Considerações à luz da encíclica Fratelli Tutti, do
papa Francisco (II)
Por Claudiano Avelino dos Santos (*)
1. A hospitalidade: acolher a vida indefesa e espoliada
Tendo apresentado a parábola do
bom samaritano como iluminação para as situações sombrias de nosso tempo,
Francisco, no capítulo terceiro, reflete sobre as possibilidades de pensar e
gerar um mundo aberto, no qual as pessoas ou povos não estejam fechados sobre
os próprios interesses, encerrados nas próprias fronteiras, sem se importarem
com a situação do outro. O ponto de partida para a busca desse mundo é o fato
de que o ser humano só se realiza se doando aos outros, ou seja, amando,
relacionando-se (FT 87).
Como expressão concreta de amor
que não se deixa cair na armadilha do egoísmo autorreferencial, o papa
apresenta a hospitalidade (FT 90), praticada, entre outros, pelos mosteiros. De
fato, a Regra de São Bento manda que os enfermos, as
crianças, os hóspedes e os pobres sejam tratados com toda solicitude, pois Deus
pedirá conta do cuidado dispensado a esses necessitados. O peregrino que pede
hospedagem, na verdade, deveria ser tratado como o próprio Cristo (Regra de São Bento, cap. 51-53). Esse exemplo é
bastante eloquente, pois, como sabemos, a vida religiosa contemplativa tem
máximo apreço pela oração, pela meditação, por certa rotina de estudo e silêncio.
Não obstante, cuidar de alguém que bate à porta da comunidade religiosa não é
visto como algo contrário à contemplação, mas ocasião de pôr em prática o que
se reza, o que se celebra, o que se estuda.
O amor fraterno, vivenciado em
comunidade, em uma sociedade local, é a base da fraternidade que se estende a
todos. O amor amplo, expansivo, é a base da “amizade social”, que, a partir de
uma sociedade concreta, abre-se a todos (FT 100). A busca do papa baseia-se na
superação das relações interesseiras, nas quais se procura ter “sócios”, e não
fazer “irmãos” (FT 103-105). Ter sócio ou fazer parte de uma sociedade não é
pecado. Entretanto, o Evangelho de Jesus nos impele a ampliar, o máximo
possível, um modo de relacionamento não fundado no interesse. Na ótica de Jesus
Cristo, é legítimo desfazer uma sociedade, ou seja, por razões práticas alguém
deixar de ser sócio de outra pessoa, mas jamais o outro deve deixar de ser
considerado irmão simplesmente porque não atende aos meus interesses ou porque
não pensa como eu.
Para que se caminhe rumo à
amizade social e à fraternidade universal, é imprescindível reconhecer o valor
do ser humano, que merece respeito e dignidade pelo simples fato de existir, em
qualquer circunstância (FT 106-108). A dignidade inegociável do ser humano não
pode se sujeitar aos critérios de liberdade de mercado e eficiência (FT
109-110). Os direitos inalienáveis da pessoa humana não podem ser confundidos
com direitos individualistas, cada vez mais reivindicados, sem levar em conta o
bem maior, o amadurecimento integral humano, baseado na benevolência, isto é,
no “querer bem” ao outro (FT 112-113).
Direitos individualistas,
requisitados como humanos, estão na base de tantas atitudes mesquinhas – por
exemplo, de quem quer tirar os pobres das ruas a qualquer custo, como medida de
“higiene” e como se as pessoas humanas pudessem ser consideradas lixo, ou de
quem defende como direito o aborto, sem considerar a vida em desenvolvimento.
Quanto vale uma vida de poucos dias no ventre da mãe? Quanto vale a vida de uma
pessoa caída na calçada por fome ou mesmo por embriaguez? Aos olhos de Deus,
são infinitamente valiosas. Disso é preciso tirar consequências práticas, que
incomodam quem põe o bem-estar individual como lei absoluta.
O Evangelho nos ensina que é
preciso pensar e agir em termos de comunidade, priorizando a vida de todos
acima da apropriação dos bens por parte de alguns (FT 114-116). Nesse sentido,
a Doutrina Social da Igreja reconhece a importância da propriedade privada,
como garantia da ordem social e incentivo à produção, desejando que o máximo de
pessoas sejam proprietárias. Entretanto, não se trata de um valor absoluto e
intocável, pois está subordinado ao direito de uso comum dos bens criados
por Deus.
Segundo o papa, é preciso retornar
ao tema da função social da propriedade, uma vez que o uso dos bens criados
deve ordenar-se para a realização integral de todas as pessoas (FT 118-120),
independentemente de onde tenham nascido (FT 121). O papa reconhece que esse
modo de pensar, essa lógica, só faz sentido tendo por base a dignidade que a
pessoa humana possui pelo simples fato de existir (FT 127).
Depois de propor o ideal de que
todos são irmãos e irmãs pelo simples fato de serem humanos, para que tal se
concretize, no quarto capítulo o papa Francisco discorre a respeito de
“desafios que nos fazem mover, nos obrigam a assumir novas perspectivas e
produzir novas reações” (FT 128). Destaca-se, em primeiro lugar, o desafio das
fronteiras e o problema da migração, que deveria ser enfrentado com a ampliação
do conceito de cidadania, baseando-o na igualdade dos direitos e deveres, sem
se prestar a usos discriminatórios (FT 129-132). Os migrantes precisam ser
acolhidos como dom, pois podem contribuir com os valores de sua cultura, ao
mesmo tempo que acolhem os valores da cultura que os recebe (FT 133-136).
Para que haja desenvolvimento
solidário de todos os povos, o papa pede um ordenamento jurídico, político e
econômico mundial, de modo que todos possam se beneficiar do progresso de cada
povo (FT 138). Embora reconheça o valor da colaboração mútua, ele adverte
contra o risco do utilitarismo, que leva nações a só desejar receber pessoas
cuja presença redunde em benefícios imediatos, como cientistas e investidores
(FT 139-140). O remédio contra esse mal é a gratuidade, e Francisco profetiza:
“Só poderá ter futuro uma cultura sociopolítica que inclua o acolhimento
gratuito” (FT 141).
A abertura para a fraternidade
universal, lembra Francisco, não se faz negando as realidades locais. Pelo
contrário, para que o diálogo com o outro seja autêntico, é importante estar
ancorado na própria cultura (FT 143-145), sem o exagero do narcisismo
bairrista, consciente de que […] sem o relacionamento e o confronto com quem é
diferente, torna-se difícil ter um conhecimento claro e completo de si mesmo e
de sua terra, uma vez que as outras culturas não constituem inimigos de quem
seja preciso defender-se, mas reflexos distintos da riqueza inexaurível da vida
humana […] (FT 147).
Para chegar à desejada
fraternidade universal, o papa realça a importância do intercâmbio entre os
países de uma mesma região, tomando como paradigma o clima de ajuda mútua
existente em bairros populares (FT 151-153).
Francisco apresenta o ideal da
fraternidade universal, segundo a qual todos os seres humanos são irmãos e
possuem dignidade simplesmente pelo fato de existirem. Essa dignidade é mais
importante que a origem, a crença, a posse de riquezas… Entretanto, o mundo
atual parece dar passos na direção contrária: ressurgimento e cultivo de toda
espécie de ódio, a justa luta pelos direitos humanos sendo substituída pela
busca de garantia de privilégios egoístas e assim por diante. Como fazer que se
diminua a distância entre um ideal tão bonito e um cenário tão assustador? A
política, inevitavelmente, aparece como instrumento de organização, de
engajamento das pessoas no empenho da amizade social e da fraternidade
universal.
2. A política como amor
Para que a fraternidade entre
povos e nações se concretize, é preciso haver uma política a serviço do
verdadeiro bem comum. Esse é o tema do capítulo quinto, intitulado “A melhor
política”. Colocar o adjetivo “melhor” ao lado do substantivo “política” faz-se
necessário, pois não é de agora que, no linguajar comum, política se tornou
sinônimo de muita coisa que vai no sentido contrário de seu sentido primeiro,
confundindo-se, por exemplo, com a capacidade de manipular as pessoas em função
de interesses particulares.
Por isso que, antes de falar
propriamente da melhor política, o papa, sob os nomes de “populismos” e
“liberalismos”, agrupa os desvirtuamentos da política, que impedem o que ele
chama de “mundo diferente” (FT 154). O populismo é a degradação da noção
de povo, que é benéfica, pois congrega, dá identidade,
noção de pertença, e faz de um agrupamento humano mais do que a soma dos seus
indivíduos (FT 156-158). O populismo se dá quando a cultura do povo é
instrumentalizada, política ou economicamente, por um líder que não visa
conseguir que a organização da sociedade assegure trabalho a todos, ou seja,
que a cada pessoa se garanta uma maneira de contribuir com as próprias
capacidades e o próprio esforço (FT 159-162).
Após insistir na necessidade de
não dissociar a dignidade pessoal de vínculos comunitários, o papa aponta os
limites das visões liberais individualistas, que enfatizam as liberdades
individuais sem se preocupar com a situação dos mais frágeis da sociedade. A
polarização entre povo e indivíduo, entre público e privado, promovida por esse
tipo de visão é desnecessária, pois “o amor ao próximo realista […] nada
desperdiça do necessário a uma transformação da história que beneficie os
últimos” (FT 165).
Não há dúvida de que a política
requeira inteligência, capacidade de planejamento, agilidade, senso de
oportunidade e tantas outras características ligadas à organização. Sem isso, a
caridade pode ficar apenas no campo dos ideais que nunca se concretizam. A frieza
técnica, porém, não dá conta de tudo. Por isso, para fazer a melhor política,
desejada pelo papa, é preciso ter, tanto por pressuposto como por finalidade, o
amor incondicional ao ser humano em virtude da dignidade que possui pelo
simples fato de existir.
É preciso subordinar toda a
técnica política à dignidade humana, o que não se alcança de modo espontâneo,
mas requer muito esforço. O primeiro esforço a ser feito é o da conversão do
coração. O papa apela à necessidade da conversão do coração, evocando um termo
clássico para a teologia cristã, a concupiscência, “inclinação do ser humano a
fechar-se na imanência do próprio eu, do seu grupo, dos seus interesses
mesquinhos” (FT 166), que marca o homem e a mulher desde sempre.
À luz dessa observação do papa, fica
claro que, para chegar, o máximo possível, mais próximo da amizade social e da
fraternidade universal, não bastam decretos ou projetos estruturais. A
transformação de cada pessoa – que precisa se observar, fazer exame constante
de seus atos – é fundamental. Assim, uma lei não trará para uma nação e para o
mundo mais fraternidade se cada pessoa não se puser em perspectiva amorosa e
fraterna desde os pequenos gestos. As reivindicações políticas pelas grandes
causas precisam estar em consonância com os pequenos gestos.
1. A educação para hábitos solidários
O amor político é exigente, como
também o é o amor por uma pessoa ou pela família. Há no coração humano a
inclinação para o amor, mas no mesmo coração surgem tantas outras tendências. É
preciso identificá-la e, de forma semelhante ao que se faz com uma planta
benéfica numa horta ou num jardim, cultivá-la para que cresça, floresça,
frutifique. O amor que floresce ou frutifica desdobra-se em atos de cuidado, de
solidariedade, de interesse por compreender o outro, tendo como marca a
gratuidade. Essas palavras não deixam de passar certo ar de ingenuidade, de
utopia inalcançável, pois os discursos e, sobretudo, as atitudes mais comuns
são aquelas devotadas ao individualismo.
O papa Francisco parece estar
conclamando os católicos e todas as pessoas de boa vontade a movimentar-se na
contramão da sociedade, que põe a produtividade como critério de tudo, também
para qualificar a pessoa. Em poucas palavras, educa-se para o mercado, e não para a solidariedade. O mercado
tende a se movimentar apenas baseado nos interesses de satisfação das
necessidades das pessoas mais abastadas. No modo mercadológico de pensar e
agir, ficam de fora atitudes como gratuidade e solidariedade com os mais
fracos, os pobres, os da periferia. Outro modo de fazer as coisas precisa ser
experimentado, com ousadia. Outro caminho precisa ser trilhado.
O papa quer, com sua encíclica,
fazer renascer novo sonho de fraternidade e amizade social, mas quer que a
resposta a isso não sejam apenas palavras (cf. n. 6). Entre as indicações que
deixou, uma deve tocar, de modo contundente, nossa atividade pastoral: “[…] é
importante que a catequese e a pregação incluam, de forma mais direta e clara,
o sentido social da existência, a dimensão fraterna da espiritualidade, a
convicção sobre a dignidade inalienável de cada pessoa e as motivações para
amar e acolher a todos” (FT 86).
Fica, agora, às lideranças católicas a tarefa de serem os primeiros a concretizar a palavra do papa e, em todas as atividades, dos planos de pastoral às pregações, motivar atitudes de fraternidade, de acolhida, de amizade social. Não nos iludamos, porém: sem configuração com Jesus Cristo, sem espiritualidade profunda, sem a força que brota da oração, sobretudo da Eucaristia, não conseguiremos fazer uma política diferente da que está aí. Só conseguiremos, na melhor das hipóteses, sociedade, jamais fraternidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PAPA FRANCISCO. Fratelli Tutti: Carta Encíclica sobre a fraternidade e
a amizade social. São Paulo: Paulus, 2020.
PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E
PAZ. Compêndio da Doutrina Social da Igreja. São Paulo:
Paulinas, 2011.
SÃO BENTO. Regra do glorioso patriarca São Bento. Disponível
em: <www.movimentopax.org.br/saoBento/Regra%20de%20Sao%20Bento.pdf>.
Acesso em: 30 out. 2020.
(*)
Claudiano Avelino dos Santos
é superior dos Padres e Irmãos
Paulinos, doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo.
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