terça-feira, 4 de outubro de 2022

ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA

 

Espiritualidade Franciscana

 

A.           O Modo de Viver Franciscano

 

A Vida e a Espiritualidade Franciscana que um frade assume como seu projeto pessoal de vida se concretiza nos seguintes eixos do viver evangélico e cristão:

Viver em Fraternidade

Francisco não se chamava de Dom, nem de Senhor Francisco, mas de Frei Francisco. Frei/frade são palavras derivadas do latim frater, que significa irmão. O frade é aquele que busca viver em comunidade, formando uma família, na qual há um só Pai – Aquele que está nos céus – e todos são irmãos de todos. Francisco viveu uma intensa relação de fraternidade com Cristo, o que fez dele um dom para os seus irmãos. E ele recomenda aos frades: "E sejam irmãos entre si". Na vida fraterna franciscana não pode haver irmãos de primeira ou de segunda categoria, todos são iguais em dignidade e direitos, respeitando-se o dom próprio que cada irmão recebe para ser posto a serviço da comunidade. A fraternidade franciscana envolve não só a comunidade de frades ou a família franciscana, mas alcança toda a humanidade e ainda a criação inteira, daí Francisco chamar de irmão o lobo, a água, o vento e até a morte corporal.



Viver em Pobreza

Francisco deixou tudo: riquezas, prestígios e até a própria família para seguir Jesus Cristo pobre. O Franciscano caracteriza-se pela sua doação total a Deus, desfazendo-se de tudo aquilo que possa distanciá-lo do seu Senhor. Sem nada de próprio, o frade é aquele que só tem uma tarefa: ser dom gratuito de Deus aos irmãos.



Viver em Obediência

Deixando tudo, Francisco só quis saber de uma coisa: cumprir a vontade de Deus. E isso se deu imitando Cristo obediente. O frade franciscano é aquele que renuncia todas as vontades pessoais, todos os quereres egoístas, e passa a querer somente uma única coisa: fazer a vontade de Deus. A vontade de Deus não é solta, mas muitas vezes é encarnada na pessoa dos seus pastores (o Papa, o Ministro Geral da Ordem, o Ministro Provincial e o Guardião).



Viver em Castidade

São Francisco renunciou todas as paixões deste mundo para viver somente para uma paixão: Jesus Cristo. O Franciscano renuncia as paixões humanas, o consolo e o afeto matrimônio para, imitando Jesus Cristo, estar inteiramente a serviço do Reino de Deus, sem nada que o prenda. Seu casamento é com o Deus de toda doçura e com a missão recebida dele.



Viver em Minoridade

Francisco quis viver entre os pobres, por isso se fez menor. O Franciscano é aquele que quer ser como Francisco, um menor entre os menores. Através de suas atitudes, o frade busca a pequenez evangélica. O Frade Menor é um homem que se identifica com o Cristo Servidor e procura estar junto aos menores e pobres, comprometendo-se com eles e com a promoção da justiça social.



Viver em Oração

São Francisco buscou viver uma intensa experiência de oração. Estava sempre em diálogo com Deus. O Frade Franciscano é aquele que procura estar sempre em comunhão e em diálogo com Deus, contemplando as coisas do alto e tendo uma profunda vivência de oração, isto é, de intimidade com o Deus que o ama e o agraciou com a vocação.



A Fraternidade Franciscana: uma comunidade de frades irmãos religiosos e de frades sacerdotes

Quem entra na vida Religiosa Franciscana não tem como objetivo primeiro ser sacerdote, ser padre. Tem, em primeiro lugar, a vontade de ser franciscano, de ser irmão, de ser frade. O ideal de vida dos Franciscanos é o mesmo para todos: seguir Jesus Cristo a modo de Francisco de Assis. O que todos têm de comum é a consagração religiosa, que os coloca a serviço a Deus e aos irmãos. Por isso, dentro da fraternidade não dever haver discriminação se este é padre e aquele irmão, pois antes de ser padre o franciscano tem como primeiro objetivo e compromisso ser irmão. Eles devem se ajudar mutuamente, animando-se nas dificuldades e convivendo fraternalmente. O Franciscano, no serviço à Igreja, às comunidades cristãs e também aos que não creem, prestam diferentes formas de serviços: trabalhando com o povo, catequizando, assistindo aos doentes, em movimentos populares, servindo nos trabalhos internos de sua comunidade religiosa, lutando pela paz, pela justiça, pelos direitos humanos, etc. Se o Franciscano assume o sacerdócio, ele também serve a Igreja na pregação, na administração dos sacramentos e no acompanhamento das comunidades cristãs em uma determinada diocese.



O Irmão Religioso Franciscano

Ser religioso não implica necessariamente ser padre. A finalidade da vida religiosa como já vimos é a imitação de Jesus Cristo, que viveu sobre a terra pobre, casto e obediente. A vida religiosa franciscana é uma forma de o cristão se consagrar a Deus. O Irmão Religioso Franciscano é aquele que assumiu viver o Evangelho de Cristo nas pegadas de São Francisco de Assis. O campo de trabalho do irmão é muito vasto e há muitas possibilidades de atuação apostólica na Igreja.



O Religioso Franciscano Sacerdote

Se ser padre não é o essencial da vida religiosa, tampouco é um empecilho para vivê-la. O sacerdócio é assumido pelo religioso como uma vocação a serviço da Igreja. O padre possui algumas funções que somente ele pode exercer como, por exemplo, administrar os sacramentos da confissão, da unção dos enfermos, presidir a celebração da Santa Missa, conduzir uma comunidade paroquial, etc. Hoje nem todas as funções e serviços paroquiais podem/devem ser assumidas pelo sacerdote; muitos ministérios podem/devem ser realizados por ministros leigos, o que também dá a oportunidade de o irmão atuar numa comunidade paroquial. O Religioso Franciscano Sacerdote deve se caracterizar por um jeito bem próprio de atuar no meio do povo, da Igreja, colocando sempre o Senhor no centro de tudo.



B.   O Itinerário Espiritual da Alma Franciscana

Na sequência, publicamos uma página do livro Itinerário da Alma Franciscana de um frade conventual e Servo de Deus, Frei Leon Veuthey, OFM Conv., cujo processo de canonização avança.  Ele entende a espiritualidade como um caminho para Deus, um itinerário pelo qual se chega à Santíssima Trindade, origem e destino de tudo o que existe, nos passos de São Francisco.



Itinerário de vida



Antes de empreender uma grande viagem, começa-se por organizar o itinerário: o destino que se deseja alcançar, o caminho a seguir, e os diversos meios necessários e apropriados para chegar ao fim. Ora, o homem é um viajante sobre a terra; vai passando por um tempo muito breve, sempre a caminho da eternidade, para onde o impele uma força irresistível, uma necessidade insuperável.

O que será para mim essa eternidade, esse abismo em que tenho que cair inevitavelmente, depois da carreira veloz da vida? Como será essa eternidade: feliz ou infeliz? E se eu posso escolher a felicidade ou a infelicidade sem fim: não será de importância suprema estabelecer bem o itinerário que conduz à felicidade, evitando assim a infelicidade eterna?

A vida presente termina com a morte, e com a morte começa a eternidade: como será para mim essa eternidade? Eis a questão que se põe a todo homem, ainda que não queira! Todos desejam naturalmente a felicidade eterna: mas, qual será caminho? Muitos o ignoram. Todavia, o cristão o conhece, conhece o caminho da felicidade. Foi Jesus quem disse: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Só Jesus pode indicar o caminho a seguir, porque só Ele é o caminho; só Jesus pode conduzir ao destino, porque só Ele é a verdade; só Jesus pode levar-nos à meta final, porque só Ele pode comunicar-nos a sua vida sobrenatural, que nos fará participantes da vida divina e da divina eternidade à qual somos chamados.



Diversas espiritualidades



Jesus indicou a todos os seus discípulos o itinerário da felicidade: Jesus é, pois, o caminho a seguir. Entretanto, são diversos os modos de seguir a Jesus: alguns, abandonando tudo por seu amor, consagram-se ao seu serviço, mediante os três votos de pobreza, obediência e castidade; outros, porém, o seguem no mundo, sem abandonarem os próprios bens, sem se ligarem com voto de obediência a um superior, vivendo no matrimônio. O itinerário é diferente, porém, tanto uns como outros, com maior ou menor facilidade, com maior ou menor segurança, poderão alcançar a meta.

Esta diferença de itinerário é, sobretudo, material e exterior, mas na escolha de um itinerário pode haver outra diferença, essa interior e espiritual, que se chama precisamente espiritualidade.

Assim, há na Igreja de Cristo uma espiritualidade beneditina, uma espiritualidade dominicana, uma espiritualidade inaciana, uma espiritualidade franciscana, etc.; cada qual é boa e santa, tem as suas vantagens e produz os seus santos.

Uma espiritualidade não se distingue de outra em razão da doutrina fundamental, que é a mesma em todas: a doutrina de Cristo, a doutrina do Evangelho; no entanto, existe um modo típico e uma maneira particular de seguir a Cristo. Na identidade da doutrina pode haver uma variedade de interpretação, uma variedade de espírito; é isso que constitui a espiritualidade particular.

A espiritualidade franciscana terá, pois, muitos pontos comuns com as outras espiritualidades cristãs, pelo fato de todas professarem a mesma doutrina, mas distinguir-se-á das outras em razão de seu espírito, e da importância que atribui a este ou àquele ponto da mesma doutrina. Enquanto que as outras espiritualidades atribuem particular importância ao esforço pessoal para chegar à união com Deus, a espiritualidade franciscana busca, acima de tudo, aquela união com Deus no amor, e desta união tira toda sua atividade; enquanto que aquelas tendem primeiramente ao desenvolvimento das atividades e das possibilidades naturais, para chegar depois à perfeição sobrenatural, esta renuncia à natureza, logo de início, e entrega-se toda, inteiramente, à ação sobrenatural de Deus, sob a qual somente pretende agir e da qual somente espera toda perfeição natural e sobrenatural. E, assim, enquanto que as outras espiritualidades são principalmente ativas, a espiritualidade franciscana é caracteristicamente passiva, unicamente sobrenatural, fora de todo dualismo de vida natural e vida sobrenatural; a espiritualidade franciscana é mística, inteiramente e por princípio, quer dizer, sobrenatural, porquanto inteiramente por princípio pretende desenvolver-se pela ação sobrenatural ou mística do amor divino.

Por isso, enquanto as outras espiritualidades assentam na base do espírito espiritual a obediência, o silêncio, a especulação e o esforço pessoal, a espiritualidade franciscana fundamenta-se na pobreza, considerada em toda a sua profundidade mística de renúncia, desapego de tudo, desapego pessoal, a fim de que a alma, despojada completamente e aniquilada em Deus, permita que Deus venha viver e agir em si. Desta pobreza, procederá a obediência, pois a alma vazia de si mesma, já não tem vontade própria. A especulação, sendo atividade demasiado pessoal e humana, cederá ao amor que é dom de si mesmo; é passividade mística sob o império do Amado.

Ora, o Amado é Jesus que, pela espiritualidade franciscana concreta, constitui toda a perfeição: portanto, nada de virtudes abstratas a conquistar, uma após outra, com a meditação e a vontade própria: mas sim conquistar Jesus, concretização de toda virtude, amando-o, contemplando-o e imitando-o! Quer dizer: será perfeito quem se transformar no objeto amado, como exige a lei do amor. “O amor transforma o amante no Amado” (São Boaventura). “Pela força do amor, serás transformado naquilo que amares”, diz nosso Doutor Seráfico (Sermão da Vigília de Natal).



Espiritualidade franciscana



A espiritualidade franciscana – mística, concreta e afetiva – não conhece outra regra de perfeição que não seja observar Jesus, amá-lo afetiva e efetivamente, e assim transformar-se nele até poder dizer com São Paulo: “Já não sou eu quem vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gálatas 2,10). Para São Francisco, todas as coisas eram intuitivas, obra espontânea do amor; contudo, ajudará o crescimento de nossa vida espiritual investigar a profundidade de doutrina que se esconde sob esta simples intuição de amor: toda a doutrina do aniquilamento próprio e da transformação em Cristo visa a nossa incorporação no seu Corpo Místico.

O aniquilamento é obra da pobreza, levada às suas últimas consequências de renúncia e desapego absoluto, conforme o ideal de São Francisco; a transformação e a incorporação é obra do amor de Jesus, e Jesus crucificado, fundamento e centro de espiritualidade franciscana, fonte da sua pobreza e do seu amor; ou mais simplesmente: fonte do amor à pobreza, que é o amor a Jesus crucificado. São Francisco encontrou o seu caminho quando o Crucificado lhe apareceu na solidão: “Ante aquela visão, a sua alma ficou inundada de amor; a lembrança da paixão de Cristo imprimiu-se-lhe no coração de tal modo que nunca mais pode pensar em Cristo e na sua cruz sem se desfazer em lágrimas e suspiros”.

Foi a cruz que inspirou a São Francisco o amor da pobreza, da humildade, do aniquilamento; tendo estabelecido o vácuo dentro de sua alma, o mesmo amor de Cristo o transformara, comunicando-lhe as virtudes e a própria vida de Cristo, vida humano-divina, que é toda a perfeição sobrenatural a que devemos aspirar.

Deste amor sobrenatural por Jesus procedem todas as outras características da espiritualidade franciscana: o amor a Maria, inseparável do amor a Jesus; mas um amor filial, íntimo, profundo, porquanto na identificação com Jesus deve-se amar Maria com o mesmo amor de Jesus, para quem Maria não é simples mãe adotiva, mas vida de sua vida e sangue de seu sangue.

O amor às criaturas é também consequência do amor a Cristo, o Verbo encarnado para quem e em quem tudo foi criado e cuja imagem anda impressa em todas as coisas; o amor de São Francisco pelos homens é o seu amor por Cristo em cujo Corpo místico todos formam, ou devem formar, um só Cristo.

Todavia, o amor de São Francisco não se detém em Cristo; tornado um com ele, São Francisco participa de seu amor inefável pelo Pai, ao qual devem regressar todas as criaturas, pelo Verbo encarnado, em um dar-se contínuo de amor no Espírito Santo. São Francisco sentiu a primeira centelha de amor, quando foi repelido por seu pai; então pôde dizer, com o enlevo que depois havia de ir crescendo por toda a vida e que seria o seu respirar profundo: “Pai nosso que estais nos céus…!”

Se Jesus é o fundamento e centro de toda a espiritualidade franciscana, o termo derradeiro do seu itinerário é o Pai, no oceano infinito do amor da Santíssima Trindade, que a franciscana Santa Verônica de Giuliani cantou com profunda elevação em seu Diário: “Parece que a alma se encontra como que nadando em Deus! Lida, lida sem parar e sempre se encontra em Deus; lida para encontrar Deus, conquanto sinta que está em Deus, busca a Deus no próprio Deus, e buscando-o em si o encontra”. E “tudo isto se passa no íntimo de minha alma, a qual se encontrava naquele mar imenso e infinito de Deus, que não é compreendido e de quem não se pode compreender a grandeza e imensidade. Deus possui em si a alma que se perde nele, e nele está nadando como o peixe na água e não encontra vida senão em Deus, para Deus, e com Deus. O coração amoroso de Deus comunica então à alma o seu próprio amor, desprende-a de tudo, e nela quer operar sozinho”.

Qual é a pessoa que não sente vibrar o coração perante a simples narrativa destas experiências de amor a que ele próprio é chamado? O homem foi criado para o amor, e o amor é a razão do seu ser e de toda a sua atividade. O Itinerário Franciscano conduz a esse amor, pelo caminho de renúncia da santa pobreza, a qual despoja de tudo para dar Tudo, isto é, para dar o Amor: Meu Deus e meu Tudo!



C) Admoestações de São Francisco

            As admoestações são exortações livres que Francisco fazia oralmente aos frades por ocasião dos Capítulos, para estimular e fortalecer estes mesmos irmãos no caminho do Evangelho. Ao modo de flechas disparadas da boca do Pai Francisco, as admoestações feriam o coração e a consciência dos frades e os fazia emendar-se e corrigir-se no rumo do Espírito do Senhor e do seu modo de agir. Elas podem ser vistas também como provérbios de sabedoria ou pérolas de espiritualidade condensada.

É interessante perceber nas admoestações como Francisco usa livremente as palavras da Escritura e dos Evangelhos e as entrelaça; isso mostra a naturalidade e com que ele vivia de fato a Palavra de Deus e como ela se encarnava verdadeiramente na vida dele.

            As admoestações se dividem em temas da vida e da espiritualidade franciscana.

 

1.    Do corpo do Senhor

 

Diz o Senhor Jesus a seus discípulos: Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai senão por mim. Se me conhecêsseis, certamente conheceríeis também meu Pai; e em verdade O conheceis bastante e O vistes. Diz-lhe Filipe: Senhor, mostra-nos o Pai, e isto nos basta. Diz-lhe Jesus: Há tanto tempo estou convosco e não me conhecestes? Filipe, quem me vê, vê também meu Pai. O Pai habita numa luz inacessível. O espírito é Deus, e a Deus ninguém jamais viu. Por isso, Ele não pode ser visto senão no espírito, porque o espírito é que vivifica, a carne de nada serve. E nem o Filho, no que é igual ao Pai, pode ser visto por alguém de forma diferente que o Pai e o Espírito Santo. Por isso, foram danados todos quantos viram o Senhor Jesus segundo a humanidade, e não O viram e não creram segundo o espírito e a divindade, que seja o verdadeiro Filho de Deus.

Do mesmo modo, todos os que veem o sacramento, santificado pelas palavras do Senhor sobre o altar através da mão do sacerdote, na forma de pão e vinho, e não veem e não creem segundo o espírito e a divindade que seja verdadeiramente o santíssimo corpo e sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, são danados, segundo o testemunho do próprio Altíssimo que diz: Isto é o meu corpo e o meu sangue do Novo Testamento [que será derramado por muitos], e: Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna. Por isso, o espírito do Senhor, que habita nos seus fiéis, é quem recebe o santíssimo corpo e sangue do Senhor. Todos os outros que não têm do mesmo espírito e presumem recebê-lo, comem e bebem o seu julgamento. E assim: Ó filhos dos homens, até quando tereis o coração pesado? Por que não reconheceis a verdade e não credes no Filho de Deus? Eis que todos os dias, Ele se humilha, assim como quando desceu do trono real para o útero da Virgem; cada dia, vem a nós, sob a aparência humilde; cada dia desce do seio do Pai sobre o altar, nas mãos do sacerdote. E como se mostrou aos Santos Apóstolos em verdadeira carne, assim, de igual modo, se mostra a nós no pão sagrado. E assim, vendo a sua carne, eles viam apenas a carne d’Ele, mas contemplando-O com os olhos espirituais, criam ser Ele o próprio Deus; assim também nós, vendo o pão e o vinho com os olhos corporais, vejamos e creiamos firmemente ser d’Ele o santíssimo corpo e sangue vivo e verdadeiro. E, desse modo, o Senhor está sempre com seus fiéis, como Ele mesmo diz: Eis que estou convosco até a consumação do século.

 

2.    Do mal da própria vontade

 

Disse o Senhor a Adão: Come de toda árvore; da árvore da ciência do bem e do mal, porém, não comas. Podia, pois, comer de toda árvore do paraíso, porque, enquanto nada fazia contra a obediência, não pecava. Come, pois, da árvore da ciência do bem aquele que se apropria de sua vontade e se exalta pelos bens que o Senhor diz e opera nele. E assim, por sugestão do diabo e transgressão do mandato, fez-se o pomo da ciência do mal. Por isso, importa que sustente a pena.

 

3.    Da perfeita obediência

 

Diz o Senhor no Evangelho: Quem não renunciar a tudo que possui, não pode ser meu discípulo; e: Quem quiser salvar sua alma, perdê-la-á. Abandona tudo quanto possui e perde seu corpo o homem que a si mesmo se oferece todo à obediência nas mãos de seu prelado. E tudo quanto faz e diz, sabendo não ser contra a vontade dele e sendo bom o que faz, é verdadeira obediência. E, sempre que o súdito perceber coisas melhores e mais úteis à sua alma que as ordenadas pelo prelado, sacrifique voluntariamente as suas a Deus e empenhe-se em plenificar em obra as coisas que são do prelado. Pois, essa é a caritativa obediência, porque satisfaz a Deus e ao próximo. E se o prelado ordenar algo contra sua alma, não lhe é lícito obedecer-lhe, mas não se separe dele. E se, por isso, tiver de suportar perseguição de alguns, ame-os mais diligentemente por causa de Deus. Pois, quem prefere sustentar perseguição a querer separar-se de seus Irmãos, permanece verdadeiramente na perfeita obediência, porque expõe sua alma por seus Irmãos. Há, pois, muitos religiosos que, em vista de coisas melhores do que as ordenadas por seus prelados, olham para trás e retornam ao vômito da própria vontade. Esses são homicidas e, por seus maus exemplos, põem a perder muitas almas.

 

4.    Ninguém se aproprie da prelatura

 

Não vim para ser servido, mas para servir, diz o Senhor.

Os que estão constituídos sobre os outros, gloriem-se tanto dessa superioridade como se estivessem encarregados do ofício de lavar os pés dos Irmãos. E caso se perturbem mais por lhes tirarem o cargo de Superior do que de deixarem o ofício de lavar os pés, mais bolsas acumulam para si com perigo para a alma.

 

5.    Ninguém se ensoberbeça, mas glorie-se na cruz do Senhor

 

Atende, ó homem, a que excelência te pôs o Senhor Deus, porque Ele te criou e te formou à imagem do seu dileto Filho, segundo o corpo, e à sua semelhança, segundo o espírito. E todas as criaturas que existem debaixo do céu, a seu modo, servem, conhecem e obedecem ao seu Criador melhor que tu. E também não foram os demônios que O crucificaram, mas tu com eles O crucificaste e ainda O crucificas, deleitando-te em vícios e pecados. De que, então, podes gloriar-te? Mesmo se fosses tão sutil e sábio que tivesses toda a ciência e soubesses interpretar todas as espécies de línguas e perscrutar sutilmente as coisas celestiais, de tudo isso não podes gloriar-te. Porquanto, um demônio conheceria as coisas celestiais e saberia com precisão das terrenas mais que todos os homens, ainda que houvesse alguém que recebesse do Senhor um especial conhecimento de suma sabedoria. Igualmente, se fosses o mais belo e o mais rico de todos e mesmo se fizesses maravilhas, a ponto de afugentares os demônios, tudo isso te é contrário. Pois, nada disso te pertence e de nada podes gloriar-te. Mas, nisto podemos nos gloriar: em nossas fraquezas e em carregar todos os dias a santa cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

 

6.    Da imitação do Senhor

 

Atendamos, irmãos, o Bom Pastor, que para salvar as suas ovelhas, suportou a Paixão da cruz. As ovelhas do Senhor seguiram-no na tribulação e na perseguição, na vergonha e na fome, na enfermidade e na tentação e em tudo o mais; e disso receberam do Senhor a vida sempiterna. Por isso, é grande vergonha para nós, servos de Deus, que os santos tenham feito obras e nós queiramos receber glória e honra apenas por citá-las.

 

7.    A boa operação siga a ciência

 

Diz o Apóstolo: A letra mata, mas o espírito vivifica.

São mortos pela letra os que cobiçam saber só as palavras, a fim de serem tidos mais sábios entre os outros e poderem adquirir grandes riquezas, para dá-las aos parentes e amigos. E são mortos pela letra aqueles religiosos que não querem seguir o espírito da letra divina, mas só cobiçam saber mais palavras e interpretá-las para os outros. E são vivificados pelo espírito da letra divina os que não atribuem a si toda a letra que sabem e cobiçam saber. Mas, pela palavra e pelo exemplo, devolvem-na ao altíssimo Senhor Deus, de quem é todo o bem.

 

8.    Do pecado de inveja a se evitar

 

Afirma o Apóstolo: Ninguém pode dizer: Senhor Jesus, a não ser no Espírito Santo; e: Não há quem faça o bem, não há um sequer. Portanto, todo aquele que inveja seu irmão pelo bem que o Senhor diz e faz nele, incorre no pecado de blasfêmia, porque inveja o próprio Altíssimo, que diz e faz todo o bem.

 

9.    Da dileção

 

Diz o Senhor: Amai vossos inimigos [fazei o bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos perseguem e caluniam]. Ama, pois, de verdade seu inimigo quem não se dói pela injúria que lhe é feita, mas se abrasa pelo amor de Deus por causa do pecado de sua alma. E mostra-lhe dileção em obras.

 

10.  Do castigo do corpo

 

Muitos são os que, quando pecam ou recebem injúria, frequentemente lançam a culpa sobre o inimigo ou sobre o próximo. Mas não é assim: porque cada um tem o inimigo em seu poder, a saber, o corpo, pelo qual peca. Por isso, feliz aquele servo que sempre mantiver preso em seu poder tal inimigo e dele sabiamente se guardar; porque, enquanto fizer isso, nenhum outro inimigo, visível ou invisível, poderá fazer-lhe mal.

 

11.  Ninguém se corrompa pelo mal de outrem

 

Nada deve desagradar ao servo de Deus senão o pecado. E se uma pessoa pecar, seja qual for o modo e, se por esta razão e não por caridade, o servo de Deus se perturbar e se irritar, entesoura culpa para si. Vive retamente, sem nada de próprio, aquele servo de Deus que não se irrita nem se conturba diante de alguém. E feliz é quem não retém algo para si, dando a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.

 

12.  Como conhecer o espírito do Senhor

 

É assim que se pode conhecer se o servo de Deus tem do Espírito do Senhor: Se, quando o Senhor opera algum bem por ele, nisso sua carne não se exalta – porque ela sempre é adversa a todo o bem – mas, se pelo contrário, ante seus olhos se tem por mais vil e se estima o menor de todos os homens.

 

13.  Da paciência

 

Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus. O servo de Deus não pode saber quanta paciência e humildade tem em si, enquanto está satisfeito consigo. Quando, porém, chegar o tempo em que os que deveriam satisfazê-lo, fazem-lhe o contrário, quanta paciência e humildade aí tiver, tanta tem e nada mais.

 

14. Da pobreza de espírito

 

 

 

 

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