A educação agostiniana: princípios e aplicação (I)
José Joaquim
Pereira Melo (*)
Walmir Ruis
Salinas (**)
Introdução
Santo Agostinho1, nascido no norte da África, considerado cidadão romano por benefício legal, teve sua formação marcada pela dualidade, seja pelo paganismo do pai e o cristianismo da mãe, seja pelos princípios da educação romana contrapostos com os princípios do cristianismo. Após sua conversão, ocorrida aos trinta e dois anos, abraçou o cristianismo, tornando-se seu árduo defensor, firmando-se na formação dos cristãos e escrevendo sobre diversos temas ligados ao cristianismo. Entre estes temas estava a questão do pecado original. Afirmou mais de uma vez que o homem, antes do pecado, vivia sob a graça divina, livre da luxúria e da concupiscência, com o corpo e a alma ilibados. Após a queda (pecado original), entregue a seu orgulho, o homem distanciou-se do criador, direcionando seu desejo para a criação. Para o teólogo, a única forma de voltar a um estado próximo àquele anterior ao pecado de Adão, seria mediante a graça divina. Tido que o ato de pecar foi escolha livre do homem, não caberia a este, exclusivamente, então, a responsabilidade pela busca de uma ação que fizesse com que o corpo ficasse submisso à alma, através da docilização, e assim viver sem a malícia do pecado? Ele asseverou que sem a graça isso seria impossível, porém, afirmou, também, que alguns instrumentos poderiam ajudar ao homem na busca por viver sob a graça divina, um deles é a educação. Ao colocar que a educação é um instrumento norteador para o homem viver sob a graça divina, Santo Agostinho sinaliza para a importância da graça na formação do cristão. Por isso, é relevante que se apresente alguns pontos que direcionaram a formação de Santo Agostinho. Entre esses pontos pode-se destacar a concomitância da existência do Império Romano com o cristianismo, acontecimento que propiciou-lhe receber uma educação mesclada de valores das culturas romana e cristã. A ambivalência em sua formação mostrou-se presente nos princípios estabelecidos por ele para a prática da educação.
Princípios Romanos e Cristãos na Educação
Agostiniana
As etapas
da experiência, no campo da educação, de Santo Agostinho estão vinculadas a um período
em que o Estado romano, que outrora controlava a educação, começa a perder espaço
para a Igreja (CAMBI, 1999). Mesmo com a decadência do Estado, Santo Agostinho pode
fazer uso da educação oferecida por este, principalmente no campo da retórica. A
outra fonte de sua formação foi o próprio lar, onde sua mãe procurou incutir nele
alguns pressupostos da doutrina cristã. Destarte, o contexto da educação agostiniana
está relacionado a duas práticas educacionais distintas: a romana e a cristã.
A educação
romana, normalmente é caracterizada por seu aspecto prático, visando à formação
do cidadão romano. A visão prática do romano mostrava-se adequada na busca de instrumentos
para a obtenção de sucesso na vida pública. Para aqueles que desejavam trilhar esse
caminho e para o romano, de um modo geral, a oratória era um instrumento bastante
eficaz, inclusive no período de formação de Santo Agostinho. Os meandros da oratória
foram dominados por ele, que dela fez uso na profissão e na pregação da doutrina
cristã (HUBERT, 1976).
Segundo Monroe,
havia um viés moral na educação romana, viés esse,
pautado em virtudes como obediência, coragem, prudência e honestidade. Essas virtudes
são típicas de um povo voltado para conquistas e para uma vida social correta, ou
seja, respeitando as normas propostas por essa sociedade. A soma dessas virtudes
resulta em um cidadão determinado em alcançar seus objetivos, tomado por um espírito
de dever para com o Estado, sendo-lhe fiel servidor (MONROE, 1978).
Dessas características
da educação romana, Santo Agostinho, nela formado, fez uso em profusão. Da retórica
fez sua profissão, na condição de professor, e dela fez uso enquanto pregador e
escritor. Do espírito de dever para com o Estado, fez a meta de sua vida, porém,
não do Estado terreno, mas da cidade celeste, governada por Deus, com valores distintos
dos da cidade terrena. Como visto, as virtudes sociais ocupavam papel de destaque
na formação do cidadão romano. No cristianismo, ser virtuoso também era fundamental.
No entanto, as virtudes sociais cedem lugar às virtudes teologais: fé, esperança
e caridade (MONROE, 1978).
Sciacca, seguindo
os divulgadores da doutrina cristã que o antecederam, entende que o modelo dessas
virtudes é Jesus Cristo, que com sua vida e pregação vem trazer, literalmente, a
Boa Nova. O que se tem de novo na mensagem de Jesus? Nascido e educado na tradição
judaica, ele sabia muito bem do aspecto legalista desse povo, que era fiel a uma
lei antiga, a Lei de Talião2, mais conhecida pela frase que a representa: “olho
por olho, dente por dente.” Se por um lado essa lei expressa justiça, uma vez que
condiciona a pessoa prejudicada a limitar o reparo na medida do dano recebido, por
outro lado não trabalha com a possibilidade do perdão, e o causador do dano, normalmente
era tido como inimigo. É justamente nesse quesito que Cristo inova, pois se os quatro
evangelhos pudessem ser resumidos em duas palavras, elas seriam amor e perdão, e
de forma incondicional, como exigia Cristo àqueles que desejavam segui-lo (SCIACCA,
1966). Os valores que até então, foram defendidos pelos cidadãos romanos passam
a ser desprezados, e virtudes, antes pouco apreciadas, passam a ter a conotação de ideal de vida, como a humildade, por exemplo.
Nas Bem-Aventuranças, presentes no evangelho de Mateus (5: 1-10), Jesus Cristo dá
à felicidade uma conotação diferente. O ideal de homem, agora, não é mais o sábio,
o filósofo ou o cidadão correto. O ideal de homem, mirando a felicidade na parusia,
passa a ser o misericordioso, o manso de coração, o que sofre, o que tem um coração
puro e fome de justiça.
Segundo Sciacca, além dos valores enaltecidos por Jesus Cristo, uma virtude foi fundamental na elaboração dos princípios educacionais no cristianismo primitivo, a caridade (SCIACCA, 1966). A caridade, complemento do amor e do perdão, é descrita por Paulo de Tarso na primeira carta aos Corintos (13: 1-13), quando afirma que qualquer dom que homem possuir, se não for acompanhado da caridade, de nada vale, e descreve a caridade como paciente, prestativa, destituída de orgulho, egoísmo e rancor. Essas qualidades são exatamente as descritas por Cristo nas Bem-Aventuranças. Outra novidade que o cristianismo traz é de que o reino de Deus é para todos: homem, mulher, pobre, rico, doutor, ignorante, enfim, todos. Ante os olhos de Deus, todos têm o mesmo valor. Toda forma de segregação, tida como normal nas sociedades greco-romanas, cai por terra e perde sentido com a Boa Nova (SCIACCA, 1966).
A radicalidade nas mudanças que o cristianismo trouxe, exigiu uma educação moldativa e formativa. Moldativa, porque apresentou um novo modelo de homem, fundamentado na pessoa de Cristo. Formativa, pois para que se possa transformar o homem velho no homem novo seria preciso uma formação dirigida, que o conduzisse a uma nova forma de ser e agir (CAMBI, 1999). Tendo Cristo como modelo, a pedagogia cristã não poderia se distanciar de seu mestre, para que fosse minimamente coerente com sua origem e inspiração. Segundo Santo Agostinho, como representante de Cristo na terra, a Igreja tem a de passar os valores novos que Cristo trouxe a todas as pessoas (SANTO AGOSTINHO, 2002). Dessa forma, a educação cristã passa a ter a obrigação de se fundamentar em alguns princípios, que são assim descritos por Luzuriaga:
1) Reconhecimento
do valor do indivíduo como obra da divindade.
2) Superação
dos limites de nação e estado e criação da consciência universal humana.
3) Fundamentação
das relações humanas no amor e na caridade.
4) Igualdade
essencial de todos os homens, seja qual for a posição econômica ou classe social.
5) Valorização
da vida emotiva e sentimental sobre a puramente intelectual.
6) Consideração
da família como a mais imediata comunidade pessoal e educativa.
7) Desvalorização
da vida terrena presente ante o além, e, portanto, subordinação da educação à vida
futura.
8) Reconhecimento
da Igreja como órgão da fé cristã e, logo, como orientadora da educação (LUZURIAGA,
1977, p. 70).
Santo Agostinho, na condição de seguidor e defensor do cristianismo, levou em conta esses princípios ao elaborar seus princípios de educação. Porém, além de cristão ele também era cidadão romano. Por isso, acabou representando uma síntese da educação romana e da educação cristã, pois usou a oratória como instrumento de suas pregações e a parusia como meta de suas ações. Alicerçado nessas duas práticas educacionais, ele elaborou os fundamentos de sua visão de educação.
Princípios da Educação Agostiniana
Para falar da educação agostiniana há a necessidade de se fazer uma divisão entre os dois períodos de sua vida: o da pré-conversão e o da pós-conversão. O primeiro período foi marcado pelo desejo de se alcançar as benesses comuns a um cidadão romano de então: honraria, fama e dinheiro. Por isso, pode-se chamar essa primeira fase de imanente, pois estava voltada para os bens presentes e aos interesses mundanos.
A segunda fase, o da pós-conversão, mostra um Santo Agostinho voltado para as determinações divinas, tendo por base uma perspectiva salvífica3. Por isso, suas metas educativas transcendiam às necessidades voltadas para o horizonte ôntico, colocando o homem numa perspectiva de santificação. É a passagem do exterior para o interior (PEREIRA MELO, 2010).
Na primeira fase ele buscava privilegiar o trabalho com pessoas mais preparadas intelectualmente. Na segunda foram contemplados, também, os humildes e ignorantes. Se a primeira dava suporte para a preparação do cidadão terreno, a segunda auxiliava na estruturação do cidadão celeste, a partir de um processo de santificação, para reaproximar de Deus aquele que se afastou d’Ele pelo pecado. Essa santificação era fundamental para a vida junto com Cristo na cidade celeste (PEREIRA MELO, 2010).
Estabelecidas as fases da educação agostiniana, cabe apresentar alguns de seus princípios. Dos princípios da educação cristã, apresentados por Luzuriaga, cinco deles estão presentes nos princípios da educação agostiniana: o reconhecimento do valor do indivíduo como obra de Deus; a fundamentação das relações humanas no amor e na caridade; a valorização da vida emotiva e não somente a intelectual; a desvalorização da vida terrena e o direcionamento para a parusia; o reconhecimento da Igreja como órgão da fé cristã. Soma-se, a esses princípios um outro, vindo de Paulo de Tarso, que era fundamental para ele, o de que Cristo é o mestre, e por ele e nele se encontra a verdade. Por sua importância, a primeira abordagem é sobre a certeza que o teólogo tinha de que Cristo é o Mestre. Em De Magistro (Do Mestre), o título já sugere o que Santo Agostinho pensava sobre o tema, que é a certeza de que há um único mestre, Cristo. Um dos argumentos utilizados para defender esta tese, outrora defendida por antecessores do teólogo, é de que não se aprende pelo simples contato com as palavras, como normalmente se convencionou afirmar. Para ele, as palavras por si só nada dizem. Por isso, não é pela voz de quem fala, que só expressa palavras, que se aprende, mas quando consultamos nosso interior é que encontramos a compreensão, pelo mestre que ensina. Esta concepção agostiniana está, assim, expressa em De Magistro:
No que diz respeito, a todas as coisas que compreendemos, não consultamos a voz de quem fala, a qual soa por fora, mas a verdade que de dentro de nós preside a própria mente, incitados talvez pelas palavras e consultá-la. Quem é consultado ensina verdadeiramente, é este Cristo que habita, como foi dito, no homem interior. (SANTO AGOSTINHO, 1984, p. 319).
Esse processo de aprendizagem não tem um mecanismo simples. Ele se aproxima da maiêutica socrática, onde o mestre era uma espécie de parteiro de ideias, um vez que estas já estariam na alma do homem, herança de sua vida no Hades, antes da encarnação. Para Santo Agostinho, o homem tem capacidade intelectiva, porém, ele não aprende pelas palavras que lhe são expressas, mas “[...] o intelecto humano exerce atividade intelectiva quando o homem confere o que vê, escuta, lê ou pensa com a verdade inteligível que está na sua mente, apresentada por Deus” (NUNES, 1978, p. 221). Diferentemente de Sócrates, o mestre de Tagaste, não acreditava que o intelecto teria condições de realizar a reminiscência, pois assim teria que aceitar a teoria da preexistência das ideias e da reencarnação. Como cristão que era, isso seria inconcebível. Para ele, o conhecimento é um ato presente, concedido exclusivamente por Deus.
Se é certo que Deus habita o interior do homem e Ele é o Mestre, seria perda de tempo buscar o conhecimento por qualquer meio externo, pois percorreria caminho inverso de onde o conhecimento se realiza, que é em e por Deus, e o caminho para Deus é o interior do homem: “Não saias de ti, mas volta para dentro de ti mesmo, a verdade habita o coração do homem (SANTO AGOSTINHO, 1987, p. 106). Deus é a luz4, e é aquele que permite e possibilita ao homem conhecer. A partir dessa premissa seria razoável inferir que todas as pessoas teriam o mesmo grau de conhecimento, ao que Santo Agostinho rebate dizendo que, se por um lado Deus é a luz do espírito e fonte do saber, por sua vez, é o homem que tem o olhar para o entendimento, e segundo o teólogo, a capacidade de “visão interna” de cada um é diferente (SANTO AGOSTINHO, 1995).
Qual seria, então, o papel do professor no processo do conhecimento? Para o teólogo, ele seria o instrutor, uma espécie de intermediário e facilitador entre aquele que busca o conhecimento e a sua fonte. Definido o professor como instrutor, Santo Agostinho preocupou-se em esclarecer se a instrução é um bem ou não, uma vez que se pode instruir rumo ao equívoco. Em O Livre Arbítrio, ele mostrou-se convicto de que instruir é um bem, porém “[...] há duas espécies de instrução: uma que ensina a praticar o bem, e outra a praticar o mal” (SANTO AGOSTINHO, 1995, p. 27). Para ele, mesmo quando ao instruir se falar sobre o mal, esse é um ato positivo, pois ensina como evitar o mal, e não um convite a praticá-lo. Mesmo que o instruir não faça parte dos princípios agostinianos de educação, ele via na instrução, um instrumento eficaz na busca e no alcance do conhecimento.
Quanto ao princípio do reconhecimento do indivíduo como obra divina, o mestre de Tagaste fez uma explanação esclarecedora em O Livre Arbítrio, onde buscou demonstrar que o homem pecou por conta própria, e não por uma falha divina no ato de criá-lo. Assim sendo, mesmo com o pecado, o homem continua sendo importante, pois ele representa o ápice da criação divina, é ele aquele que mais se aproxima do seu criador, uma vez que foi feito à sua imagem e semelhança. Para o teólogo, essa imagem do homem tem que ser lembrada nas instruções cristãs, sempre reforçando a ideia de que se deve odiar o vício, jamais o homem (SANTO AGOSTINHO, 1990).
No que se refere à troca do intelectualismo por valores mais próximos aos dos cristãos, Santo Agostinho não precisou buscar em nenhuma fonte fora de sua própria experiência de vida, onde, parte dela, viveu sob a égide do intelectualismo. A sua conversão acabou se tornando um marco que estabeleceu um redirecionamento de seu olhar para outros valores, tendo por meta a parusia. Esse novo olhar exigiu uma postura radicalmente diferente da que ele tinha em sua relação com os bens terrenos, que lhe foram tão caros no passado. Ao descobrir Deus como a Verdade, não fazia mais sentido se prender àquilo que o distanciava d’Ele. Cabe, aqui, a mesma pergunta que Platão fez, através de Sócrates, no mito da caverna: “[...] não preferirá mil vezes ser um simples criado de charrua, a serviço de um pobre lavrador, a sofrer tudo no mundo, a voltar às antigas ilusões e viver como vivia?” (PLATÃO, 2000, p. 227). Tanto para Platão como para Santo Agostinho, aquele que conheceu a verdade, jamais desejaria voltar para o ilusório. Além de estabelecer princípios que fundamentariam a ação instrutiva, Santo Agostinho teve o cuidado de apresentar algumas sugestões de como exercer essa prática com a maior eficiência possível, fazendo com que esse ato fosse agradável e proveitoso para as duas partes, o instrutor e o instruído. Para isso estabeleceu algumas regras que poderiam auxiliar no ato de instruir, colocando a caridade como mola mestra deste agir.
(*)José Joaquim Pereira Melo é doutor em História e Sociedade pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1998) e pós-doutor em História da Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2007). Atualmente é Professor Associado da Universidade Estadual de Maringá – UEM e do programa de Pós-Graduação em Educação dessa universidade. E-mail: jjpmelo@hotmail.com
(**) Walmir Ruis Salinas possui graduação em filosofia pela PUC- PR e mestrado em educação pela UEM. Atualmente é professor da UNESPAR/Fecilcam – Câmpus de Campo Mourão. E-mail: walmir.salinas@gmail.com
http://www.fecilcam.br/revista/index.php/educacaoelinguagens/article/viewFile/633/369
(Continua no próximo Domingo ...)
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