Pe. José Eduardo: “Estamos caminhando para a
ditadura total”
"O absolutismo
de uma democracia abstrata é justamente aquilo que a ameaça"
Michel
Foucault formulou a sua teoria da “microfísica do poder” a partir da percepção
de que as relações humanas são omnipresentemente relações de poder. A teoria,
em si, tem os seus aspectos interessantes, mas padece de um erro fatal:
pretender analisar a realidade a partir de um aspecto que, ainda que seja
onipresente, é parcial. É como se tomássemos uma descrição por uma definição,
já que, de certo modo, parafraseando os latinos, “relatio et potestas
convertuntur”, “relação e poder se implicam mutuamente”.
Foucault,
neste sentido, criou uma espécie não de “microfísica” do poder, mas de
“metafísica” do mesmo, no sentido de que percebe que o “poder” corresponde
àquilo que Aristóteles e S. Tomás de Aquino chamavam de “os transcendentais do
ente”. Obviamente, para mim, o “poder” não é um transcendental das relações no
mesmo sentido em que esta palavra tem nos clássicos; estou apenas tentando
mostrar a tentativa filosófica de Foucault. Aliás, houve outras tentativas do
gênero, como a de Leonardo Polo, que tentou transformar a “liberdade” num
transcendental de “pessoa”.
Os transcendentais
Para
Aristóteles e S. Tomás, há seis características que decorrem do ser enquanto
tal: aliquid (algo), res (coisa), unum (uno), verum (verdadeiro), bonum (bom)
e pulchrum (belo). Os “transcendentais do ente” são aspectos
da própria realidade de tudo que é.
Neste
sentido, os transcendentais chamam-se tais justamente porque, embora sejam
aspectos de todos os seres enquanto tais, não se dão neles de maneira total,
mas participada; e isso porque o próprio ato de ser que eles exercem é, em si,
uma participação limitada criada do, no e pelo Ser divino.
Uma noção transcendental de democracia?
Ora, se
Foucault tentou criar uma espécie de “transcendental da relação”, os nossos
contemporâneos têm tentado criar uma noção transcendental de democracia. E isso
vem desde longe, desde, pelo menos, os tempos da Revolução Francesa.
Não
importa se o sujeito está matando, prendendo, invadindo a privacidade, criando
crimes inexistentes na lei, atingindo poderes constitucionais, expropriando
pessoas de seus bens… uma noção transcendental de “democracia” pode ser
suportada por qualquer uma dessas ações.
Isso, em
si, não carece de lógica. De fato, como muito bem já foi apontado, a democracia
não pode se auto-gerar por meios democráticos, visto que ela teria que existir
antes de si mesma. Por isso, os destruidores da democracia sempre levam
vantagem sobre os seus criadores, visto que são eles que, de fato, usam de
força para fazer prevalecer a vontade de um povo impotente.
O que é democracia?
Contudo,
o que é, de fato, uma democracia? Em si, é o regime em que o povo governa por
meio dos seus representantes. Não é, portanto, um estado de coisas abstrato,
matemático, puro, em si mesmo institucional, mas existe no exato alcance em que
essa finalidade é perseguida, ou seja, que se escute e atenta àquilo que é
querido pelo povo.
A razão
de ser dessas coisas é justamente o que impede que se crie uma noção
transcendental de democracia em nome da qual se realize a concentração do poder
monocrático. Este só se poderia exercer em função do aumento das liberdades e
nunca em detrimento delas; e esse tipo de absolutismo redimido pela
transcendência de uma democracia abstrata é justamente aquilo que a ameaça até
os seus fundamentos, pois se torna uma arma polivalente, a ser usada contra
qualquer um aleatoriamente identificado como inimigo.
Uso totalitário do poder em nome da democracia
Foi o uso
totalitário do poder em nome dessa democracia transcendental que propiciou o
surgimento de monstruosidades como o “terror de Robespierre”, que matou cerca
de 17 mil pessoas em poucos meses, inaugurando o que se passou a chamar de
“terrorismo de Estado”.
O mesmo
expediente, ainda que não com os mesmos recursos assassinos, foi característico
do que se chamou de “macarthismo”, a política de perseguição aos esquerdistas
e, inclusive, aos seus amigos (era tratado como criminoso qualquer um que fosse
amigo de um socialista).
Sociedade aberta
Agora,
por democracia entende-se algo muito diferente do que o “governo do povo”. Há
uma noção liberal de democracia que amplia este conceito em termos muito
pitorescos. É aquilo que se chama de “sociedade aberta”.
O
conceito foi pela primeira vez usado por Henri Bergson, mas partia de uma sua
noção de universalismo moral, entendida como uma ética fundamental, válida para
todos, que deveria servir como base para uma sociedade pouco controlada
politicamente. São Tomás, a este respeito, é bastante mais realista quando fala
sobre a necessidade das leis humanas para reprimir os delinquentes.
Essa
ideia de Bergon, porém, foi amplamente desenvolvida pelo filósofo liberal Karl
Popper, em seu livro “A sociedade aberta e os seus inimigos”. Mais do que um
conceito político, Popper entende-o como um conceito cognitivo: partindo da crença
de que todo conhecimento humano é provisório e falível, é necessário que se
crie uma sociedade da tolerância, na qual todas as opiniões sejam respeitadas.
Paradoxo da tolerância
Contudo,
Popper afirma que existe um limite para tal liberdade, este limite está
delineado naquilo que ele chama de “paradoxo da tolerância”, ou seja, deve-se
tolerar tudo, menos os intolerantes.
No
entanto, mesmo para Popper, os “intolerantes” não são aqueles que pensam de
maneira diferente dos moldes liberais, mas os que se valem da força
institucional e física para impedir os outros de seguirem as suas convicções.
Ele acreditava que se deveria levar o diálogo e a argumentação até o limite do
possível.
Ainda que
com princípios equivocados, Popper não levava tão longe quanto os seus
seguidores a intolerância para com os que eles consideram intolerantes. De
fato, o grande implementador das ideias do filósofo austríaco é ninguém menos
que George Soros, cuja fundação, não por acaso, chama-se “Open Society”.
Diluição social
Nos últimos
decênios, várias fundações se uniram em torno de uma tentativa de diluição das
estruturas primárias e intermediárias das sociedades, afim de que permaneça
apenas a estrutura de mercado, controlada por quem? Por eles mesmos!
Ora, qual
é a grande barreira para a diluição dessas estruturas? Justamente são as
crenças em torno dos mesmos valores, as quais aglutinam os indivíduos em torno
de ideiais comuns. Por isso, qualquer um que, diferentemente dos pressupostos
de Popper e Soros, creia que existem verdades objetivas e não provisórias é
tachado impiedosamente de fundamentalista.
Inteligências discordantes são invisibilizadas
Aquilo
que Popper preconizava, o diálogo racional, é inviabilizado por estes mesmos
atores que detém a hegemonia da fala e da produção da cultura. As vozes e inteligências
discordantes são simplesmente invisibilizadas, indivíduos são segregados e
tornados párias num sistema em que a noção mesma de verdade é excluída como se
fosse uma suma ofensa.
Papel da Igreja
Qual
espaço a Igreja pode encontrar num mundo assim? Uma religião não feita de
verdades pode apenas ser feita de práxis! Ora, esse tipo de religião que
substitui a fé pela práxis já existe: chama-se teologia da libertação.
Ela não é
uma “evangélica opção pelos pobres”, mas é justamente aquilo que definiu
Gustavo Gutierrez, “uma crítica de si mesma e das suas próprias fontes”.
Perseguição sistemática de quem crê na verdade
Quando o
paradoxo da tolerância de Popper, ao invés de simplesmente partir da ideia de
que o conhecimento é sempre provisório, se une ao desconstrucionismo de
Derridas e ao pós-criticismo de Foucault, a tarefa não é simplesmente criar uma
comunidade dialógica num ambiente de descrença generalizada na objetividade da
verdade, mas passa a ser a perseguição sistemática de quem crê em qualquer
verdade, criminalizado como inimigo máximo ao qual se deve suprimir com toda
força.
Estamos caminhando para a ditadura total
Não
estamos caminhando para uma anarquia total, coisa plausível de se concluir
quando os pressupostos da ideia são o ceticismo absoluto; não!, nós estamos
caminhando para a ditadura total, na qual qualquer um poderá ser criminalizado
por crer numa verdade absoluta e querer ensiná-la a outrem.
A noção
de democracia, aqui, é totalmente abstrata, etérea, transcendental. Não se quer
dar o governo ao povo, mas se quer moldá-lo para que uma parte deste desapareça
e prevaleça apenas a parte que já é suficientemente moldada para não crer em
nada, a não ser na economia, no prazer e na vaidade.
Esse tipo
de democracia é o ideal de alguns que querem ser obedecidos sem serem
conhecidos. O tal universalismo moral de Bergson será o de uma meta-ética do
total barbarismo… E quem discordar e quiser ensinar a
discordância está fora! Simples assim!
Pe. José
Eduardo de Oliveira, via Facebook
https://pt.aleteia.org/2023/01/06/pe-jose-eduardo-estamos-caminhando-para-a-ditadura-total/
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