A PASTORAL DA PALAVRA (V)
6 – A
Homilia
1. Que é uma homilia
A homília é um tipo especial de pregação
com características próprias. Há muitos tipos de pregação. Assinalemos
alguns deles: O panegírico, que tende a ressaltar as virtudes
de um santo e inculcar nos fiéis a sua imitação.
A homilia é aquele tipo de oratória sagrada que convém
mais à celebração litúrgica da eucaristia e dos sacramentos. Ou melhor,
as celebrações litúrgicas foram criando, a partir da mais remota antiguidade,
um gênero especial dentro da oratória – a homilia -, espécie de comentário dos
textos da celebração aplicado aos fiéis, como participantes da celebração e
como cristãos que devem viver o que celebram.
Etimologicamente falando, homilia
vem da palavra grega “homilia” (reunião, conversa familiar) e esta por sua vez
do verbo “homilein” (reunir-se, conversar). Assim, pois, o termo grego
homilia significa trato ou conversa familiar.
Retoricamente com a palavra homilia se designa aquele gênero de
oratória mais simples e familiar em oposição ao ‘discurso”. Fócio nos diz
que uma homilia se distingue de um sermão pelo fato de que a primeira se
expunha familiarmente pelos pastores e era uma espécie de conversa entre eles e
a assistência; o sermão, ao contrário, era feito a partir do púlpito em forma
mais solene. O sermão era composto segundo as regras da retórica e da arte
oratória, ao passo que a homilia é a interpretação familiar da Sagrada
Escritura, feita com um fim prático e moral. A homilia, mais do que mover
e excitar os ânimos, destina-se a instruir e edificar os fiéis a propósito dos
mistérios da fé.
Liturgicamente, a homilia é uma parte integrante da liturgia da
Palavra (cf. SC n. 52). Note-se que até antes da reforma litúrgica
conciliar dizia-se que, depois do Evangelho, a liturgia era interrompida para
que os fiéis ouvissem a homilia. O fato de que atualmente a homilia seja parte
integrante da liturgia nos obriga a precisar muito mais seu sentido e função.
Tecnicamente, na homilia
distinguem-se duas funções litúrgicas importantes:
a) a de ser aplicação da mensagem ao
hoje e aqui de nossas vidas;
b) a de ser ponte entre a liturgia da
palavra e a liturgia eucarística ou sacramental.
Quanto à primeira função (a)
antecipamos que a mensagem da Escritura tem uma atualidade (e não simplesmente
uma aplicação moral) que foi sublinhada pela Constituição Sacrosanctum
Concilium (cf. n. 33 e 7).
Quanto à segunda função (b)
pode-se dizer que a homilia é o elo entre a “liturgia verbi” e a “liturgia
sacramenti”. É o que liturgicamente se denomina “passagem para o rito”.
A homilia (que nunca é um sermão isolado, mas que está dentro de uma
celebração) deve concatenar a palavra ouvida com a celebração e mostrar sua
atualidade precisamente na ação sacramental, como logo comentaremos mais
extensamente. Isso segundo a melhor tradição patrística e segundo a
Constituição Sacrosanctum Concilium (n. 35,2).
Ambas as funções coincidem, pois,
no fato de conectar a Palavra de Deus com o hoje e o aqui de
nossa celebração ou de nossa vida.
A homilia se distingue, pois,
claramente de outros gêneros de oratória sagrada, como o panegírico, o
comentário bíblico-exegético, o clássico sermão piedoso, a oração
fúnebre. E com mais razão se distingue de uma classe de catequese ou de
teologia (embora a homilia possa e até deva aplicar certos princípios
empregados na catequese).
2. Origens e história da homilia
A homilia mergulha suas raízes no
povo bíblico de Israel. Sabemos que muito antes de Jesus e no tempo de
Jesus, terminada a leitura do texto bíblico na sinagoga, fazia-se a homilia
que se encerrava com o qaddis, oração aramaica da qual Jesus
tomou, ao que parece, as duas primeiras petições do Pai,-nosso. “Moisés –
diz Tiago em Atos 15,21 – tem em cada cidade os seus pregadores, que o lêem nas
sinagogas todos os sábados”. A mesma coisa é confirmada pelo historiador
judeu Flávio Josefo.
O próprio Evangelho nos oferece
um exemplo eloqüente por parte de Jesus deste comentário homilético das
Escrituras, na passagem da sinagoga de Nazaré (Lc 4,16-30).
Na verdade, trata-se da primeira homilia cristã que se conserva num resumo escrito
e na qual o próprio Jesus é o pregador e protagonista. É um claro comentário
ao texto de Isaías e uma clara aplicação do texto ao momento
presente, assim como à situação concreta dos que estão
reunidos na sinagoga, incluindo o próprio Jesus (cf. v. 23s). Mais ainda:
o texto de Lucas deixa entrever que Jesus tinha o costume de ir à sinagoga no
sábado e fazer a leitura (v. 16) e também de ensinar nas sinagogas com louvor
dos assistentes (v. 15).
Sabemos também por João
6,59 que Jesus pronunciou o discurso do pão de vida na sinagoga
de Cafarnaum, provavelmente na festa de Páscoa (cf. Jo 6,4),festa
que naquele ano Jesus passou na Galiléia já que não podia ir à Judéia (cf.
7,1). Também em tal passagem há um longo comentário de diversos textos
do Antigo Testamento sobre a páscoa e sua aplicação ao momento presente dos
ouvintes (a presença de Jesus entre eles e a fé em sua palavra) e a situação
conjuntural (a celebração da páscoa judaica que antecipa a páscoa cristã).
Temos outro exemplo eloqüente de
outra homilia de Jesus, desta vez com os dois discípulos, na caminhada de Emaús
(Lc 24,13-35). Trata-se de uma homilia no sentido mais
genuíno da palavra: “conversa familiar”. Jesus, ao longo da rota que leva
de Jerusalém a Emaús, vai interpretando o momento presente à luz dos textos
escriturísticos. Trata-se de uma verdadeira “liturgia verbi” que prepara
os corações dos discípulos para a “liturgia sacramenti”, para o
calor da celebração, para a profundidade do encontro eucarístico com Jesus na
casinha de Emaús. Na verdade, as palavras de Jesus atualizam os textos
bíblicos (cf. v. 27) e preparam os corações para a celebração eucarística (cf.
v. 29 e 32).
A recitação, ou melhor, a
proclamação da Bíblia e sua interpretação nas sinagogas, não pôde deixar de ter
profundos vestígios entre os judeus-cristãos presentes às reuniões sinagogais.
É preciso levar em consideração que os primeiros cristãos, antes de sua
conversão e mesmo depois dela, estiveram em contato com o templo, e aos sábados
com a sinagoga.
Recordemos também que alguns
textos neotestamentários parecem ser textos homiléticos (p. ex. alguns fragmentos
da primeira carta de São Pedro). Sabemos também que os apóstolos
praticaram o comentário homilético (p. ex. a famosa “conversa” de Paulo em Trôade
dentro de uma reunião de caráter claramente litúrgico (At 20,7-12).
Entre os escritos cristãos
pós-bíblicos, o primeiro testemunho que faz referência clara à homilia como
parte da liturgia da Eucaristia encontra-se em Justino. Assim diz em sua
primeira Apologia (escrita pelo ano de 153) ao explicar a Missa:
«… E no dia chamado do sol,
faz-se uma reunião num mesmo lugar de todos os que habitam nas cidades ou nos
campos, e lêem-se os comentários dos apóstolos ou as escrituras dos profetas,
na medida em que o tempo o permite. Depois, quando o leitor acabou, quem
preside exorta e incita pela palavra à imitação dessas coisas excelsas.
Depois nos levantamos todos ao mesmo tempo e recitamos orações” (n. 67)
Trata-se de uma homilia dominical
(Justino fala do ‘dia chamado do sol’ e não do ‘dia do Senhor’ para ser
compreendido pelos leitores gentios, a quem dirigia sua Apologia). A
homilia dessa reunião dominical situa-se depois das leituras e antes da oração
universal que precede a apresentação das oferendas para a Eucaristia.
Trata-se, pois, de uma homilia eucarística tal como se pratica em nossas
igrejas hoje em dia.
São famosas as homilias dos
Santos Padres (séc. II-VIII) que em grande parte nos foram transmitidas por
escrito. São o comentário vivo da Bíblia por parte da Igreja dos
primeiros séculos. São também um testemunho de que a liturgia nos
conserva a melhor vivência da fé bíblica e a melhor “summa theologica” de todos
os tempos.
Nos séculos posteriores, quando
no Ocidente a ação litúrgica se torna arcana e clerical e deixa de ser uma ação
inteligível para o povo, a homilia de feição patrística ou escriturística
desaparece, ao menos de modo geral, e já não figura nos livros litúrgicos.
Entramos assim numa era de ausência de comentários homiléticos que serão de
alguma forma substituídos (mas não convenientemente supridos) pela pregação
extralitúrgica .
As Rubricas gerais do Missal de São Pio V (1570) não falam da homilia:
da proclamação do Evangelho passa-se ao Credo. Contudo, o Rito
que se deve observar na celebração da Missa supõe a
possibilidade de que haja uma pregação depois do Evangelho (cf. VI, 6).
Recordemos também que na
administração da maioria dos sacramentos, dos séculos que nos precedem, não
está prescrita nem prevista a leitura da Palavra de Deus nem, conseqüentemente,
seu comentário homilético. Podemos ver um resto da homilia na catequese
do Pontifical Romano que o bispo dirige aos ordenandos. Quando os
sacramentos, sobretudo o matrimônio, são celebrados dentro da Missa, coisa
freqüente nas últimas décadas que nos precedem, costumam comportar um
comentário homilético.
Em alguns países, até não muito
antes do Concílio Vaticano II, dar-se-á a estranha superposição de uma pregação
ao longo da missa dominical, que se celebra em voz baixa e em latim.
Embora chocante para nós, não o era tanto no ambiente da época, se levarmos em
conta que na missa se praticava todo gênero de devoções. Na melhor das
hipóteses, esta pregação desenvolvia o tema do evangelho. Aqui está o que
a este propósito prescreveram as Rubricas de 1960, promulgadas por João XXIII:
“Depois do evangelho, sobretudo
aos domingos e dias de festa de preceito, dirigir-se-á ao povo, segundo as
circunstâncias, uma breve homilia. Mas esta homilia, no caso de ser feita
por um sacerdote que não o celebrante, não deve sobrepor-se à celebração da
missa, impedindo a participação dos fiéis; também então a celebração deve ser
interrompida e não deve voltar a continuar enquanto a homilia não tiver
terminado”.
O Concílio Vaticano II encontra o
terreno preparado para uma reabilitação da homilia, graças à renovação
litúrgica das últimas décadas e, concretamente, graças ao documento que acabo
de citar. Insiste no fato de que a homilia deve partir do texto sagrado
proclamado e estabelece que a homilia é parte da própria liturgia.
Depois de assinalar a importância da Palavra de Deus (cf. SC n. 24
e 51), diz no n. 52 da Sacrosanctum Concilium:
«Recomenda-se vivamente, como
parte da própria Liturgia, a homilia sobre o texto sagrado, em que, no decurso
do ano litúrgico, se expõem os mistérios da fé e as normas da vida cristã; não
deve ser omitida sem grave causa nas missas dominicais e nas festas de preceito,
concorridas,pelo povo».
https://presbiteros.org.br/manual-de-homiletica/
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