Por Vinícius Augusto Teixeira, cm
1. O luto: assumir para redimir
A realidade da morte é sempre
desconcertante. Lança-nos, sem mais, na esfera do desconhecido, daquilo de que
não temos experiência. Faz-nos amargar a dor da separação física. Impõe-nos a
irremissível impossibilidade de ver e tocar aqueles que partiram de nosso
convívio, depois de terem “feito a escalada da vida removendo pedras e
plantando flores” (Cora Coralina). Por tudo isso, não podemos negar, nem sequer
minimizar, quanto nos dilacera interiormente a despedida das pessoas às quais
nos sentimos vinculados pelos laços de uma afinidade sincera, de um
companheirismo leal, de uma admiração profunda, de um amor visceral. Não é
fácil ver o ciclo da vida chegar ao seu termo, ainda mais quando isso se dá de
forma prematura, abrupta ou dentro de circunstâncias particularmente dramáticas
ou violentas. Daí decorre a necessidade de viver o luto, porque o que não é assumido não pode ser redimido, assim
como o que não é aceito não pode ser transformado. Isso
implica reconhecer e assimilar, sem subterfúgios, a privação que a morte nos
impõe e a dor de que ela é portadora. Trata-se de encarar a face sombria da
morte, para só depois vê-la transfigurada sob nova luz. Como declarou, certa
vez, a poetisa Adélia Prado, ante a partida de seu irmão: “Somos humanos.
Precisamos de um tempo até que o luto possa mudar em claro dia sua cor de
crepúsculo”.
Os mais abalizados psicólogos que
estudam o processo de integração do luto costumam
distinguir algumas de suas fases: a) a aceitação da perda, cujo
oposto seria a negação ou a recusa da realidade tal como ela é; b) a superação da dor, de tal modo que o luto não venha
a manifestar-se em sensações e atitudes mais ou menos prolongadas de
melancolia, carência, ansiedade, culpa, ira, insegurança etc.; c) a adaptação à ausência, com todas as suas
implicações psíquicas, afetivas, físicas, práticas etc.; d) o retorno à normalidade, em seus diferentes
aspectos: social, relacional, religioso, laboral, lúdico etc. Vencido o
primeiro impacto e experimentado o desconforto proveniente da separação, a
pessoa enlutada se vê desafiada a reconstruir-se em tudo o que constitui sua
humanidade, o que, por sua vez, demanda criatividade e iniciativa. É certo que
a cada pessoa corresponde um tempo para dar conta desse itinerário gradual de
aceitação, superação, adaptação e retorno. Por um lado, há que cuidar para não
prolongá-lo indefinidamente, eximindo-se dos esforços requeridos, encerrando-se
no isolamento e impondo-se uma sobrecarga emocional intolerável, sob pena de
resvalar para um infindável e mórbido luto patológico; por
outro, a ausência de luto pode ser indicadora de uma
psicopatologia. De fato, não raramente, um luto reprimido desencadeia
frustrações, angústias, remorsos e outras reações adversas.
Embora existam distintas formas
de expressar os sentimentos mais pungentes, é certo que uma lágrima de saudade
vale mais do que uma gélida e artificial firmeza. Assumir equilibradamente a
própria fragilidade é um ato de nobreza. De resto, como ouvi, certa vez, na
Espanha: “El corazón llora por donde ama”. Se amamos, não podemos deixar de
sentir o adeus de quem se despediu de nosso convívio. Importa, pois, viver o
luto sábia e pacientemente.
2. A memória do amor: gratidão e perdão
O passo seguinte é o da memória do amor, aquela que brota da profundidade
oceânica do coração humano, também quando traspassado pela dor. O coração,
quando devidamente cultivado, deixa desabrochar o que contém de mais nobre.
No-lo recordou São Vicente de Paulo: “Assim como a pedra tende para baixo e o
fogo para cima, o coração tende sempre para o amor como para seu centro” (XII,
n. 390). A morte de um ente querido costuma remeter-nos, misteriosamente, ao
âmago do coração que é o amor. Quantas poesias primorosas, quantas preces
ardentes, quantos gestos magnânimos nascem de um coração ferido pelo luto e
cauterizado pela memória do amor? Essa memória tem, pois, duas faces: a
gratidão e o perdão.
A face mais atraente é a da gratidão. Trata-se de deixar
passar pelo coração tudo o que representa para nós aquele que se foi,
recordando agradecidos o que de bom e de belo essa pessoa nos transmitiu, as
atitudes que emolduraram sua existência, os valores que comunicou, as ações que
empreendeu, o bem que realizou, o amor que a impulsionou, a largueza de sua
entrega, os sacrifícios escondidos de que foi capaz, as sementes que lançou,
regando-as às vezes com suor e lágrimas, e os frutos que abnegadamente
compartiu. O poeta Virgílio já o tinha sentenciado: “Enquanto o rio correr, os
montes fizerem sombra e houver estrelas no céu, deve durar a memória do
benefício recebido”. A face mais exigente é
a do perdão. Frequentemente, a memória do amor solicita a coragem de relevar os
deslizes e tropeços daquele que partiu, liberando a força pacificadora do
perdão. E o motivo não é dar descanso a quem se foi, mas sim religar as
fissuras que dilaceram o coração de quem ficou, de modo a viver reconciliado
com sua própria história.
Em virtude de tudo isso, o exercício da gratidão e do perdão reveste a nudez da saudade com o manto de uma serenidade que só se deixa conhecer lentamente e é fruto do amor. Que o diga a poetisa latino-americana, do abismo de sua conturbada trajetória pessoal: “De par en par la ventana se abrió como por encanto. Entró el amor con su manto, como una tibia mañana. Al son de su bella diana, hizo brotar el jazmín. Volando cual serafín, al cielo le puso aretes. Y mis años en diecisiete (ano de nascimento de Mercedes Sosa), los convirtió el querubín”. Assim, a serena saudade, que nasce e se nutre do amor agradecido e reconciliado, torna-se o lugar do reencontro, dando-nos a medida do valor da pessoa amada e cingindo de paz sua lembrança. Essa é a razão pela qual a ninguém é dado “matar a saudade”.
3. O salto da fé: esperança e entrega
Tendo palmilhado a inglória
travessia do luto, osculados pela memória do amor, confortados pela aragem da
gratidão e tocados pela decidida intenção de perdoar, falta-nos ainda dar um
passo a mais, um passo que responda à apetência de infinito, ao impulso de
transcendência e à sede de sentido que habitam o ser humano e o mobilizam sem
cessar. O que aqui apresentamos como terceiro momento pode ser também o
primeiro, conforme a experiência de cada pessoa. Trata-se, pois, do salto da fé. Com efeito, embora a crueza da morte
seja igual para todos, no mais íntimo de quem crê reverbera aquela convicção
que lhe imprime a revelação cristã: a vida não se encaminha para o vazio do
absurdo, para a ilusão do nada. Não somos andarilhos sem rumo, navegantes sem
porto, forasteiros sem pátria. Há um lugar no qual somos esperados e para o
qual caminhamos. Há um regaço hospitaleiro no qual poderemos enfim descansar,
como repousa tranquila a criança amamentada nos braços de sua mãe (cf. Sl
131,2). Era essa a certeza que levava Francisco de Assis – debilitado pela
enfermidade, mas dotado de impressionante jovialidade interior – a louvar o
“onipotente e bom Senhor” pela “irmã morte corporal”. Não se trata de mero
sentimento subjetivo, mas sim de experiência radical, nascida da adesão a uma
verdade comunicada por Jesus Cristo e sintetizada em nossa comum profissão de
fé: cremos na ressurreição e na vida eterna.
No mistério de sua páscoa, o Filho
de Deus abriu para nós as portas da vida em plenitude (cf. Lc 23,43).
Revelou-nos, assim, a meta derradeira de todo ser humano e o destino da criação
inteira. Nele, “autor e consumador de nossa fé” (Hb 12,2), brilhou para nós a
esperança da feliz ressurreição. Por isso, aos que a realidade da morte
entristece, a promessa da eternidade consola. Não é à toa que o cristão pode
perguntar, quase em tom de desafio: “Onde está, ó morte, tua vitória?” (1Cor
15,55). Anima-nos, de verdade, a “doce esperança” de que seremos acolhidos na
incomensurável ternura do abraço do Pai e introduzidos na comunhão definitiva
com todos aqueles que passaram pelo mundo fazendo o bem. Mesmo não tendo
experiência sensível do que seja a vida além da morte, damos o total
assentimento de nossa fé àquela promessa de eternidade com que o Senhor se
despede de seus discípulos na ceia que precedeu sua entrega total na cruz:
Não se perturbe vosso coração.
Credes em Deus, crede também em mim. Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se
não fosse assim, eu vos teria dito, pois vou preparar-vos um lugar, e quando eu
for e vos tiver preparado o lugar, virei novamente e vos levarei comigo, a fim
de que, onde eu estiver, estejais vós também (Jo 14,1-3).
Para quem crê, não pode haver
promessa mais reconfortadora e certeza mais tonificante: estaremos com o
Senhor, no lugar que ele nos preparou. E, porque cremos na ressurreição e na
vida eterna, intuímos com o apóstolo: “Os olhos não viram, os ouvidos não
ouviram e o coração do homem não percebeu o que Deus preparou para os que o
amam” (1Cor 2,9). Nosso destino tem endereço certo, o perene convívio com o
Deus Trindade: o Pai que nos criou, o Filho que nos salvou e o Espírito que nos
santifica. E só a recusa contumaz de nossa liberdade pode impedir-nos o acesso
à dádiva oferecida.
Pela força invencível do amor de
Cristo, estamos em comunhão de fé e caridade com aqueles que nos precederam na
eternidade, embora sem a menor possibilidade de contato direto com eles. No
recato da oração, entregamos nossos falecidos à misericórdia do Senhor,
esperando firmemente que ele os purifique e lhes conceda a felicidade sem fim e
a fecundidade imorredoura dos que habitam sua casa. E isso ainda que a ruptura
da morte tenha se efetuado em condições e circunstâncias imprevistas (pensemos,
por exemplo, em tantas pessoas que têm a existência ceifada acidentalmente ou
por motivo de uma tragédia). Ademais, porque cremos na ressurreição, evitamos
os discursos vagos e híbridos que levam a dizer a respeito de quem partiu:
“esteja ele onde estiver…”. Para nós, a definitiva esperança tem nome: vida
eterna junto de Deus, plenitude de seu amor; graça imerecida, é verdade, mas
ansiada e acolhida com humilde gratidão e contrita confiança.
Vale recordar que, ao referir-nos
à alma de nossos defuntos, estamos nos referindo à
sua pessoa, ou seja, àquela identidade profunda do ser humano, àquilo que ele
tem de mais significativo e substancial, à totalidade de seu ser destinado à
eternidade. Não será demais lembrar também que a fé na vida eterna não elimina
o luto, mas o ilumina a partir de dentro. Emblemática, nesse sentido, é a
reação espontânea de Marta ao encontrar-se com Jesus, dias depois da morte de
Lázaro, amigo fiel por quem o próprio Jesus chorou (cf. Jo 11,35). Disse-lhe,
então, Marta: “Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido”
(Jo 11,21). É o clamor dolorido do coração enlutado que se rebela em face da
morte. Contudo, vem, em seguida, o salto da fé: “Mas ainda agora sei que tudo o
que pedires a Deus, ele te concederá” (Jo 11,22). E a resposta do Mestre e
Amigo não defrauda a esperança dos que nele se apoiam: “Eu sou a ressurreição e
a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá. E quem vive e crê em mim
jamais morrerá” (Jo 11,25). Viver para sempre com o Senhor, atravessar o umbral
da morte, entrando, enfim, na plena posse da vida eternizada pelo amor: eis,
pois, o que nos está reservado, eis a promessa que nos consola e a esperança
que nos robustece.
Certa vez, estando para iniciar
as exéquias de um paroquiano muito estimado, cuja morte havia causado grande
consternação em todos nós, ouvi de sua viúva uma maravilhosa profissão de fé na
ressurreição, que logo me pareceu uma paráfrase daquelas palavras que Marta,
irmã de Lázaro, dirigiu a Jesus no relato evangélico. Sem renunciar às suas
lágrimas, disse-me, então, dona Laene: “A dor é grande. Será muito difícil
viver sem Toninho. Mas sei que ele está com Deus e que Deus está conosco”. Na
singeleza dessas palavras, a perfeita síntese da fé que nos revigora: o Senhor
acolhe aqueles de quem nos despedimos e sustenta os que ainda estamos a
caminho. Com efeito, vencemos a morte ao assumi-la como o ato mais decisivo de
nossa peregrinação terrena. Se esta consiste em caminhar para a plena comunhão
com Cristo, crendo no Deus que se revela, esperando no que Deus nos prometeu e
amando o Deus que nos ama, a morte será, então, nosso sim definitivo, o mais
belo ato de fé, esperança e amor.
* * *
Crer na vida eterna nada tem que
ver com alienação. Ao contrário, acorda-nos para o valor e a beleza da vida que
levamos aqui e agora, sem deixar-nos esquecer que há uma vida qualitativamente
superior a esta, aquela que nos permitirá “estar para sempre com o Senhor” (1Ts
4,17). Como escreveu Rubem Alves, no crepúsculo de seus dias: “A morte nunca
fala sobre si mesma. Ela só fala sobre a vida. Basta pensar nela para que a
gente ouça sua voz silenciosa, perguntando-nos: ‘E sua vida como vai? O que
você está fazendo com o tempo que lhe resta?’” Nesta época tão desoladora de
pandemia, cabe-nos pensar o que temos feito da vida que nos foi dada como dom,
a única vida que teremos para apresentar a Deus quando nos for concedido estar
diante dele como filhos e filhas que se reconhecem amados e não receiam
lançar-se no amplexo da comunhão trinitária. Afinal, recorda-nos a sabedoria
popular: “Nada levamos desta vida a não ser a vida que levamos”. Daí a oração
do salmista: “Ensinai-nos a contar os nossos dias e dai ao nosso coração
sabedoria” (90,12).
E não há melhor maneira de viver
do que amar, traduzindo o amor em atitudes, gestos e palavras, segundo as
exigências de cada momento e as necessidades de cada pessoa que cruza nossos
caminhos. Quem no-lo recordou foi o inquieto Santo Agostinho:
Mas como tu, porém, ainda não vês
a Deus, amando o próximo conquistas o mérito de vê-lo. Amando o próximo,
purificas os olhos para poderes ver a Deus. Começa, portanto, a amar o próximo…
Amando o próximo e tendo cuidado dele, tu caminhas. E aonde te conduz o caminho
senão ao Senhor, que devemos amar com todo o coração, com toda a alma, com toda
a mente? Ao Senhor ainda não chegamos, mas o próximo nós o temos sempre
conosco. Ajuda, portanto, o próximo com o qual tu caminhas para poderes chegar
àquele com o qual tu desejas permanecer.
Valha, pois, como conclusão, a
intuição do místico e poeta de nossos dias: “No final do meu caminho me dirão:
E tu, viveste? Amaste? E eu, sem dizer nada, abrirei o coração cheio de nomes”.
Seja esta nossa esperança, seja
este nosso empenho: apresentar ao Deus da Vida um coração cheio de nomes e dele
receber a imerecida e sempre desejada eternidade do amor.
https://www.vidapastoral.com.br/ano/despedir-nos-dos-que-partem/
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