TODOS OS SANTOS E SANTAS
Por
Maria de Lourdes Corrêa Lima
A Igreja santa, na terra e no céu
Introdução geral
As três leituras da
solenidade de Todos os Santos nos apresentam um fato: Deus, o Santo, quer fazer
de nós imagens suas. A santidade não é uma realidade só para alguns, mas para
todos. Não é um tema simplesmente da vida privada, mas, envolvendo nosso ser
mais pessoal, faz parte de nosso testemunho diante do mundo. Ela também não é
algo a ser vivido só na outra vida, mas começa agora o que depois se
plenificará.
Comentário dos textos bíblicos
- Evangelho (Mt 5,1-12a)
As bem-aventuranças
são palavras que ensinam os discípulos, anunciando-lhes promessas e
mostrando-lhes o caminho do seguimento de Jesus. Indicam a subversão dos
critérios do mundo: os que são considerados como nada são ditos felizes.
Trata-se de uma felicidade de outra dimensão, onde o cristão se alegra não
obstante os sofrimentos (v. 12: “alegrai-vos!”). As bem-aventuranças são,
assim, imagem da nova ordem, do mundo novo, do Reino que Jesus inaugura e que
já se inicia agora; são também retrato do próprio Jesus: ele é o primeiro a ser
pobre em espírito, manso, misericordioso… E, com isso, elas são orientação para
os discípulos.
Os santos viveram
essa assimilação à pessoa de Jesus. São hoje bem-aventurados no céu, mas já
começaram, pela vivência cotidiana dos valores das bem-aventuranças, a sê-lo
nesta terra. A vida segundo o evangelho não é uma vida tristonha, revoltada,
mas já nos faz, aqui e agora, saborear a bem-aventurança celeste. Quem está com
Jesus já participa, na sua vida concreta, da bem-aventurança prometida.
Não se trata, porém,
de simples divisão: um é santo, e o outro, pecador. Embora não se possa negar
fundamentalmente essa diferença, a santidade da Igreja é realidade que se
verifica no interior de cada um. Cada um pode ter em si algo da santidade e
algo do pecado. A Igreja é santa naquilo que, no coração de cada fiel, é
orientado pelo amor que provém de Deus, leva a Deus e à dedicação sem limites
aos irmãos.
Bem-aventurados são,
primeiramente, os “pobres em espírito”. Não se trata nem de pobreza unicamente
material nem de pobreza puramente espiritual. Trata-se de saber renunciar às
riquezas materiais, usando-as para o bem comum, com a liberdade interior que
provém dos imperativos do evangelho. Isso é impulso para que a justiça social
aconteça na sociedade. A Igreja, os cristãos, vivendo essa pobreza evangélica,
tornam-se sinais do mundo novo.
Essa atitude se
expressa também na mansidão, que, não se impondo com prepotência, mas sendo
vivida em espírito de serviço, terá sua recompensa na outra terra. E naqueles
que, aflitos, resistem ao mal sem fazer o mal e agem, com esperança em Deus, em
favor do restabelecimento da ordem querida por ele. Não se desesperam porque
esperam a consolação que não vem da justiça humana, mas de Deus. A eles estão
ligados os que têm fome e sede de justiça, aqueles que sofrem sem verem seus
direitos respeitados, mas têm já a certeza daquela justiça que nunca falhará.
Os misericordiosos
são bem-aventurados porque deixam transbordar da riqueza de seu coração algo
que os faz, talvez sem se dar conta, imagem da infinita misericórdia de Deus, a
eles reservada. Os puros são aqueles que podem estar diante de Deus sem
máscaras, pois nada têm a esconder. Mesmo se encantando com os valores deste
mundo, sabem que só vale aquilo que traz o reflexo de Deus; e, assim, elevam
tudo para Deus. Os que promovem a paz são os que vivem a reconciliação, que começa
com Deus e, daí, deve se expandir aos relacionamentos e estruturas humanas.
Por fim,
bem-aventurados são os perseguidos por causa da justiça, que mantêm as medidas
justas e não se dobram perante medidas injustas. São, assim, sinal de
contradição e se tornam um desafio e mesmo uma acusação. Por isso lhes advém a
mesma sorte de Jesus: o desprezo e até o ódio.
Na
versão do Evangelho de Lucas, Jesus pronuncia as bem-aventuranças “erguendo os
olhos para seus discípulos” e dizendo: “Bem-aventurados vós, os
pobres… Vós, que agora
tendes fome… Vós que
agora chorais… Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem…”
(Lc 6,20-23). É como se Jesus já visse neles realizado algo da beleza das
bem-aventuranças. As bem-aventuranças não são uma teoria, mas se realizam já
neste mundo. Assim, não se deve ler as bem-aventuranças sem olhar para tantos
que já agora são puros, santos, honestos… A Igreja é santa nos céus, mas o é
também naqueles que, já aqui, se deixam guiar pela vivência radical do
evangelho. Todos esses que procuram viver o evangelho celebram, com os santos
canonizados, a festa de Todos os Santos. E podem alegrar-se e exultar porque,
pela graça, terão grande recompensa em Deus (cf. Mt 5,12).
- I leitura (Ap 7,2-4.9-14)
Na primeira cena da
leitura de hoje, do livro do Apocalipse, vemos os fiéis em meio a grandes
provações. Sem livrá-los das dificuldades, Deus, intervém em seu favor. Eles
são marcados com “o selo do Deus vivo”, identificados como “servos de Deus” (v.
3). A marca que recebem é o batismo, que, na comunidade cristã primitiva,
muitas vezes aparece na imagem do “selo” (cf. 2Cor 1,21-22). Ele faz do cristão
propriedade de Deus e, por isso, é sinal que protege do juízo escatológico.
Dessa forma, já agora pertencem a Deus e depois chegarão à glória de Deus,
estarão de pé diante de seu trono (v. 9).
Em seguida, o texto
apresenta a visão dos eleitos no céu, aqueles marcados com o selo (v. 9-14).
Eles são incontáveis (cf. Gn 15,5: a promessa a Abraão), num número de grandeza
incomparável (12 x 12 x 1.000, v. 4), e provêm de todas as partes do mundo. São
admitidos onde antes estavam só os anciãos e os quatro seres vivos: à presença
de Deus (cf. Ap 5,6-8). Portam vestes brancas, a vida nova na qual entraram
pelo batismo e que se plenifica na glória celeste. E têm nas mãos palmas,
símbolo da vitória (v. 9). Foram purificados pelo batismo, no qual se torna
realidade a força salvadora da cruz, e, passando pela provação, a venceram (v.
13-14).
Por isso participam
da liturgia celeste. O hino que cantam proclama Deus e o Cordeiro como autores
da sua salvação (v. 10). O batismo, a força de vencer as provações, tudo eles
receberam da graça de Deus. A eles se juntam os anjos, os anciãos e os quatro
seres vivos, que cantam a glória e a majestade de Deus (v. 11-12).
Dessa forma, em duas
cenas, uma terrestre (v. 2-4) e outra celeste (v. 9-14), o Apocalipse abre a
realidade da ação salvadora de Deus, que já nesta história santifica os seres
humanos e os guia para a meta última, a glória, na qual participarão da liturgia
que não terá fim.
- II leitura (1Jo 3,1-3)
A vida do cristão
transcorre entre dois momentos: o agora e o que virá. O primeiro momento (v. 2)
já é marcado pela realidade transcendente: somos realmente filhos de Deus. No
Antigo Testamento, o povo de Israel aparece, embora raramente, como filho de
Deus, mas num sentido simbólico, para indicar a estreita relação de pertença a
Deus (cf. Os 11,1) e a realidade de ser obra das mãos de Deus, que é o Criador
e aquele que formou o povo eleito (cf. Is 64,7; 63,16). No Novo Testamento, não
se trata de um símbolo, mas de uma realidade. O único Filho de Deus, Deus como
Deus, fez-se humano. E por sua obra redentora (cruz-ressurreição) deu-nos real
participação na sua vida de Filho. Isso começa em nós pelo batismo. Essa realidade
encontra-se, contudo, marcada pelos limites da história (geral e pessoal).
O segundo momento é a
vinda futura do Filho de Deus. Então aquilo que já somos (filhos) será levado à
plenitude. Quando encontramos alguém que amamos e que nos ama, nosso semblante
se ilumina. Sorrimos, falamos… com confiança diante de um amigo. Quando
encontrarmos a Deus, sua divina face iluminará a nossa face. Nosso “semblante”
será iluminado. Resplandecerá em nós seu amor, sua divina Pessoa… Nossa
semelhança com ele chegará ao ápice.
Essa esperança deve
guiar nossa vida, dando-nos força e motivos para permanecermos fiéis, trazendo
às categorias, valores e estruturas de nossas sociedades, que tantas vezes
rejeitam o evangelho, a interpelação que vem de Deus. Assim, o cristão não só
se santifica, mas santifica a história.
DICAS PARA REFLEXÃO
–
O Concílio Vaticano II, no documento Lumen
Gentium, fala da vocação de todos à santidade. Estamos convictos de
que temos o chamado para ser santos?
De que nosso testemunho perante a própria Igreja e perante a sociedade passa
pela resposta a essa vocação?
– Em que consiste a
santidade da Igreja, dos cristãos? Como ser cristão coerente num mundo em que
há tantas estruturas e valores que contrariam o evangelho?
– Nossa santidade é
mais obra nossa ou de Deus?
Maria de Lourdes Corrêa Lima
Professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e do Instituto
Superior de Teologia da Arquidiocese do Rio de Janeiro. Doutora em Teologia
(Bíblica) pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma). É membro da Ordem das
Virgens da Arquidiocese do Rio de Janeiro. E-mail: mllima@puc-rio.br
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/1o-de-novembro-todos-os-santos-e-santas/
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