sábado, 27 de agosto de 2022

SANTO AGOSTINHO

 


Por ERICO TADEU XAVIER(*)

 

Introdução

Agostinho de Hipona é um dos teólogos filósofos que influenciaram a teologia cristã expondo de forma filosófica e teológica as questões que inquietavam sua alma e que percebia como dilemas morais e intelectuais presentes na sociedade. Sistematizou a doutrina cristã utilizando-se do enfoque neoplatônico.

Agostinho foi um dos últimos teólogos da era Patrística, tendo se destacado por seus ensinamentos e interpretações das Escrituras, que deixou registrado em diversas obras que influenciaram a teologia cristã ao longo da história. O objetivo desse trabalho é apresentar o pensamento agostiniano à luz de seus escritos extraindo dos mesmos algumas lições para os dias atuais. Em suas obras argumentou em favor do cristianismo deixando um legado importante para a teologia cristã. Embora nem todas as suas conclusões doutrinárias estejam em conformidade com as Escrituras seus estudos são considerados de grande valia para a teologia atual possibilitando boa compreensão da história cristã nos seus primórdios.

Na história do Cristianismo muitos filósofos, historiadores e teólogos se destacaram pelos seus ensinamentos e interpretações das Escrituras e da visão filosófica a respeito de Deus e da vida. Agostinho de Hipona é um dos teólogos filósofos que influenciaram a teologia cristã expondo de forma filosófica e teológica as questões que inquietavam sua alma e que percebia como dilemas morais e intelectuais presentes na sociedade. Sistematizou a doutrina cristã utilizando-se do enfoque neoplatônico. Sua busca em desvendar os mistérios da fé passava pela interiorização refletindo a necessidade de obter o conhecimento de Deus tendo por finalidade alcançar a fé, base na qual fundamentou suas investigações.

AGOSTINHO: VIDA, CONFISSÕES E MORTE

 

Aurélio Agostinho (em latim Aurelius Augustinus) nasceu em Tagaste, Numídia (atual Suk Ahras, Argélia), norte da África, em 13 de novembro de 354. Filho de Patrício, oficial romano pagão convertido ao cristianismo pouco antes de sua morte, e de Mônica, cristã devota. Teve um irmão, Navígio, e uma irmã, Perpétua, a qual se tornou freira (CHAMPLIN, 1995).

Estudou em sua cidade natal e, posteriormente, em Madaura e Cartago. Sua educação incluiu gramática e aritmética, bem como profundo conhecimento da literatura latina, destacando-se na retórica; contudo, odiava o grego, tendo dessa língua adquirido pequeno domínio. Tinha paixão pelo teatro. Segundo Champlin (1995, p. 78), “sua formação e meio ambiente pagãos influenciaram adversamente a sua formação”.

Durante a juventude e o início da vida adulta, Agostinho se entregou a uma vida desregrada e promíscua, tendo se juntado aos 17 anos a uma concubina com quem viveu alguns anos sem se casar por oposição de sua mãe Mônica, de cuja relação resultou um filho, Adeodato, em 371 (GONZÁLEZ, 2005).

A leitura da obra de Cícero, Hortênsio, fez com que se voltasse para o maniqueísmo (seita agnóstica) e posteriormente para o ceticismo. Tornou-se professor de retórica em Tagaste (373-374) e em Cartago, onde permaneceu por nove anos. Mudou-se para Roma, fundando uma escola similar, em 383, e para Milão, em 384, sendo então seguido por sua mãe, que tinha interesse em seu progresso profissional e em trazer de volta ao cristianismo o cético Agostinho. Em Milão recebeu a influência da filosofia neoplatônica convencendo-se da existência de um Ser transcendente imaterial e obtendo uma nova compreensão do problema do mal. Nesse período conheceu e impressionou-se com os sermões do “bispo Ambrósio (c. 339-397), considerado o maior orador sacro da antiga igreja latina” (MATOS, 2008, p. 83).

A influência de um ensino rigoroso por parte de sua mãe e das leituras platônicas que invocavam uma vida de renúncia e contemplação, aliada ao convencimento que Ambrósio lhe passava, de que suas objeções à fé cristã não eram válidas, angustiavam Agostinho, que sabia ter descoberto a verdade com o intelecto, mas sentia não poder se dedicar a ela de coração. A conversão de alguns homens importantes, bem como de um de seus autores platônicos favoritos, o fez clamar a Deus por mudança (GONZÁLES, 2005).

Nesse momento, estando ele no horto de Milão, ouviu uma voz de criança que repetia a frase: “tolle, lege” (toma e lê). Percebendo como uma mensagem do Alto, abriu um livro de romanos que havia deixado sobre um banco e leu o capítulo 13:13-14, tomando então a decisão de tornar-se cristão. Abandonando a carreira pública, foi batizado por Ambrósio em Milão, juntamente com seu filho Adeodato, na Páscoa de 387 (MATOS, 2008).

Após a morte de sua mãe Mônica, retornou a Tagaste, onde vendeu grande parte de sua herança distribuindo aos pobres, conservando uma casa que foi transformada em uma comunidade monástica onde vivia com seus amigos monges. Embora não pretendesse tornar-se padre, após a morte de seu filho Adeodato, com apenas 19 anos, o bispo de Hipona o constrangeu a ser ordenado sacerdote em 391 e, em 395-396, foi ordenado bispo auxiliar de Hipona, tornando-se bispo da diocese. Conforme Champlin (1995, p. 78), Agostinho “mostrou ser um hábil administrador, pregador, polemista, correspondente e, acima de tudo, autor, cujos escritos exerceram vasta influência em sua época, como até hoje o fazem”.

Após 40 anos como bispo de Hipona, durante um episódio de cerco à cidade pelos vândalos, em 28 de agosto de 430, Agostinho faleceu, repousando seu corpo na cidade de Pávia, na Itália. Embora os vândalos tenham destruído toda a cidade de Hipona, a catedral e a biblioteca de Agostinho foram deixadas intactas.

Obras/Escritos de Agostinho

 

As obras de Agostinho são divididas por Elwell (1988. p. 33), em períodos, sendo as principais as seguintes:

Primeiro Período (386-96). Subdivide-se em duas categorias. A primeira consiste em diálogos filosóficos: Contra os Acadêmicos (386), A Vida Feliz (386), Da Ordem (386), Da Imortalidade da Alma e Da Gramática (387), Da Grandeza da Alma (387-88), Da Música (389-91), Do Professor (389), e Do Livre Arbítrio (FW, 388-95). A segunda consiste em obras contra os maniqueus: Da Moral da Igreja Católica (MCC) e da Moral dos Maniqueus (388), Das Duas almas (TS, 391), e Controvérsia Contra Fortunato, o Maniqueu (392). Também constam dessa categoria obras teológicas e exegéticas, tais como: Contra a Epístola de Maniqueu (397), Questões Diversas (389-96), Da Utilidade de Crer (391), Da Fé e do Símbolo (393) e algumas Cartas (L) e Sermões.

Segundo Período (396-411). Contém escritos anti-maniqueístas posteriores, dentre eles: Contra a Epístola de Maniqueu (397), Contra Fausto, o Maniqueu (AFM, 398), e Da Natureza do Bem (399). Também contempla escritos eclesiásticos, como: Do Batismo (400), Contra a Epístola de Petiliano (401) e Da Unidade da Igreja (405). E escritos teológicos e exegéticos: Confissões (C, 398-99), Da Trindade (T, 400-416), De Gênesis Segundo o Sentido Literal (400-415), Da Doutrina Cristã I-III (CD, 387), além de Cartas, Sermões e Discursos sobre Salmos.

Terceiro Período (411-30). Escritos principalmente anti-pelagianos: Dos Méritos e da Remissão dos Pecados (MRS, 411-12), Do Espírito e da Letra (SL, 412), Da Natureza e da Graça (415), Da Correção dos Donatistas (417), Da Graça de Cristo e Do Pecado Original (418), Do Casamento e Da Concupiscência (419-420), Da Alma e Sua Origem (SO, 419), O Enquirídio (E, 421), e Contra Juliano (dois livros, 421 e 429-30), Da Graça e do Livre Arbítrio (GFW, 426), Da Repreensão e da Graça (426), Da Predestinação dos Santos (428-29), e Da Dádiva da Perseverança (428-29). As últimas obras desse período são teológicas e exegéticas: A Cidade de Deus (CG, 413-26), Da Doutrina Cristã (CD, livro IV, 426), Retratações (426-27), Cartas, Sermões e Discursos Sobre Salmos.

Gonzáles (2005), destaca as seguintes obras de Agostinho traduzidas para o português: A Verdadeira Religião (2002), Solilóquios e Vida Feliz (1998), Comentário aos Salmos (1998), O Livre Arbítrio (1997), Confissões (1997), A Doutrina Cristã (2002) e A Graça I e II (2000).

Teologia Agostiniana

 

Por demonstrar grande influência em suas obras teológicas e exegéticas, Agostinho é considerado como o “Doutor da Graça”, a consciência da ortodoxia de seu tempo, tendo deixado uma herança teológica da era Patrística que influenciou toda a teologia posterior, até os dias atuais (HAMMAN, 1995).

A influência de Agostinho foi muito grande, não somente no que se refere à teoria do conhecimento, mas também em todo o campo da teologia e da filosofia. Foi principalmente por meio de Agostinho que a Idade Média conheceu a antiguidade cristã. Ele foi inovador no seu tempo. Poucos anos depois de sua morte houve quem atacou as suas doutrinas […]. E por fim, os medievais pensaram que Agostinho era o mais fiel expoente do cristianismo antigo. Hoje sabemos que a interpretação neoplatônica do cristianismo que ele propõe era uma inovação – uma inovação talvez para seu tempo, mas certamente não era o único modo como os cristãos haviam pensado sobre tais assuntos. […] é justo dizer que, com exceção do apóstolo Paulo, nenhum outro escritor cristão tenha sido tão lido e discutido mais do que Agostinho. (GONZÁLES, 2005, p. 31).

Alguns aspectos da teologia agostiniana são de particular interesse. Conforme expõe Elwell (1988), a teologia de Agostinho versava em torno de Deus, da criação, do pecado, do homem, de Cristo, da salvação e da ética. Segundo este autor, Agostinho cria que Deus possuía auto-existência, absoluta imutabilidade, singeleza, sendo triuno em uma única essência; é onipresente, onipotente, imaterial, eterno; não está dentro do tempo mas é o criador do tempo. Quanto à criação, esta não é eterna, surgiu do nada, e os dias de Gênesis podem ser longos períodos de tempo. Cada alma é gerada pelos pais. A Bíblia é divina, infalível, inerrante, tendo autoridade suprema sobre todos os demais escritos; não se contradiz. Qualquer erro advém das cópias, não dos manuscritos originais. Os livros apócrifos são também inspirados porque fazem parte da LXX, embora os judeus não os reconheçam.

O pecado se origina no livre arbítrio, um bem criado do qual deriva a capacidade de praticar o mal. Com a queda o homem perdeu a capacidade de praticar o bem sem a graça de Deus. O homem, criado por Deus sem pecado, deriva de Adão, o qual, tendo pecado, trouxe sobre a raça humana a herança do pecado. O homem é uma dualidade de corpo e alma, sendo a alma superior e melhor que o corpo.

Cristo é o Filho de Deus feito plenamente humano, porém sem pecado, mas também Deus, da mesma essência do Pai. Embora uma só pessoa, as duas naturezas (carnal e divina) estão distintas entre si, já que a natureza divina não se tornou humana na encarnação. A salvação é o eterno decreto de Deus. A predestinação é a presciência de Deus sobre a livre escolha feita pelo homem para os que são salvos e os que são perdidos. A salvação é operada pela morte de Cristo e recebida pela fé. As crianças são regeneradas pelo batismo à parte da fé.

A ética divina é representada pelo amor, que é a lei suprema. Todas as virtudes são definidas em termos de amor. A mentira sempre é errada e somente Deus é quem determina a dimensão dos pecados e dos mandamentos morais (ELWEL, 1998).

De modo geral, a teologia agostiniana buscou conhecer a Deus e a alma. Ele mesmo escreveu: “Desejo conhecer Deus e a alma. Nada mais? Nada mais” (CHAMPLIN, 1995, p. 78).

Na busca de conhecer mais profundamente a Deus, Agostinho esforçou-se por compreender e desvendar os mistérios da Santíssima Trindade. Em sua obra “Sobre a Trindade”, expõe muitas de suas reflexões, importantes para a compreensão de Deus como o Pai, o Filho e o Espírito Santo em uma unidade. Kelly (1994), explica que, durante toda a sua vida, Agostinho meditou nessa questão, indagando e defendendo-a, aceitando que Deus é, ao mesmo tempo, o Pai, Filho e Espírito Santo, porém distintos e coessenciais, embora um em substância.

Embora sua apresentação da ortodoxia trinitária seja totalmente bíblica, seu conceito de Deus como ser absoluto, simples e indivisível, que transcende as categorias, constitui o contexto onipresente de seu pensamento. […] A unidade da Trindade é, desse modo, estabelecida de maneira ostensiva em primeiro plano, excluindo-se rigorosamente todo tipo de subordinacionismo. Tudo o que se afirma a respeito de Deus é proclamado igualmente com relação a cada uma das três pessoas. […] “não só o Pai não é maior do que o Filho com respeito à divindade, mas também Pai e Filho juntos não são maiores do que o Espírito Santo, e nenhuma pessoa isolada dentre os três é menor do que a própria Trindade”. (KELLY, 1994, p. 205).

Nessa perspectiva, as três pessoas se distinguem dentro da Divindade por Suas relações mútuas. “Embora elas sejam idênticas no que diz respeito à substância divina, o Pai distingue-se como Pai porque Ele gera o Filho, e o Filho distingue-se como Filho porque é gerado. Da mesma maneira, o Espírito diferencia-se do Pai e do Filho na medida em que é ‘outorgado’ por Eles” (KELLY, 1994, p. 207).

O Pai, o Filho e o Espírito Santo são, cada um deles, Deus. E os três são um só Deus. Para si próprio, cada um deles é substância completa e, os três juntos, uma só substância. O Pai não é o Filho, nem o Espírito Santo. O Filho não é o Pai, nem o Espírito Santo. E o Espírito Santo não é o Pai nem o Filho. Os três possuem a mesma eternidade, a mesma imutabilidade, a mesma majestade, o mesmo poder. (AQUINO, 2008, p. 23).

Agostinho apresentou a Trindade como sendo três pessoas distintas unidas em uma relação real e eterna, mas não conseguiu explicar muito bem a processão do Espírito ou em que ela diferia da geração do Filho, afirmando que “o Espírito Santo não é o Espírito de um dEles, mas de ambos”, ou seja, provém de uma relação inseparável. Assim declarou: “O Filho vem do Pai, o Espírito também vem do Pai. Mas o primeiro é gerado, o último procede. De sorte que o primeiro é Filho do Pai, de quem é gerado, mas o último é o Espírito de ambos, visto que procede de ambos […]” (KELLY, 1994, p. 208).

A contribuição agostiniana mais original à teologia trinitária, segundo Kelly (1994), foram as analogias baseadas na estrutura da alma humana. Para Agostinho, existem vestígios da Trindade em todas as criaturas, pois elas somente existem por participarem das ideias de Deus, refletindo, dessa forma, a Trindade criadora. Ao afirmar, nas Escrituras: “Façamos o homem à nossa imagem […]”, revela-se três elementos distintos e, ao mesmo tempo, intimamente ligados e unidos entre si. A análise da ideia do amor também expressa uma analogia trinitária que fascinou Agostinho durante toda a sua vida, rumo à compreensão da Trindade.

Referências

 

AQUINO, Felipe Rinaldo Queiroz de. Na escola dos santos doutores. 6. ed. Lorena: Cléofas, 2008.

CHAMPLIN, Russel Norman; BENTES, João Marques. Enciclopédia de Bíblia teologia e filosofia. v. 1, A-C. 3. ed. São Paulo: Candeia, 1995.

ELWELL, Walter A. Enciclopédia histórico-teológica da igreja cristã. v. I, A-D. Trad. Gordon Chown. São Paulo: Vida Nova, 1988.

GONZÁLES, Justo L. (ed.). Dicionário ilustrado dos intérpretes da fé. Trad. Reginaldo Gomes de Araújo. Santo André-SP: Academia Cristã Ltda, 2005.

HAMMAN, Adalbert-G. Para ler os padres da igreja. Trad. Benôni Lemos. São Paulo: Paulus, 1995.

KELLY, John N. D. Patrística: origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da fé cristã. Trad. Márcio Loureiro Redondo. São Paulo: Vida Nova, 1994.

MATOS, Alderi Souza de. Fundamentos da teologia histórica. São Paulo: Mundo Cristão, 2008.

McDERMOTT, Gerald R. Grandes teólogos: uma síntese do pensamento teológico em 21 séculos de igreja. Trad. A. G. Mendes. São Paulo: Vida Nova, 2013.

(*)Pós-doutor em Teologia Sistemática pela FAJE – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia de Belo Horizonte (2014). Doutor em Filosofia e Teologia pela SATS – South African Theological Seminary (2011). Doutor em Ciências da Religião pela AIU – Atlantic International University de Honolulu, Hawaii.

 

https://www.nucleodoconhecimento.com.br/teologia/agostinho-de-hipona

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