O Mal da Hipocrisia
Mons. José Maria Pereira
No Evangelho (Lc 6, 39 – 45) escutamos
a Palavra de Deus, aparentemente muito clara: um cego não pode guiar outro
cego; por que vês o cisco no olho do teu irmão… ?; não existe árvore boa que dê
frutos ruins. O texto nos parece compreensível e óbvio; mas a compreensão que a
Liturgia nos fez invocar é outra: não é tanto no que se refere à inteligência,
mas o que se refere ao coração; não é tanto um entender quanto um compreender,
isto é, abraçar com todo o ser, tornar nossas as palavras. Ao “foi dito” Jesus
opõe agora seu revolucionário “mas eu vos digo”, que cumpre e transforma, ao
mesmo tempo, a lei antiga. A vós que escutais, eu vos digo…: assim começa a
falar Jesus naquele dia (Lc 6, 27) e assim nos fala agora também a nós. O que
nos diz exatamente?
Jesus mostra aqui que dirige a seus
discípulos uma série de advertências que, em outras passagens, tinha dirigido,
com tom de admoestação, aos fariseus. Foi contra os fariseus que exclamou:
”Deixai-os; são guias cegos de cegos. E, quando um cego guia outro cego, ambos
cairão num buraco” (Mt 15, 14); foi aos fariseus, sobretudo, que em várias
oportunidades Jesus gritou seus hipócritas! E eis que hoje esta terrível
exclamação, “Hipócritas”, a encontramos num discurso dirigido a seus discípulos
e, portanto, também a nós: Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho, e
então poderás enxergar bem para tirar o cisco do olho do teu irmão.
Jesus Cristo põe uma dupla comparação:
a da árvore que, se é boa, dá frutos bons, e a do homem que fala das coisas que
tem no coração. “O tesouro do coração é o mesmo que a raiz da árvore – afirma
São Beda –. A pessoa que tem um tesouro de paciência e de perfeita caridade no
seu coração produz excelentes frutos: ama o seu próximo e reúne as outras
qualidades que Jesus ensina: ama os inimigos, faz o bem a quem o odeia, abençoa
a quem o amaldiçoa, reza pelo que o calunia, não se rebela contra quem lhe bate
ou o despoja, dá sempre quando lhe pedem, não reclama o que lhe tiraram, deseja
não julgar e não condenar, corrige com paciência e com carinho os que erram.
Mas a pessoa que tem no seu coração um tesouro de maldade faz exatamente o
contrário: odeia os seus amigos, fala mal de quem o ama, e todas as outras
coisas condenadas pelo Senhor”.
Ensina São João Crisóstomo: “Brilhe a
vossa luz, ou seja, haja grande virtude, haja fogo abundante, brilhe uma luz
inefável, porque, quando a virtude alcança esse grau, é impossível ficar
definitivamente oculta… Nada torna o homem tão ilustre, por mais que o queira
ocultar, do que a prática de virtude” (Comentário ao Evangelho de São Mateus,
15, 7-8).
Se fizermos um exame de consciência
sincero e deixar-nos julgar pelo Evangelho, seremos obrigados a admitir, por
mais que nos desagrade, que somos todos uns hipócritas.
Nós, cristãos, só
contribuiríamos para perpetuar o erro de querer tirar o cisco do olho alheio,
sem remover a trave do nosso, se nos limitarmos a fazer um discurso sobre a
hipocrisia da sociedade ou da Igreja sem descer nunca a nós mesmos e à nossa
multiforme hipocrisia. Uma sociedade hipócrita é o resultado de indivíduos
hipócritas, como um lago poluído é o produto de tantas gotas de água suja. No
livro Eclesiástico, o Senhor exorta-nos exatamente sobre esta autocrítica muito
pessoal: “Quando a gente sacode a peneira, ficam nela só os refugos; assim os
defeitos de um homem aparecem no seu falar” (Eclo 27, 5). Percorramos o
Evangelho para ver quais são, de acordo com Jesus, as manifestações principais da
hipocrisia e para ver se estas não se encontram, por acaso, todas, ora mais ora
menos em nossa vida.
Hipócrita é aquele que continuamente
acha motivo para falar dos outros, a começar, talvez, do amigo mais íntimo, e
nunca se pergunta se aquilo que detesta nos outros – a vaidade, o egoísmo, a
avareza, a falsidade, a mesquinhez – não se encontra, em medida ainda maior,
nele mesmo! Hipócrita – conforme diz Jesus, num outro contexto – é quem impõe
aos outros obrigações morais muito pesadas, que pretende que os outros não se
queixem, que não avancem reinvindicações, que nunca digam estar cansados, porém
reconhecendo, em todo momento, todos estes direitos para si mesmo (Mt 23, 4).
Hipócrita – ainda de acordo com o que
diz Jesus – é quem paga o dízimo das pequenas colheitas, mas não dá importância
alguma às coisas realmente importantes da lei: a justiça com os pobres, a
misericórdia e a fidelidade (Mt 23, 23). Aqui, realmente, nos descobrimos todos
parentes próximos dos fariseus. Quantos cristãos pensam estar em dia diante de
Deus porque pagam o dízimo da hortelã, do endro, isto é, porque dão uma oferta,
talvez miserável, ao pároco que passa benzendo as casas, porque acendem, de vez
em quando, uma vela a Santo Antônio, porque financiam uma obra pia, mas não se
põem nunca o problema se são justos com a família, com os próprios dependentes,
se não devoram também eles as casas das viúvas, impondo condições de
aluguel intoleráveis, se exercem, de fato, a misericórdia com as pessoas e a
fidelidade com Deus.
Falando da esmola e
da oração, Jesus coloca às claras a raiz última e a mola da hipocrisia, que é a
de ser vistos pelos homens: Quando deres esmola, não o anuncies a toque de
trombeta, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas para serem
elogiados pelos homens. Em verdade vos digo: já receberam sua recompensa.
Quando orardes, não façais como os hipócritas, que gostam de orar de pé nas
sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade
vos digo: já receberam sua recompensa (Mt 6, 2.5).
O que é a hipocrisia?
É uma tentativa para ludibriar a Deus; é a falsidade do coração, a ilusão de
contentar a Deus com as aparências, quase se iludindo de que Ele possa se
enganar e tomar por coisa boa o que não é. Entre os homens, é uma atitude que
nós chamamos de astúcia, esperteza, duplicidade. O hipócrita é, no fundo, um
falsário, alguém que tenta pagar a Deus com moeda falsa, alguém que O honra com
os lábios enquanto seu coração está longe de Deus (Mt 15, 8).
Sobre os hipócritas,
o Evangelho pronuncia a mais terrível das ameaças: Já receberam sua recompensa (Mt
6, 2). Como se dissesse: Deus não lhes deve mais nada. Quando esta é uma
atitude consciente e deliberada, este é, deveras, um pecado terrível; é, na
prática, um ateísmo, porque significa crer num Deus que tem olhos, mas não vê,
tem ouvidos, mas não ouve; é esquecer que o Deus bíblico é um Deus vivo e santo
que perscruta os corações e lê os pensamentos antes que se formem na mente. São
Paulo tem estas palavras de fogo: Não vos enganeis: de Deus não se zomba. O que
o homem semeia, isso mesmo colherá (Gl 6, 7). A hipocrisia é, por isso, antes
de tudo, uma ingenuidade, uma insensatez, uma mentira de pernas curtas,
destinada a ser desmascarada já nesta vida.
A Palavra de Deus nos
conduziu a uma salutar autocrítica; dela deve despontar em nós um desejo
intenso de ser de verdade “honestos com Deus”! Quando, no fim do Pai-Nosso,
dizemos hoje: “Livrai-nos do mal”, é deste mal que devemos pedir a libertação:
do mal da hipocrisia.
Que a Virgem Maria nos ajude em nossa conversão diária! Ser guia, ajudar as pessoas com dificuldade no caminho, supõe enxergar bem. Em vez de criticar e querer corrigir os outros, os seguidores de Jesus trabalham sobre os próprios defeitos e limitações. É este o testemunho que dão ao mundo, corrigindo em si mesmos também os problemas que veem nos outros.
https://www.presbiteros.org.br/homilia-do-mons-jose-maria-pereira-viii-domingo-do-tempo-comum-ano-c/
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