A CPI, a ciência e o realismo cristão
Francisco Borba Ribeiro Neto
Um posicionamento cristão deve procurar sempre conhecer as
duas partes e o conjunto dos acontecimentos
A Comissão Parlamentar de Inquérito
(CPI) da Covid-19, com suas “revelações” (na maioria das vezes apenas
confirmações do que já se sabia), suas jogadas políticas e seus lances
intempestivos, tem sido o principal foco da mídia brasileira nos últimos tempos.
Num dos países com maior número de mortes por Covid-19 no mundo todo, onde as
políticas públicas de enfrentamento à pandemia são continuamente questionadas
por um lado ou outro do espectro político, acabando julgadas no Supremo
Tribunal Federal, todos os esforços para apurar responsabilidades e melhorar a
gestão da saúde pública são bem-vindos.
Infelizmente, todas as questões que
envolvem o Estado tendem a ser instrumentalizadas nos jogos de poder e
espetacularizadas por políticos desejosos de projeção midiática e ganhos
eleitorais. Além disso, frequentemente, nesse contexto, existem dúvidas bem
fundamentadas sobre a idoneidade tanto dos acusados quanto dos acusadores. Essa
situação gera um misto de raiva e frustração, que é compreensível, mas não
ajuda a um posicionamento justo e construtivo na resolução dos problemas ou em
nosso posicionamento político.
A doutrina social da Igreja não pode
responder a perguntas como “as vacinas ou o tratamento precoce são eficazes
contra a Covid-19?”, “houve corrupção na compra de vacinas e outros insumos no
período da pandemia?”. São questões que dependem de análises científicas e de
averiguações policiais. Contudo, a sabedoria da Igreja pode nos ajudar a termos
uma postura mais adequada para avaliar as conclusões vindas da ciência, as
informações obtidas nas investigações e a própria conduta das personalidades
públicas envolvidas.
O bom uso da ciência
Durante os depoimentos dados na CPI,
frequentemente se falou “em nome da ciência” ou se pediu para que fossem
ouvidas “as duas partes da ciência”, como se a informação científica fosse uma
questão de posição num espectro político-ideológico. A ciência é um modo de
conhecermos a realidade, não o único, mas aquele que se mostrou mais eficiente
ao longo da história humana. A própria doutrina católica reconhece o seu valor
nesse sentido, inclusive
no enfrentamento à pandemia de Covid.
Não existem duas ciências. Contudo, seus
resultados se baseiam em dados observados e, caso sejam numéricos, analisados
em termos estatísticos. Quando muitos cientistas, em locais diferentes, estudam
o mesmo problema, certas conclusões podem diferir das demais. Nesses casos,
cabe à comunidade científica se debruçar sobre os resultados diferentes,
compará-los, verificar quais são os mais frequentes e quais as eventuais
explicações para as discrepâncias observadas. Ao longo dos séculos, foram
desenvolvidos métodos rigorosos para realizar essas verificações e os bons
cientistas estão capacitados para aplicar esses métodos e dizerem o que,
provavelmente, está mais correto.
Esse era o caso, por exemplo, dos
tratamentos precoces e do distanciamento social. Alguns resultados pareciam
confirmar a eficácia dos tratamentos precoces, mas o conjunto das pesquisas
realizadas no mundo mostraram que eles não apresentavam os efeitos prometidos.
Os estudos também demonstraram que o distanciamento social não resolvia os
problemas, mas com certeza evitava um mal maior. Nesse segundo caso, outra
questão importante é a do uso adequado das políticas de distanciamento social. Quanto
mais bem feito e consciencioso, mais proteção contra a pandemia e menor seu
custo socioeconômico. Essas constatações não são posicionamentos ideológicos,
mas a aceitação de nosso melhor instrumento para conhecer a realidade.
Ciência e moral
A ciência não nos diz o que fazer,
apenas nos informa sobre as consequências concretas mais prováveis para nossas
ações. A decisão do que fazer é um discernimento ético, que se baseia num
conjunto de fatores, inclusive dos dados científicos. O problema do chamado
negacionismo é a recusa em aceitar a realidade tal qual ela se apresenta nesse
momento. É uma opção moral, ainda que geralmente inconsciente, de colocar a
própria opinião ou o próprio desejo acima da realidade – em clara oposição ao
realismo que historicamente orientou o pensamento católico.
Nesse sentido, é forçoso reconhecer, o
erro do governo não foi ter uma opinião favorável ao tratamento precoce, mas
sim colocar opiniões pessoais, defendidas por leigos ou por uma parcela
minoritária de médicos, acima das conclusões resultantes de avaliações
embasadas nos dados mais completos, tomadas pela maioria dos cientistas
especializados nessas questões. Nada impede uma equipe de pesquisadores de
continuar fazendo pesquisas com o tratamento precoce, mas o gestor público deve
se orientar pelas conclusões mais bem fundamentadas naquele momento. Não se
trata de cientificismo, mas de responsabilidade moral frente ao bem comum.
O circo político
As CPI são um instrumento para que
deputados e senadores possam exercer uma de suas funções, como representantes
do povo, que é a de fiscalizar a administração pública. Nesse sentido, a
existência de uma CPI já indica que o sistema não funcionou adequadamente. Em
primeiro lugar, porque existe uma dúvida minimamente fundamentada sobre o
desempenho do governo. Em segundo lugar, porque representantes do povo terão
que desempenhar um papel próprio da autoridade judicial – e não do legislativo.
Essa “disfuncionalidade” se torna
evidente na tomada de depoimentos nas CPI. Os deputados e senadores não estão
familiarizados com interrogatórios e algumas vezes parecem mais estar se
apresentando num palanque do que inquirindo uma testemunha. Acusados de
corrupção se apresentam como defensores da moralidade pública ao interrogar os
depoentes. A truculência das perguntas muda em função do sexo e da posição
política do interrogado.
Daí a frequente comparação entre as CPI
e um “circo”, um espetáculo para o público, e não uma investigação de
responsabilidades. Trata-se de uma limitação inerente ao sistema democrático em
seu conjunto. É justo trabalhar para que o sistema como um todo se mostre mais
eficiente, demonstrando mais seriedade e construindo melhor o bem comum.
Contudo, não se pode usar essas fragilidades como justificativa para ignorar o
trabalho de fiscalização do poder público ou para pactuar com a impunidade.
O discernimento justo
Diante dessa situação, como a sabedoria
cristã convida a nos posicionarmos? Em primeiro lugar, buscar conhecer a
realidade e não as opiniões. Um perigo latente é o de se orientar pela raiva e
não pela razão. Um colunista bastante conhecido defendeu um dos envolvidos nas
polêmicas sobre a aquisição superfaturada da Covaxin dizendo que sua veemência
era um sinal claro de que dizia a verdade. Ora, esse é tipicamente um argumento
irracional. Significa dizer que se um mentiroso for veemente, suas declarações
se tornarão verdadeiras. A questão, no exemplo, não é a inocência ou a culpa do
político citado, mas a irracionalidade do argumento e o apoio velado a
discursos truculentos. Também temos de nos precaver dos fatos
descontextualizados. De ambos os lados é comum se tomar uma informação isolada
e usá-la para validar toda uma situação. Um posicionamento cristão deve
procurar sempre conhecer as duas partes e o conjunto dos acontecimentos.
O resultado desse processo de discernimento se manifestará quando tivermos que nos posicionar. Pode ser em conversas nas redes sociais, numa consulta pública, no convite a uma manifestação, nas próximas eleições. Somos chamados a ter um olhar realista diante dos acontecimentos, reconhecendo o que mais provavelmente constrói o bem comum, e não nos deixarmos enganar por discursos demagógicos ou ostentações de idoneidade indevidas.
https://pt.aleteia.org/2021/06/27/a-cpi-a-ciencia-e-o-realismo-cristao/
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