A Filosofia cristã de Agostinho
Por Sávio Laet de Barros Campos (*)
Agostinho opunha à filosofia dos gentios uma filosofia cristã, a qual era, para ele, a única verdadeira. A Juliano, ele dizia: : “Por favor, não seja para ti de maior valor a filosofia dos gentios que a nossa cristã, única filosofia verdadeira, pois esta palavra significa estudo ou amor à sabedoria”41. No De Civitate Dei, a lógica que o levara a fazer tal asserção é assaz simples: o filósofo não é senão o amante da sabedoria. Agora bem, Deus é a própria sabedoria. Ora, o único Deus verdadeiro é o Deus dos cristãos. Logo, só os cristãos amam a verdadeira sabedoria. Donde só eles podem reivindicar, com justeza, o título de filósofos. 42
Ora, então a filosofia só surgiu com o cristianismo? Decerto que não. Entretanto, os filósofos pagãos só cultivaram a verdadeira sabedoria naquilo que ensinaram consoante a fé cristã, isto é, naquelas sentenças que se coadunam com a verdade cristã. Destarte, Agostinho reconhecia, ao lado dos profetas (aos quais tomava como “filósofos” por excelência), outros que, inobstante não terem alcançado a verdade plena, conseguiram acercar-se dela, embora apenas parcialmente. No De Civitate Dei, ele pondera: Todas as verdades que entre seus erros alguns filósofos chegaram a discutir e se esforçaram em persuadir com esmero (...) tudo isso foi pregado ao povo na Cidade de Deus por boca dos profetas, sem argumentos e sem disputas. Para eles (O povo de Israel), eram esses os filósofos, quer dizer os amigos da Sabedoria, seus sábios, seus teólogos, seus profetas e seus doutores em piedade e em probidade.43 Não é difícil imaginar a razão pela qual Agostinho identificava a religião cristã com a verdadeira filosofia e os seus profetas com os verdadeiros sábios.44 Com efeito, ele viveu numa época em que a ascese e a contemplação eram apanágio de uma filosofia que aspirava a ser “salvífica”. A filosofia pagã do tempo de Agostinho, sobretudo de cunho neoplatônico, se esforçava para proporcionar aos seus sequazes, por meio de uma mística especulativa ascendente, a libertação das suas almas do cárcere corporal, tão inquinado às paixões e à dispersão. Ora, para o nosso pensador, semelhante salvação só se encontrava no cristianismo. Só o cristianismo poderia tornar a alma verdadeiramente livre. Só ele poderia dar a conhecer, sem rastros de erros, o caminho da salvação, que é Cristo. Ademais, o cristianismo, contrariamente às demais seitas filosófico-religiosas, não reservava esta salvação apenas a uma casta, mas colocava-a ao alcance de todos. Eis a clássica passagem na qual Agostinho retoma o itinerário do filósofo pagão Porfírio, mostrando como ele aponta para a religião cristã que, contudo, não descobriu:
Assim, não o satisfazia o que com tanto esmero aprendera a respeito da libertação da alma e lhe parecia, ou melhor, parecia a outros, que o conheciam e professavam. Quando afirma que nem mesmo da filosofia mais verdadeira teve conhecimento de seita que contenha o caminho universal para a libertação da alma, parece-me demonstrar, à evidência, que a filosofia em que filosofou não era a mais verdadeira ou não continha a referida senda. Como pode, é claro, ser a mais verdadeira, se não contém semelhante senda? Pois que outra senda universal existe para a libertação da alma, senão a que livra todas as almas e, sem ela, nenhuma se livra? (...) Essa é a religião cristã, que contém o caminho universal para a libertação da alma, porque por nenhum, senão por ele, pode ver-se livre.45 Sem embargo, Agostinho estava tão certo de que a religião cristã é a única fonte da verdadeira sabedoria, que afiançava aos seus leitores que, se todos os grandes filósofos do passado voltassem à vida e tivessem a oportunidade de conhecer a doutrina cristã, deveras não pestanejariam em lançar fora todas as asserções errôneas que fizeram, ou seja, todas aquelas doutrinas que propugnaram e que não se conjugam com a fé e a religião cristã, a fim de se fazerem cristãos: Portanto, se aqueles filósofos pudessem voltar à vida conosco, reconheceriam, sem dúvida, a força da Autoridade, que por vias tão simples operou a salvação da humanidade e – mudando algumas palavras e sentenças – ter-se-iam feito cristãos, como vimos que se fizeram muitos platônicos modernos de nossa época.46
Agostinho,
no célebre Sermão 43, expressa numa fórmula perfeita esta dupla atividade da
razão que funda a filosofia cristã sobre a qual discorremos acima: “(...)
compreende para crer, crê para compreender (intellige ut credas, crede ut intelligas)”47.
Com efeito, compreendendo aquilo em que se deve crer, cremos48 e, crendo,
podemos compreender aquilo em que cremos. Se, por um lado, é preciso partir da
fé; por outro, é dever de quem crê, buscar inteligir aquilo em que crê, pois a
inteligência não elimina, antes, clarifica a fé. 49 De sorte que fé e razão se
complementam50, porquanto se “A fé busca, o entendimento encontra” 51. Aliás,
na vida eterna, a fé dará lugar à visão, como a esperança à posse, pois só a
caridade permanecerá e será robustecida.52 Sendo assim, o filosofar na fé é uma
espécie de prelibação da visão da glória. O entendimento é, pois, o
intermediário entre a fé e a visão. Ele advém qual recompensa para quem creu:
“O entendimento é uma recompensa da fé”53, “A fé é um mérito e o entendimento é
um prêmio”54. Neste sentido, ainda no Comentário ao Evangelho de João,
Agostinho afirma: “(...) o entendimento é um fruto da fé”55. E este
entendimento só será pleno na Pátria. Por ora, vivemos numa espécie de
interstício entre a fé e a visão, que consiste em procurar inteligir o conteúdo
da fé. Todavia, permanece como uma das “indeterminações agostinianas”, até onde
vai esta inteligência que pressupõe a fé e que consiste na tentativa de
entendê-la. Será que ela chega a pretender obter as “rationes necessariae” dos
artigos de fé, post fidem? Em Agostinho, há passagens e passagens. Uma delas,
no De Vera Religione, inclina-nos a pensar que a resposta à questão por nós
levantada seja positiva. Diz Agostinho: De onde resulta que as verdades, nas
quais primeiramente acreditamos, fiando-nos na autoridade, tornam-se depois
compreensíveis (pela reflexão), até nos parecerem certíssimas.56 Em outras
passagens, o Doutor de Hipona afirma de forma tão veemente a inefabilidade
divina, que tendemos a pensar que ele não tenha nunca defendido que, post
fidem, pudéssemos chegar às “rationes necessariae” dos artigos de fé. Numa
destas passagens, no De Ordine, Agostinho ressalta que, com relação a Deus,
“(...) se conhece melhor ignorando”57 e, noutra passagem do mesmo diálogo, diz
que, no que toca a Deus, “(...) não há nenhum conhecimento na alma a não ser
saber até que ponto o desconhece”58 . De qualquer forma, é certo que não há um
“racionalismo” em Agostinho, pois sempre se trata de um intelecto fecundado pela
fé e pela graça, vale dizer, de um intellectus fidei. Ele mesmo admite: “(...)
reconhecemos que caminhamos pela fé e não pela clara visão (...) se não
caminharmos pela fé, não poderemos chegar à clara visão (...)”59. Deveras
também não há um “ontologismo” agostiniano, pois a visão de Deus em si mesmo,
em sua essência, pertence apenas aos bem-aventurados. De fato, no que tange às
verdades de fé, “(...) compreender perfeitamente consiste na visão sempiterna
de Deus”60, a qual apenas aos celícolas é acessível. Contudo, parece perdurar
uma certa indeterminação entre o que pertence à filosofia e o que pertence à
teologia no Bispo de Hipona, talvez porque esta demarcação nem fosse um
problema para ele. Gilson acena para isto: Não se poderia levantar uma lista de
verdades, na qual algumas seriam, para ele, essencialmente filosóficas,
enquanto outras seriam essencialmente teológicas; pois todas as verdades
necessárias à beatitude, fim último do homem, estão reveladas nas Escrituras;
em todas, sem exceção, pode-se e deve-se acreditar. Por outro lado, não há
sequer uma entre elas de que a nossa razão não possa obter alguma inteligência,
contanto que a isso se dedique, e, ao fazê-lo, o pensamento funciona como razão
– já que a fé não mais intervém a título de prova, mas somente a título de
objeto.61 Tudo se passa como se, a totalidade das verdades que, ante fidem,
assentimos por autoridade, post fidem pudéssemos descobri-las, alcançando-as
segundo a medida de nossas forças pela razão, sem, contudo, esgotá-las, visto que
elas têm Deus por objeto: “Todas as verdades reveladas podem, ao menos em certa
medida, ser conhecidas; nenhuma poderia se esgotada, já que elas têm Deus como
objeto”62. Agora bem, se, como havíamos dito, por filosofia cristã, Agostinho
entende justamente esta tentativa de a razão inteligir o que havia crido, e
que, ademais, esta especulação acerca do credo, torna-se, em Agostinho, como
que um antegozo da visão face a face, temos que, na filosofia cristã do nosso
filósofo, encerra-se a verdadeira religião. Raciocinando de outro modo,
chegamos à mesma conclusão. Com efeito, se, conforme também já assinalamos, a
verdadeira religião consiste no esforço de tentarmos chegar à inteligência do
que cremos, posto que a beatitude eterna, nosso fim último, consiste na visão
de Deus e não na fé, temos novamente que, a filosofia cristã de Agostinho é a
verdadeira religião. Gilson é contundente ao constatar isso: Uma filosofia que
quer ser um verdadeiro amor pela sabedoria deve partir da fé, da qual será
inteligência. Uma religião que se quer tão perfeita quanto possível, deve
tender à inteligência a partir da fé. Assim entendida, a verdadeira religião é
a verdadeira filosofia e, por sua vez, a verdadeira filosofia é a verdadeira
religião. A isso Agostinho chama de “filosofia cristã”, ou seja, tal como ele a
entende, uma contemplação racional da revelação cristã (...). 63 A filosofia,
que seja verdadeira e, por assim dizer, autêntica, não tem outra função senão a
de ensinar o que seja o Princípio sem princípio de todas as coisas e a
imensidade do Intelecto que nele reside e o que daí se originou para nossa
salvação sem nenhum detrimento para ele, a quem os veneráveis mistérios nos
ensinam ser um único Deus onipotente e que ele é uma Trindade Poderosa, Pai e
Filho e Espírito Santo (...).64 De qualquer maneira, o certo é que “(...) se
crê e se ensina como fundamento da salvação humana que estejam concordes: a
filosofia – isto é, a procura da sabedoria – e a religião”65 . De qualquer modo
também, o que parece claro em Agostinho, ratificamos, é que não existe em seu
pensamento uma nítida distinção entre teologia e filosofia, uma vez que para
ele a própria filosofia seria uma teologia. No De Ordine, Agostinho chega a
dizer que a filosofia possui tão somente duas questões, a saber, “(...) uma
concernente à alma, outra a Deus (...)”66.Ora, no De Civitate Dei, ele define a
teologia como sendo uma palavra grega que significa “(...) razão ou discurso
sobre a divindade”67. Logo, se a filosofia tem por objeto a Deus, ela também é
uma teologia. Ademais, se, de acordo com o que vimos, a filosofia possui um
discurso sobre Deus que se estende até a tentativa de intelecção dos próprios
mistérios cristãos, podemos dizer que, em Agostinho, há uma filosofia cristã
que é, também ela, uma teologia cristã.
____________
41
AGOSTINHO. Réplica a Juliano. IV, XIV, 72. Disponível em: Acesso em:
24/10/2007. (A tradução para o português é nossa). Referindo-se a esta
filosofia, diz Agostinho no Contra Academicos: AGOSTINHO. Contra os Acadêmicos.
III, XIX, 42: “Mas foi necessário que passassem muitos séculos e discussões
para que se elaborasse, segundo julgo, um só sistema de filosofia perfeitamente
verdadeira. Esta filosofia não é a deste mundo, que nossos mistérios com toda a
razão abominam, mas a de outro mundo inteligível (...)”.
42
AGOSTINHO. A Cidade de Deus. 7ª ed. Trad. Oscar Paes Lemes. Rio de Janeiro:
Vozes, 2002. VIII, I: “O nome ‘filósofo’ traduzido ao português, significaria
‘amor à sabedoria’. Pois bem, se a sabedoria é Deus, por quem foram feitas todas
as coisas, como demonstram a autoridade divina e a verdade, o verdadeiro
filósofo é aquele que ama a Deus.” 43 AGOSTINHO. A Cidade de Deus. 4ª ed. Trad.
Oscar Paes Lemes. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2001. XVIII, XLI, 3. 44 No De
Vera Religione, Agostinho rejeita a todos os religiosos que não são filósofos
em seus atos de piedade e a todos os filósofos que não religiosos no seu
filosofar: AGOSTINHO. A Verdadeira Religião. 7, 12: “Deixemos, pois de lado: –
todos os que não são nem filósofos em sua prática religiosa, nem religiosos em
sua filosofia (...)”.
45
Idem. Ibidem. X, XXXII, 1. 46 AGOSTINHO. A Verdadeira Religião. 7, 7. 47
GILSON. A Filosofia na Idade Média. p. 144: “Um texto célebre do Sermão 43
resume essa dupla atividade da razão numa fórmula perfeita: compreende para
crer, crê para compreender (intellige ut credas, crede ut inelligas).
48
Aqui compreender não significa conhecer o mistério, mas apenas ter presente
qual é o objeto ao qual devemos assentir. Por exemplo, saber que a Trindade
deve ser crida, não significa compreender o seu mistério e sim assegurar-se dos
testemunhos da fé, que nos asseguram que devemos crer nele. 49 Idem. Op. Cit:
“E analogamente, por seu turno, a inteligência não elimina a fé, mas a
fortalece, e, de certo modo, a clarifica”. 50 Idem. Op. Cit: “(...) fé e razão
são complementares (...)”. 51 AGOSTINHO. A Trindade. XV, 2, 2. 52 AGOSTINHO.
Solilóquios. Trad. Adaury Frangiotti. Rev. H. Dalbosco. São Paulo: Paulus,
1998. VII, 14: “R. Vejamos, se ainda são necessárias essas três coisas para a
alma, depois que ela tenha conseguido ver a Deus, isto é, compreendê-lo. Para
que é necessária a fé se já o vê? Tampouco é necessária a esperança, porque já
o possui. Porém, o amor não só não perde nada, mas é acrescido em elevadíssimo
grau, pois, ao ver aquela beleza singular e verdadeira, amará ainda mais.” 53
AGOSTINHO. Comentário ao Evangelho de São João: Médico e Alimento. XXIX, 6. 54
Idem. Comentário ao Evangelho de São João: Luz, Pastor e Vida. XLVIII, 1. 55
Idem. Comentário ao Evangelho de São João: Médico e Alimento. XXII, 2. 56 Idem.
A Verdadeira Religião. 8, 14. 13 no De Ordine, Agostinho 57 Idem. A Ordem. II,
XVI, 44. 58 Idem. Ibidem. II, XVIII, 47. 59 AGOSTINHO. A Doutrina Cristã. II,
12, 17. 60 Idem. Ibidem. 61 GILSON, Étienne. Introdução ao Estudo de Santo
Agostinho. Trad. Cristiane Negreiros Abbud Ayoub. São Paulo: Discurso
Editorial; Paulus, 2006. p. 76. O próprio Agostinho, no De Ordine, afirma que,
uma vez crendo por autoridade, podemos, segura e confiantemente, buscarmos com
logro as razões das coisas que, a priori, cremos sem compreender: AGOSTINHO. A
Ordem. II, IX, 26: “Quem entra por esta porta (a da autorictas) sem nenhuma
dúvida segue os preceitos da vida ideal dos quais, quanto já se tenha tornado
dócil, finalmente aprenderá que as mesmas coisas, que seguiu sem compreendê-las
com a razão, estão dotadas de muita razão (...)”. (O parêntese é nosso).
62 GILSON. Introdução ao Estudo de Santo Agostinho. p. 76. 63 Idem. Ibidem. p. 86 64 AGOSTINHO. A Ordem. II, V, 16. 65 Idem. A Verdadeira Religião. 5, 8. 66 Idem. A Ordem. II, XVIII, 47. 67 Idem. A Cidade de Deus. VIII, I.
Sávio Laet de Barros
Campos (*)
Bacharel-Licenciado e Pós-Graduado em Filosofia Pela Universidade Federal de Mato Grosso.
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