sábado, 6 de novembro de 2021

ESPERAR O MUNDO QUE VIRÁ

Perspectivas escatológicas a partir da COVID-19


Por Dom Leomar Antônio Brustolin


INTRODUÇÃO

A Constituição Pastoral Gaudium et Spes (GS), do Concílio Vaticano II, afirmou que “é dever da Igreja investigar a todo momento os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho; para que assim possa responder, de modo adaptado, em cada geração, às eternas perguntas dos homens acerca do sentido da vida presente e da futura, e da relação entre ambas” (GS 4).

A emergência da Covid-19 impactou a forma de ler a realidade, de viver o cotidiano e de esperar o amanhã. Esse “sinal do nosso tempo” precisa ser interpretado à luz do Evangelho, especialmente no que se refere à fé e à esperança cristãs. Isso implica compromisso do cristão com o presente histórico e atenção ao futuro prometido em Cristo, como recorda a Carta Encíclica Spe Salvi (SS): “A fé em Cristo nunca se limitou a olhar só para trás nem só para o alto, mas olhou sempre também para a frente, para a hora da justiça que o Senhor repetidas vezes preanunciara” (SS 41).

Nesse sentido, uma abordagem sobre as possibilidades do futuro pós-pandemia deverá tanto contemplar o horizonte do Eterno, em que a vida não conhece fim, quanto convocar à responsabilidade sobre o momento atual, revisando a relação que se estabelece com a criação. Tudo está interligado, pois a fé cristã supõe uma integralidade até o fim da história, quando, em Cristo, tudo será recapitulado, o que existe no céu e na terra (Ef 1,10).

O cristão celebra o que crê e crê celebrando o cumprimento das promessas de Cristo. O Advento é, por excelência, o tempo litúrgico que mais evidencia a dimensão escatológica da Igreja. Enquanto se prepara a celebração da vinda de Cristo na carne, no Natal, igualmente se espera sua futura vinda gloriosa na parusia:

Naquele tremendo e glorioso dia, passará o mundo presente e surgirá novo céu e nova terra. Agora e em todos os tempos, Ele vem ao nosso encontro, presente em cada pessoa humana, para que o acolhamos na fé e o testemunhemos na caridade, enquanto esperamos a feliz realização de seu Reino (Prefácio do Advento IA, grifo nosso).

1.    PASSA O MUNDO PRESENTE

Nas últimas décadas, diversos fatores influenciaram para que grande parte da humanidade desconsiderasse a finitude, o sentido da vida e a transcendência. Alcançou-se tão alto grau de bem-estar, que parecia desnecessário considerar um horizonte além desta vida que adoece, envelhece e morre. A busca da imortalidade pelas novas tecnologias e a noção de que só o presente deve ser considerado exorcizaram qualquer idéia de que este mundo é finito e a pessoa também o é.

O individualismo, as metas do mercado, o excesso de conectividade e a busca de um desempenho competitivo distraíram o ser humano da essência da vida. Sons, imagens e os mais variados recursos de entretenimento produziram tanta exterioridade, que a vida deixou de ser “espreitada”.

Na correria do cotidiano, a mente ficou embotada, e a consciência, afetada. Muita gente questionava até a necessidade de um Salvador, como apregoa a fé cristã. O mundo, que não se percebia ameaçado nem mesmo diante da crise ecológica, tornou-se surdo aos discursos que reclamavam por maior cuidado e atenção com a vida em todas as suas manifestações.

De repente, um dado novo desconcertou tudo, e o mundo parou. Inesperadamente e, sem preparo, o humano passou a perceber a dimensão de sua vulnerabilidade e finitude. Albert Camus, em seu romance A peste, destaca que “os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Houve no mundo tantas pestes quanto guerras. E, contudo, as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas” (CAMUS, 2009, p. 18).

O vírus da Covid-19, com seu alto grau de propagação, abalou as relações das pessoas e afetou a economia, a política e a cultura. Provocou séria reflexão sobre o sentido de viver e conviver num mundo doente, ameaçado por um inimigo invisível e poderoso. A ocasião leva muitas pessoas a “um momento de preocupação pelo futuro que se apresenta incerto, pelo emprego que se corre o risco de perder e pelas outras conseqüências que acarreta a atual crise” (FRANCISCO, 2020, p. 31).

Padre Raniero Cantalamessa, pregador da Casa Pontifícia, em sua homilia na Sexta-feira Santa de 2020, na basílica de São Pedro – Roma, recordou que a pandemia nos despertou intensamente para o perigo do “delírio de onipotência”. Foi suficiente o menor e mais informe elemento da natureza, um vírus, para recordar a condição mortal da vida humana, e nem o poderio bélico nem a tecnologia bastaram p. ara nos livrar das ameaças e mortes.

Inseguro diante do desconhecimento da nova realidade imposta por um vírus que mata, impotente e incapaz de definir as rotinas, o ser humano precisa lidar com sua condição finita e mortal. Cresceram a difusão de notícias sobre o sofrimento dos agonizantes nos hospitais, as estatísticas sobre o número de mortos e a circulação de imagens de covas sendo abertas em grande escala nas metrópoles. A realidade da morte ficou próxima, entrou nas casas pela mídia e desconcertou protocolos, processos e projetos. A facilidade do contágio e a conseqüente ameaça de morrer pelo vírus assombraram todos. Foi necessário pensar e falar sobre a morte numa sociedade que havia erradicado esse assunto do seu cotidiano.

2.     MORTE FAZ PENSAR

A consciência reprimida da morte mata já em vida e torna o ser humano apático em relação aos outros e a si mesmo, passando a assumir preconceitos contra as novidades e a erguer muralhas ao seu redor. A reflexão sobre a vida não deixa de contemplar o limite e as perdas como ocasião de compreender o mistério da existência em momentos de crise.

A morte traz consigo novas interrogações e discussões que envolvem tudo e todos. “Diante da morte, o enigma da condição humana atinge seu ponto mais alto. O homem não se aflige somente pela dor e pela progressiva dissolução do corpo, mas também, e até mais, pelo temor da perpétua extinção” (GS 18).

É, porém, justamente para exorcizar essa possibilidade que a religião alarga a compreensão sobre a condição mortal da vida humana. A fé se traduz como uma reação à morte de cada ser humano: “a intuição do próprio coração fá-lo acertar, quando o leva a aborrecer e a recusar a ruína total e o desaparecimento definitivo da sua pessoa. O germe de eternidade que nele existe, irredutível à pura matéria, insurge-se contra a morte” (GS 18).

As estatísticas sobre os mortos, o luto reprimido pelo distanciamento social e a possibilidade de não sobreviver suscitam questões escatológicas. O futuro próximo está em questão, e a esperança além da vida também. Na recusa do desaparecimento definitivo, a fé cristã não cria uma teoria ou uma resposta ao problema; ela acolhe a revelação de Jesus Cristo como normativa. Cristo ressuscitado livrou o ser humano da morte com sua própria morte.

3.    SURGIRÃO NOVO CÉU E NOVA TERRA

O destino futuro de todo ser humano não será o fim, mas a vida eterna, que é vida nova que não conhece dor, pranto ou morte. A fé na ressurreição é basilar para todo ensinamento cristão e determina o presente, o futuro, a fé e a esperança de quem crê. Assim, a pandemia fez caírem as “máscaras” de uma fé muito religiosa, mas sem esperança em Cristo. Revelou que, sem uma mística pascal – que passa necessariamente pela cruz e ressurreição –, não há autêntica fé cristã.

A promessa de ressurreição não se restringe ao destino da pessoa, mas abrange o da história e do cosmo igualmente. Na escatologia cristã, a humanidade, a história e toda a criação anseiam pela realização da promessa: “Deus ensina-nos que se prepara uma nova habitação e uma nova terra, na qual reina a justiça e cuja felicidade satisfará e superará todos os desejos de paz que se levantam no coração dos homens” (GS 39). Esperar o Reino que não tem fim implica cuidar da vida, ressignificar o sofrimento e discernir, à luz do juízo de Deus, sobre o hoje da história.

Nesse hoje há muitos questionamentos. Há injustiças cometidas, violências repetidas e urgências omitidas. Os sofrimentos e as mortes não são causados apenas pelo vírus ameaçador, mas também pela falta de informação, pelo descuido dos que ignoram a gravidade do momento, pelas políticas sanitárias equivocadas, pelas escolhas que priorizam o mercado e pelo descaso com os pobres e vulneráveis.

Tudo isso clama por justiça. A escatologia cristã, fundamentada no Evangelho, prevê que todos serão julgados no amor. O juízo envolverá a pessoa, a história e o universo. Esse juízo é esperança e graça.

Se fosse somente graça que torna irrelevante tudo o que é terreno, Deus ficar-nos-ia devedor da resposta à pergunta acerca da justiça – pergunta que se nos apresenta decisiva diante da história e do mesmo Deus. E, se fosse pura justiça, o Juízo em definitivo poderia ser para todos nós só motivo de temor (SS 47).

Cabe considerar que muitas decisões concretas de pessoas e instituições não são pautadas pela verdade, bondade e beleza; são reguladas pelo mal, pelas seduções do Maligno, que tenta e seduz. É, contudo, o ser humano quem cede à opção que mata e fere a vida do outro. Isso se faz tanto em âmbito pessoal quanto social e até ambiental. Toda maldade cometida não será esquecida no juízo universal.

No capítulo 25 do Evangelho de Mateus, estão os critérios do juízo e a sentença já definida pelo Justo Juiz. Cada um deve colocar-se, desde agora, diante daquele momento escatológico que se constrói pelas escolhas realizadas ao longo da vida. Há os benditos e os malditos no juízo. Tudo que for feito ao menor dos irmãos de Jesus será contado como se tivesse sido realizado ao próprio Juiz e Senhor. O futuro se constrói hoje, na fé e na esperança.

Referências bibliográficas

BENTO XVI, Papa. Carta Encíclica Spes Salvi: sobre a esperança cristã (SS). São Paulo: Paulinas, 2007.
CAMUS, Albert. A peste. Rio de Janeiro: Record, 2009.
FRANCISCO, Papa. Vida após a pandemia. Cidade do Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2020.
MENDONÇA, José Tolentino de. Il potere della speranza. Milano: Vita e Pensiero, 2020.

Dom Leomar Antônio Brustolin
é bispo auxiliar de Porto Alegre, doutor em Teologia, professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), membro da Comissão de Doutrina da Fé da CNBB. E-mail: leomar.brustolin@pucrs.br

(CONTINUARÁ NO PRÓXIMO DOMINGO...)

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