por Michelle Vaz
A filosofia greco-romana teve como preocupação central a busca da felicidade. Agostinho tomou o mesmo objeto para análise, contudo, com algumas mudanças na visão da eudaimonia: mudanças com relação ao lugar e ao método para alcançar a felicidade. Ademais, a filosofia não é vista pelo pensamento agostiniano como um fim em si mesma, ela passa a ser um meio, é o “porto”. A busca pela eudaimonia é um problema que passa por toda a obra do Bispo de Hipona. De acordo com Agostinho, a razão para filosofar é a felicidade e esta é algo imanente ao homem. Sendo assim, a felicidade faz parte de sua natureza. Destarte, as perguntas componentes da obra A vida feliz, de Agostinho, são sobre onde está a felicidade, como e onde o homem pode ser feliz. São a esses problemas que Agostinho tenta responder ao longo desse diálogo.
Devido à importância
dessas questões, tanto no pensamento greco-romano quanto no pensamento de
Agostinho, temos por objeto, no presente trabalho, a análise do segundo momento
do diálogo A vida feliz. Neste ponto do diálogo – do parágrafo 10 ao 12 –
Agostinho faz um itinerário argumentativo, juntamente com seus discípulos, com
a finalidade de descobrir qual é o bem que a alma deve ter posse para ser feliz
e quais são as maneiras de a alma obter esses bens.
Agostinho busca saber
qual é o alimento necessário à alma e questiona seus interlocutores se aquele
não seria a ciência, o conhecimento. Mônica – mãe de Agostinho – responde à
questão afirmando que o alimento da alma não é outra coisa senão a ciência e o
conhecimento das coisas. É das especulações e pensamentos que a alma se
alimenta. Assim, os homens ignaros encontram-se em jejum, famintos já que estão
vazios de ciência e cheios de maldades e vícios.
Agostinho fala sobre a
falta de alimento para a alma dizendo que, assim como o corpo, a alma, quando
privada de alimento, fica exposta a doenças acarretadas por suas carências. A
isso chama de malignidade – nequitia – a qual é caracterizada pela filosofia
agostiniana como uma decomposição, como raiz de todos os vícios porque é o
nada, o vazio.
A ignorância da alma é
identificada com a perversão moral e isso implica uma relação entre
conhecimento e moral devido ao fato de que estes não existem de modo isolado.
Já sabendo que a alma viciada possui nequícia, especula-se qual o nome da
virtude possuída pela alma nutrida de ciência: esta virtude é a frugalidade. A
frugalidade é o oposto da nequícia, é uma virtude que evoca fecundidade. Já a
nequícia relaciona-se à esterilidade. Agostinho afirma que a virtude deve ser
associada ao que é idêntico a si mesmo, ao que é imutável, enquanto o vício é
associado ao mutável: “Quando existe algo que perdura, se mantém, não se altera
e sempre fica semelhante a si mesmo, aí está a virtude” (AGOSTINHO, II, 8).
A frugalidade, segundo o
filósofo, é o elemento mais belo da virtude, é uma virtude dos que tem a alma
plena, preenchida de conhecimento. Não obstante, nota-se que plenitude e
frugalidade são duas noções indissociáveis da filosofia agostiniana: a alma
virtuosa é plena de modo necessário. O mesmo ocorre para a relação existente
entre a nequícia e o nada: a alma viciada é vazia. Conforme se pode notar nesta
parte da obra, a investigação acerca do alimento da alma ocorre partindo de um
critério de imutabilidade, pois Agostinho encontra-se a elaborar um conceito de
alma imaterial e, dessa forma, o alimento desta também deve ser imaterial e
imutável. O vício é tomado como o nada que triunfa, como mutável. A virtude,
por sua vez, é a identidade, não perece, é imutável. O elemento de maior
importância e belo da virtude é a frugalidade (ou temperança). A obtenção da
virtude é de suma importância, pois “virtude é o que confere à alma sua
perfeição e a torna boa” (GILSON, 2007, p. 24).
Agostinho finaliza o
oitavo parágrafo afirmando que saber que a alma possui alimentos saudáveis e
insalubres, é o caminho para se buscar a felicidade. São oferecidos alimentos
para a alma e para o corpo no dia de seu aniversário. Todavia, o alimento para
a alma só será servido se todos os presentes no diálogo tiverem apetite dele. O
primeiro momento do capítulo II – o que corresponde ao primeiro dia do diálogo
– tem seu desfecho quando Agostinho relaciona a metáfora alimentar com a data
de início do diálogo.
Após relacionar a nutrição do corpo e da alma com os alimentos oferecidos – tanto para a alma quanto para o corpo – no dia de seu natalício, é estabelecida uma relação entre o alimento da alma e felicidade. Ao buscar no que consiste a felicidade, depara-se com o critério de imutabilidade do alimento da alma. Agostinho questiona aos seus interlocutores se quem não tem o que quer é feliz. A resposta é negativa, pois nem todos que tem o que querem são felizes. Assim, a questão é invertida por Agostinho: quem tem o que quer será feliz? Sua mãe responde positivamente, desde que o que se possui e se quer seja o bem. Mônica alcança o cume da Filosofia, segundo Agostinho, ao afirmar o mesmo que Cícero na obra Hortensius – obra esta responsável pelo despertar de Agostinho para a Filosofia.
Ademais, Cícero afirma que não é suficiente possuir qualquer coisa
desejada para ser feliz. O homem é mais infeliz quando deseja algo que não
convém do que quando não tem o que deseja. Neste momento do diálogo, Licêncio
toma a palavra e pede ao aniversariante que diga quais as coisas necessárias
para se alcançar a felicidade e quais as coisas que se pode desejar para chegar
até a mesma. Agostinho não responde à questão devido ao fato que muitos
problemas serão examinados até que se possa afirmar no que consiste a
felicidade.
Agostinho retoma os
resultados obtidos até então: 1) ninguém pode ser feliz sem possuir o que
deseja; 2) possuir o que se deseja não é garantia de felicidade. Eis aqui um
impasse. Para resolvê-lo, Agostinho afirma que é necessário descobrir o que o
homem deve possuir para ser feliz e Licêncio buscava descobrir o que é
conveniente de se desejar. Já que a felicidade deve conter um bem do qual sua
existência depende, faz-se necessário que esse bem não seja mutável, que não
desapareça para garantir a existência da felicidade: “Se alguém quiser ser
feliz, deverá procurar um bem permanente, que não lhe possa ser retirado em
algum revés de sorte” (AGOSTINHO, II, 11). O critério de imutabilidade da vida
feliz é aceito por todos, exceto por Teodósio.
Para ser verdadeiramente
feliz, afirma Agostinho, não se pode temer perder a felicidade. A vida que se
norteia pela posse de bens frágeis, perecíveis, não pode ser feliz, porque se
tem medo de perder a felicidade e; pelo fato de as coisas relativas serem
marcadas pela insaciabilidade e pela incompletude, a posse de bens frágeis
nunca será satisfatória: sempre há de se desejar mais, algo além do que se
possui. A consequência disso é a infelicidade, haja vista que não há
estabilidade necessária para a plenitude. Deve-se ter em mente que plenitude e
felicidade se ligam intrinsecamente porque “A plenitude é absolutamente
necessária à felicidade” (GILSON, 2007, p. 21), também por ser o oposto da
carência e da miséria.
Na sequência do diálogo,
é afirmado que o que tem a capacidade de tornar o homem feliz não é a posse de
um bem externo a ele, mas sim a posse de algo incorpóreo que possua a mesma
natureza da alma. A virtude apresenta-se, pois, como imutável e o bem buscado
para se alcançar a felicidade deve ser visto como o que não pode ser retirado
do homem quando há uma reviravolta em sua sorte. Agostinho conclui que é feliz
quem possui um bem imutável. Esse bem imutável é Deus. Assim, é feliz quem
possui a Deus.
Com a conclusão de que é
feliz quem possui a Deus, surge uma nova questão: quem possui a Deus? Três
respostas são dadas: 1) possui a Deus quem vive bem; 2) possuí a Deus quem faz
o que Ele quer que se faça; 3) Possui a Deus quem não possui em si um espírito
imundo.
A verdadeira felicidade está e só pode ser atingida em Deus. Desse modo, Agostinho diferencia seu pensamento do pensamento da filosofia antiga por ter como fundamento último do eudaimonismo o sobrenatural. Fica, portanto, claro que a busca da felicidade é a busca de Deus. Deus é o único que pode dar estabilidade ao homem. O filósofo busca a verdade com a finalidade de ser feliz. A felicidade encontra-se na posse da Verdade-Deus.
Somente ao encontrar Deus, o homem encontra a sua
felicidade. Vale ressaltar que a felicidade “encontra-se no próprio homem, na
sua interioridade, não em um sentido panteístico, mas como imanência/
transcendência, quando Deus revela-se ao homem enquanto Verdade” (COSTA, 2012,
p. 25). Todavia, a questão acerca de quem entre os homens possui Deus é deixada
para o segundo dia do diálogo.
Referências Bibliográficas:
AGOSTINHO.
A vida feliz. Col. Patrística, 11. São Paulo: Paulus, 1998.
COSTA, M. R.
N. 10 lições sobre Santo Agostinho. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
GILSON, É. Introdução ao estudo de Santo Agostinho. São Paulo: Discurso Editorial; Paulus, 2006.
https://www.psicologiamsn.com/2012/11/santo-agostinho-e-a-vida-feliz.html
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