Considerações à luz da encíclica Fratelli Tutti, do Papa Francisco (I)
Por Claudiano Avelino dos Santos (*)
“Tudo já foi dito uma vez, mas, como ninguém
escuta, é preciso dizer de novo” (André Gide)
O artigo destaca elementos da
encíclica Fratelli Tutti, tendo por base algumas perguntas: Por que o papa se
dedica ao tema da política? O que fazer para que a amizade social e a
fraternidade universal não se restrinjam ao mundo das boas ideias, mas tenham
incidência em nossas comunidades? A configuração com Jesus Cristo é indicada
como essencial para iniciar o caminho da fraternidade universal, ou seja, de
uma política diferente.
A encíclica Fratelli Tutti (“Todos irmãos”), publicada no dia de São Francisco de Assis do ano de 2020, foi um presente que o papa ofereceu não só à Igreja, mas também ao mundo. É um texto propositivo, que reúne reflexões a respeito da amizade e da fraternidade Social (FT 5) e faz aflorar à superfície do cotidiano a profundidade da Doutrina Social da Igreja, cuja base é o Evangelho, a prática de Jesus Cristo.
1. É preciso insistir na política
Compartilho uma reflexão baseada principalmente nos cinco primeiros capítulos da encíclica, destacando a necessidade da educação para a solidariedade:
A tarefa educativa, o desenvolvimento
de hábitos solidários, a capacidade de pensar a vida humana de forma mais
integral, a profundidade espiritual são realidades necessárias para dar
qualidade às relações humanas, de tal modo que seja a própria sociedade a
reagir diante das próprias injustiças, das aberrações, dos abusos dos poderes
econômicos, tecnológicos, políticos e midiáticos (FT 167).
Esse trecho integra o capítulo
quinto da Fratelli Tutti, no qual o papa
reflete acerca da política. Como “política” é uma daquelas palavras desgastadas,
desacreditadas, o santo padre deixa bem claro de que tipo de política está
falando: da melhor política, aquela que está verdadeiramente a serviço do bem
comum (FT 154). Já não é de agora que, olhando o mundo político que nos
circunda, muitos de nós sentem aversão, repulsa, desinteresse, pois são
inúmeras as denúncias de corrupção contra políticos, não importando o partido
ou se é de esquerda ou de direita. Não obstante, o mau uso de qualquer coisa
não significa que essa coisa, em si mesma, seja má. O mau uso que boa parte dos
líderes políticos fazem da administração pública não deve ser motivo para
desistir da busca pelo bem comum. É o que o Papa Francisco nos ensina, ao
dedicar um capítulo inteiro à política, a fim de lembrar a importância do tema
para todos, especialmente para as pessoas de fé.
Por que o papa se preocupa com a
educação para a solidariedade? E por que se dedica ao tema da política? A
resposta poderia ser dada de maneira rápida: porque a política é um ato de
caridade.
Alguém ajuda um idoso a
atravessar um rio e isso é caridade primorosa; mas se o político lhe constrói
uma ponte, isso também é caridade. É caridade se alguém ajuda uma pessoa
fornecendo-lhe comida, mas se o político lhe cria um emprego, exerce uma forma
sublime de caridade, que enobrece a ação política (FT 186).
2. O bom samaritano: modelo de cidadania e
fraternidade universal
Para chegar a tratar de política e de solidariedade, Francisco, no primeiro capítulo da encíclica, descreve a situação do mundo atual com muita preocupação, pois tem a impressão de que a humanidade não está melhorando, como seria de esperar. Com tom profético de chamada de atenção, fala das tendências atuais que atrapalham o desenvolvimento da fraternidade universal, pontuando que “a história dá sinais de regressão. Reacendem-se conflitos anacrônicos, que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos” (FT 11). A lista de sombras do nosso tempo é mesmo assustadora: ausência de consciência histórica, falta de projeto para todos, direitos humanos restritos, globalização sem rumo, ilusão de comunicação, informação sem sabedoria… Em um mundo assim, “[…] esmorecem os sentimentos de pertença à mesma humanidade; e o sonho de construirmos juntos a justiça e a paz parece uma utopia de outros tempos […]” (FT 30). Ou seja, vivemos um clima de cada um por si e todos contra todos.
Francisco observa o cenário
mundial e procura encontrar caminhos alicerçados na fé cristã, os quais podem
ser de proveito a todas as pessoas. “Deus continua a espalhar sementes de bem
na humanidade” (FT 54). Essa certeza abre espaço para a caridade efetiva, da
qual o bom samaritano (Lc 10,23-57) é exemplo contundente, capaz de interpelar
qualquer pessoa, independentemente das convicções religiosas (FT 56).
De fato, essa parábola, sobre a
qual o papa se debruça no segundo capítulo da encíclica, mostra, de maneira
clara, como “amar o outro e cuidar dele” (FT 59), não importando de onde ele
venha (FT 62). Infelizmente, contudo, a tendência da sociedade atual vai na
direção oposta da atitude de amor e cuidado do bom samaritano: “[…] como
estamos todos muito concentrados em nossas necessidades, ver alguém que está
mal incomoda-nos, perturba-nos, porque não queremos perder tempo por culpa dos
problemas alheios […]” (FT 65).
Somos educados para fazer
sucesso, empreender, o que em si mesmo não é um mal. O problema é que a
educação para a realização pessoal, em geral, não ajuda a olhar para a outra
pessoa como um irmão, mas sim, muitas vezes, como um empecilho, um concorrente
e, na melhor das hipóteses, como alguém de quem se pode tirar algum benefício.
Qual é a saída? O papa sabe,
todos sabemos, que não é fácil encontrá-la. Por isso, o bom samaritano,
personagem da parábola contada por Jesus, é tomado como ponto de partida para
uma reflexão cujo objetivo é levar a ressurgir a vocação de cidadãos do próprio
país e do mundo inteiro, construtores de novo vínculo social, no qual viver
indiferente à dor do outro não é opção (FT 66; 68).
O sonho do papa de amizade social,
de fraternidade universal, seguindo o Evangelho, visa ao mundo inteiro, à
sociedade. Entretanto, é um engano pensar que a transformação social se dá sem
mudança pessoal. Por isso, Francisco apresenta os personagens da parábola de
modo a levar o leitor a um exame de consciência: diante do outro que está
ferido, identificamo-nos com aqueles que passam adiante ou com quem cuida? (FT
70).
É chocante constatar que são
justamente o sacerdote e o levita – ou seja, pessoas ligadas ao serviço
religioso – os que não se importam com a pessoa ferida à beira do caminho. Do
ponto de vista de sua religião, eles parecem corretos, pois, se tocassem em um
cadáver, ficariam impuros e não poderiam cumprir seu ofício. Entretanto, a
parábola chama a atenção para o fato de que, mesmo que as práticas religiosas
sejam importantes, elas não podem se desvincular do cuidado do outro,
especialmente de quem está ferido. Viver a fé como amor ao próximo, por amor a
Deus, é exigente.
Quando a religiosidade segue a
mesma lógica da busca de prosperidade a qualquer custo, as pessoas feridas, nas
diversas situações de periferia, são vistas como exemplo de fracasso e gente a
ser evitada. A fé em Deus, que é Pai, criador de todos, não nos autoriza tais
atitudes individualistas, de quem pensa no sucesso individual sem levar em
conta o outro. Nesse sentido, diz o papa, é escandaloso que, em nome da
religião, pessoas se sintam autorizadas a atitudes de xenofobia, desprezo e
maus-tratos para com quem é diferente (FT 86).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PAPA FRANCISCO. Fratelli Tutti: Carta Encíclica sobre a fraternidade e
a amizade social. São Paulo: Paulus, 2020.
PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E
PAZ. Compêndio da Doutrina Social da Igreja. São Paulo:
Paulinas, 2011.
SÃO BENTO. Regra do glorioso patriarca São Bento. Disponível
em: <www.movimentopax.org.br/saoBento/Regra%20de%20Sao%20Bento.pdf>.
Acesso em: 30 out. 2020.
(*)
Claudiano Avelino dos Santos
é superior dos Padres e Irmãos
Paulinos, doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo.
(Continuará no próximo
Domingo...)
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