A vigilância escatológica
Lucas
nos faz ver nossa vida em sua dimensão verdadeira. Vivendo no ambiente
mercantilista do Império Romano, Lc vê constantemente o mal causado pelas
falsas ilusões de riqueza e bem-estar, além do escândalo da fome (cf.
16,19-31). Se escrevesse hoje, não precisaria mudar muito. No evangelho, nos
ensina a vigilância no meio dessas vãs ilusões. A vigilância é uma atitude
bíblica, desde a noite da libertação do Egito, quando o anjo exterminador
visitou as casas dos egípcios, enquanto os israelitas, de pé, cajado na mão,
celebravam Javé pela refeição pascal, prontos para seguir seu único Senhor, que
os conduziria através do Mar Vermelho até o deserto (1ª leitura). A
vigilância é também a atitude do cristão, que espera a volta de seu Senhor, que
encontrando seus servos a vigiar, os fará sentar à mesa e os servirá. Pois já
fez uma vez assim (cf. 22,27). Jesus é o Senhor servo.
O trecho – se se adota a leitura
extensa – continua com outras sentenças e parábolas referentes à Parusia.
Explicam, de maneira prática, o que essa vigilância implica.
Ser um administrador sensato e fiel (12,42): cuidar do bem de todos os que
estão em casa (pela pergunta introdutória de Simão Pedro, 12,41, parece que
isto se dirige sobretudo aos líderes da comunidade). A vigilância não é ficar
de braços cruzados, esperando a Parusia acontecer, mas assumir o bem da
comunidade (cf. 1 Ts 5). Lc fala também da responsabilidade de cada um
(12,47-48). Quem conhecia a vontade do Senhor e, contudo, não se preparou, será
castigado severamente, ao invés do que não conhecia a vontade de seu senhor;
este se salva pela ignorância … a quem muito se deu, muito lhe será pedido; a
quem pouco se deu, pouco lhe será pedido.
O importante desta mensagem é que cada
um, assumindo a gente que Deus lhe confiou no dia-a-dia, está preparando sua
eterna e alegre companhia junto a Cristo, o Senhor que serve (o único que serve
de verdade … ). Pois Cristo ama efusivamente a gente que ele confia à nossa
responsabilidade. Não podemos decepcionar a esperança, que ele coloca em nós. A
visão da vigilância como responsabilidade mostra bem que a religião do
Evangelho não é ópio do povo. Implica até a conscientização política, quando,
solícito pelo bem dos irmãos, a gente descobre que bem administrar a casa não é
passar de vez em quando uma cera ou um verniz, mas também e sobretudo mexer com
as estruturas tomadas pelos cupins …
Essa
vigilância escatológica não é uma atitude fácil. Exige que a gente enxergue
mais longe que o nariz. É bem mais fácil viver despreocupado, aproveitar o
momento… pois quem sabe quando o senhor vem? (Lc 12,45). Para sustentar a
atitude de ativa vigilância e solicitude pela causa do Senhor, precisamos de
muita fé. Neste sentido, a 2ª
leitura vem sustentar a mensagem do evangelho. É a bela
apologia da fé, de Hb 11. A fé é como que possuir antecipadamente aquilo que se
espera; é uma intuição daquilo que não se vê (11,1). Com esta “definição”, é
claramente enunciado o teor escatológico da fé. O sentido original da fé não é
a adesão da razão a verdades inacessíveis, mas o engajamento da existência
naquilo que não é visível e palpável, porém tão real que possa absorver o mais
profundo do meu ser. Hb cita toda uma lista de exemplos desta fé, pessoas que
se empenharam por aquilo que não se enxergava. O caso mais marcanteé a
obediência de Abraão e sua fé na promessa de Deus (11,8-19). O texto continua:
muitos deram sua vida por essa fé, que fez Israel peregrinar qual estrangeiro
neste mundo (11,35b-38). Mas o grande exemplo fica reservado para o próximo
domingo: Jesus mesmo.
Convém,
portanto, abrir os olhos para aquela realidade que não aparece e, contudo, é
decisiva para a nossa vida. Sintetizando o espírito da liturgia de hoje,
poderíamos dizer: o mundo nos é confiado não como uma propriedade, mas como um
serviço a um Senhor que está “escondido em Deus”, porém na hora decisiva se
revelará ser nosso amigo e servo, de tanto que nos ama, a nós e aos que nos
confiou. Ou seja: já não vivemos para nós, mas para ele que por nós morreu e
ressuscitou (para nos reencontrar como amigos) (Oração Eucarística IV). Nesta
perspectiva, entende-se a bela oração do dia: somos adotados como filhos por Deus
e esperamos sua herança eterna; ideia que volta no salmo responsorial, que
descreve Israel como a herança que Deus escolheu para si; nós somos os
responsáveis da herança de Deus, sua gente neste mundo.
Do livro “Liturgia Dominical”,
de Johan Konings, SJ, Editora Vozes
Mensagem
Viver para
aquilo que é definitivo
O fim
para o qual vivemos reflete-se em cada uma de nossas ações. A cada momento pode
chegar o fim de nossa vida. Seja este fim aquilo que vigilantes esperamos, como
a noite da libertação, que encontrou os israelitas preparados para saírem (1ª leitura), e
não como uma noite de morte e condenação, como o empregado malandro que é pego
de surpresa pela volta inesperada de seu patrão (evangelho).
Devemos preparar-nos para o definitivo
de nossa vida, aquilo que permanece, mesmo depois da morte. Mensagem difícil
para o nosso tempo de imediatismo. Muitos nem querem pensar no que vem depois;
contudo, a perspectiva do fim é inevitável. Já outros veem o sentido da vida na
construção de um mundo novo, ainda que não seja para eles mesmos, mas para seus
filhos ou para as gerações futuras, se não têm filhos. Assim como os antigos
judeus colocavam sua esperança de sobrevivência nos seus filhos, estas pessoas
a colocam na sociedade do futuro. É nobre. Mas será suficiente?
Jesus abre outra perspectiva: um
tesouro no céu, junto a Deus. Aí a desintegração não chega. Mas, olhar para o
céu não desvia nosso olhar da terra? Não leva à negação da realidade histórica,
desta terra, da nova sociedade que construímos? Ou será, pelo contrário, uma
valorização de tudo isso? Pois, mostrando como é provisória a vida e a
história, Jesus nos ensina a usá-las bem, para produzir o que ultrapassa a vida
e a história: o amor que nos toma semelhantes a Deus. Este é o tesouro do céu,
mas ele precisa ser granjeado aqui na terra.
A visão
cristã acompanha os que se empenham pela construção de um mundo novo, solidário
e igualitário, para suplantar a atual sociedade baseada no lucro individual.
Mas não basta ficar simplesmente neste nível material, por mais que ele dê
realismo ao empenho do amor e da justiça. A visão cristã acredita que a
solidariedade exercida aqui na História é confirmada para além da História.
Ultrapassa nosso alcance humano. É a causa de Deus mesmo, confirmada por quem
nos chamou à vida e nos faz existir. À utopia histórica, a visão cristã
acrescenta a fé, “prova de realidades que não se veem” (2ª leitura ).
A fé, baseada na realidade definitiva que se revelou na ressurreição de Cristo,
nos dá a firmeza necessária para abandonar tudo em prol da realização última –
a razão de nosso existir.
Do
livro “Liturgia Dominical”, de Johan Konings, SJ, Editora Vozes.
franciscanos.org.
https://diocesejacarezinho.org/2019/08/19o-domingo-do-tempo-comumano-c/
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