja o centramento da vida do catequizando no querer divino, conhecido e assimilado, como aconteceu com Jesus de Nazaré, a quem o próprio Deus reconhece como “o meu Filho amado, em quem me comprazo” (Mt 3,17; 17,5). Quem abraça o Reino de Deus e se deixa guiar pela justiça do Reino, como Jesus, torna–se também Filho amado, pela obediência e docilidade ao querer do Pai e seu projeto de amor misericordioso para a humanidade.
4. Mostrar como o
Espírito Santo está presente e age em nossa vida de fé
A quarta lição da catequese de Mateus diz
respeito à presença do Espírito Santo em nossa vida de fé. O Espírito de Deus
está na origem da existência de Jesus de Nazaré, “gerado do Espírito Santo”,
como diz o anjo do Senhor em Mt 1,20. Portanto, no DNA de Jesus estão a santidade e o dinamismo divinos, que o
moverão a agir em conformidade com o querer do Pai, até a morte de cruz. Trata-se
de espírito de ação,
de entrega da própria
vida ao serviço da misericórdia e à prática do bem. O
Espírito de Deus aparecerá por ocasião do batismo, “descendo como uma pomba” (Mt 3,16),
recordando o espírito (ruah)
de Gn 1,1, como se naquele momento acontecesse em Jesus a criação ansiada por
Deus, desde o começo dos tempos. Como nova criatura, Jesus foi investido pelo
Pai nas tarefas do Reino. O Espírito aparece levando Jesus “ao deserto para ser
tentado pelo diabo” (Mt 4,1), e lhe dá força para enfrentar a tentação da infidelidade ao
querer do Pai e se manter firme até a morte de cruz. Quando no final da
catequese, Jesus envia os discípulos em missão, manda-os batizar “em nome do
Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28,19), sublinhando que a vida dos
discípulos do Reino, como a caminhada do Mestre, haveria de ser dinamizada pelo
Espírito de Deus. Por isso, quando estivessem em missão, nos momentos de
apuros, deveriam manter-se seguros “porque não sereis vós que falareis, mas o
Espírito de vosso Pai é que falará em vós” (Mt 10,20). Essa teologia missionária-apostólica do
Espírito Santo deveria ser retomada em nossa catequese,
haja vista uma espécie de pentecostalismo
selvagem que se alastrou em nossas igrejas, sem qualquer
conexão com a catequese
cristã original.
5. Formar discípulos e
discípulas, instruídos pelo Mestre Jesus, que é “manso e humilde de coração”
A quinta lição da catequese de Mateus diz
respeito à formação dos discípulos do Reino. Afinal essa foi a meta visada pelo
evangelista, quando se dispôs a produzir seu evangelho. Ou seja, seu interesse
não consistiu em recuperar a história
de Jesus de Nazaré, pura e simplesmente. Antes, ao falar do
Mestre, seu olhar se voltava para os irmãos e irmãs de comunidade, desafiados
por todos os lados, em sua condição de seguidores de Jesus. O Jesus Mestre de Mateus torna-se,
ele mesmo, o catequista da comunidade, para a qual propõe um projeto de vida, como é
o caso do Sermão da
Montanha (Mt 5–7), traça um projeto missionário (Mt 10),
dá as chaves para compreender como o Reino de Deus acontece na história,
chamado de “mistérios do Reino” (Mt 13), indica como deve ser a vida em
comunidade (Mt 18) e, por fim, ensina como se deve viver no presente, à espera
da plenificação do Reino (Mt 24-25). Esses são os cinco grandes discursos da
catequese de Mateus, nos quais Jesus instrui a comunidade com seus
ensinamentos. Os gestos
do Mestre, por sua vez, completam os ensinamentos das palavras.
Cada um de seus atos, em favor dos pequenos e marginalizados, torna-se lição de
vida para os discípulos. Ao contemplá-los, o discípulo do Reino defronta-se
com o desafio de assimilar um modo de proceder, que será seu distintivo no
trato com todas as pessoas, sem distinção, que cruzarem seu caminho.
Na formação do discipulado, Mateus insiste em
que o discípulo do
Reino deve ter como meta a perfeição do Pai – “Sede
perfeitos, como o Pai dos céus é perfeito” (Mt 5,48) –, no sentido de se
espelhar no modo de proceder de Deus, no trato com os semelhantes. Desta forma,
a “justiça” do discípulo será superior à dos escribas e fariseus (Mt 5,20),
pois terá como foco a misericórdia do Pai, que “quer misericórdia e não
sacrifício”. Está citação do profeta Oséias 6,6 acontece duas vezes no
evangelho de Mateus (Mt 9,12; 12,7), para reforçar que tudo quanto o discípulo do Reino faz
deve ser motivado pela misericórdia,
seguindo os passos de Jesus de Nazaré.
Mateus insiste com os irmãos e irmãs de
comunidade a não seguirem o exemplo dos escribas e fariseus que, em seu tempo,
apresentavam-se como modelo de pessoas religiosas. Nesse movimento, havia
pessoas exibicionistas que, quando davam esmolas, tocavam trombetas em público,
“com o propósito de serem elogiados pelos homens” (Mt 6,2); rezavam “em pé nas
sinagogas e nas esquinas, a fim de serem vistos pelos homens” (Mt 6,5);
desfiguravam o rosto quando jejuavam “para serem percebidos pelos homens” (Mt
6,16). No evangelho, muitas vezes, Jesus chama essa gente de “hipócritas”. Mt 23
concentra uma série de “aí de vós, escribas e fariseus hipócritas”, para
denunciar atitudes que podem acontecer em qualquer comunidade cristã,
inclusive hoje.
De fato, o evangelista está
preocupado com os cristãos hipócritas de sua comunidade que
falam uma coisa e vivem outra. Daí ter mostrado o Mestre Jesus censurando esse
desvio de conduta. O modo de proceder do discípulo tem como padrão o modo de
proceder de Jesus que, em tudo, foi obediente e submisso ao querer do Pai dos
Céus.
(A
Segunda parte deste artigo será apresentado no próximo Domingo).
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