A luz que vem de Deus
Por Celso Loraschi
I.
Introdução geral
Os textos bíblicos deste
domingo refletem sobre a luz divina que se manifesta na história humana. Deus
se revela ao mundo de modo original e surpreendente. É soberano em suas
decisões e não se deixa levar pelas aparências. Nas pessoas pobres e frágeis,
ele manifesta a grandeza de seu amor. Escolhe Davi, um humilde pastor, para
governar o seu povo com justiça (I leitura). Deus envia seu Filho ao mundo como
expressão máxima de sua bondade. Jesus solidariza-se com as pessoas
necessitadas e oferece-lhes vida saudável e íntegra: cura a cegueira, liberta o
ser humano de toda espécie de opressão e ilumina o caminho dos que se encontram
desorientados (evangelho). O texto da carta aos Efésios incentiva a comunidade
cristã a viver como filhos da luz, renunciando às obras próprias das trevas e
praticando cotidianamente a bondade, a justiça e a verdade (II leitura). Deus é
luz. Portanto, quem vive em Deus se torna uma pessoa iluminada: é autêntica e
livre, pois nada tem a esconder ou do que se envergonhar.
II.
Comentário dos textos bíblicos
- I leitura (1Sm
16,1b.6-7.10-13a): Deus não leva em conta as aparências
Na tradição bíblica,
Davi é um dos personagens mais lembrados pelo povo. Ao redor de seu nome
criou-se verdadeiro movimento. É a figura do governante “segundo o coração de
Deus”, rei que segue a justiça e não despreza os pobres. A primeira leitura
deste quarto domingo da Quaresma narra a eleição de Davi.
Samuel foi um dos
últimos juízes de Israel. Viveu a fase conflituosa de transição entre o
tribalismo e a monarquia. É um homem de Deus. Sofre muito quando o povo pede a
mudança de regime (cf. 1Sm 8). Conforme o mandato divino, busca reconhecer,
entre vários irmãos, qual seria o escolhido para governar o povo. Após analisar
os sete filhos de Jessé, Samuel declara que nenhum deles havia sido chamado por
Deus. O menor deles, ausente por estar cuidando do rebanho, é o eleito. A unção
é o meio pelo qual se confere uma missão sagrada. É significativa a transmissão
do cargo realizada por Samuel. Tendo a função de juiz de Israel, transmite a
Davi o que ele próprio considera ser a vontade divina. O governo deve ser realizado
sob a autoridade de Deus.
A eleição de Davi é uma
narrativa popular que transmite importante conteúdo teológico e sociológico.
Deus não se deixa conduzir pelas aparências. Ele conhece o coração de cada
pessoa e, por isso, chama os que se encontram em último lugar para realizar o
seu plano na história. Como dirá Jesus: “Muitos dos primeiros serão últimos, e
muitos dos últimos, primeiros” (Mt 19,30). Sociologicamente, é um texto de
denúncia ao poder monárquico e de valorização dos caminhos alternativos que
emergem com a mobilização dos pequenos e marginalizados.
- II leitura (Ef 5,8-14):
Viver como filhos da luz
São Paulo, em seus
escritos, dedica-se de modo muito especial à tarefa de aprofundar a vida nova
que provém da fé em Jesus Cristo. O texto da carta aos Efésios é reflexo dessa
teologia paulina. Demonstra a preocupação de manter a comunidade cristã no
caminho do amor, “do mesmo modo como Cristo amou e se entregou por nós a Deus”
(5,1).
Existem dois caminhos: o
das trevas e o da luz. O caminho das trevas era bem conhecido pelos cristãos de
Éfeso. Pelo que se constata ao ler o texto, muitos deles, antes de sua adesão a
Jesus Cristo, experimentaram um modo de viver alicerçado no egoísmo, na
avareza, na fornicação e em outras coisas vergonhosas que expressam uma vida
nas “trevas”.
O caminho da luz se
manifesta por uma vida em Cristo. Ele não só andou como filho da luz, mas
revelou-se a Luz verdadeira. Ele não somente assumiu atitudes de amor, mas é a
essência do amor. A pessoa unida a ele também é filha da luz: sabe discernir “o
que é agradável ao Senhor” e produz “frutos de bondade, justiça e verdade”.
Quem se decide a seguir Jesus não só rompe com as “obras infrutuosas das
trevas”, como também exerce a função profética de denúncia dessas obras. O que é
mau e feito às ocultas deve ser trazido à luz, a fim de que se torne manifesto
ao público e seja corrigido para o bem de todos. Quem segue Jesus jamais pode
ser cúmplice da maldade, da corrupção, da mentira…
Jesus nos fez
participantes da sua própria natureza divina. Portanto, tal como viveu Jesus —
a Luz de Deus no mundo —, também nós temos a graça de viver de tal modo, que a
luz divina brilhe no mundo por meio da inteireza do ser e da retidão do agir.
- Evangelho (Jo 9,1-41):
Jesus é a luz do mundo
O Evangelho de João
aprofunda a identidade de Jesus narrando sete sinais. Um deles é a cura de um
cego de nascença. Esse sinal reflete o debate existente nas comunidades
joaninas entre os cristãos e o grupo de judeus apegados ao legalismo religioso.
Conforme podemos perceber no texto, a cegueira era considerada um castigo
divino, seja pelos pecados da pessoa, seja pelos de seus antepassados. Um dos
agravantes muito sérios para o cego era o seu impedimento de ler a Sagrada
Escritura e estudar a Lei, sendo, por isso, considerado um ignorante da vontade
de Deus.
Segundo o mesmo
Evangelho de João, Jesus veio “para que todos tenham vida, e vida em
abundância” (10,10). Sua prática não está atrelada à ideologia da pureza dos
líderes religiosos judaicos. Ele conhece suas intenções e seus interesses: “São
cegos guiando outros cegos” (Mt 15,14). Diante da pergunta sobre “quem pecou”,
Jesus procura “abrir os olhos” dos próprios discípulos, pois também eles estão
contaminados com a ideologia dos doutores da Lei. Em vez de achar um culpado,
Jesus põe a situação da cegueira em relação direta com o plano de Deus, que
resgata a dignidade do ser humano. As “obras de Deus” são realizadas agora por
Jesus, a Luz do mundo. Acontece em Jesus o que foi anunciado pelo profeta
Isaías, quando este se referiu ao “Servo de Javé” como “luz das nações” (Is
49,6).
Jesus, em caminhada, vê
o cego de nascença e toma a iniciativa de curá-lo. Ele o faz por meio da junção
de dois elementos: a terra e a saliva. Formam o barro, que lembra a criação do
ser humano, conforme descreve o livro do Gênesis: “Deus modelou o homem do
barro” (2,7). A ação de Jesus visa recriar a pessoa, oferecendo-lhe nova vida.
Conforme o pensamento da época, a saliva transmite a energia vital da pessoa.
Portanto, a energia divina de Jesus possibilita a cura.
A graça divina, porém,
não exclui o empenho humano. A cura e a libertação que Deus oferece não se dão
de modo mágico. O cego deverá seguir a palavra de Jesus e lavar-se na piscina
de Siloé, que significa “Enviado”. É convidado a aceitar livremente a luz que
Jesus lhe oferece. Seguir o caminho apontado por Jesus significa entrar no
processo de conquista de liberdade e autonomia. De fato, o cego recuperará a
visão e também a capacidade de pronunciar livremente as próprias palavras, já
não oprimido pelo legalismo dos fariseus e também já não dependente de seus
pais, representativos da tradição que buscava “segurar” sob sua guarda os
filhos de Israel. A conquista da visão verdadeira passa por processos de
conflitos e crises, pois mexe com as concepções dominantes. Uma pessoa livre,
conduzida por profundas convicções, torna-se ameaça para o poder constituído,
pois este procura impor “obrigações”, mantendo a consciência do povo alienada.
O cego de nascença,
junto com a recuperação da vista, recebe de Jesus o dom da fé e torna-se seu
discípulo. No relato de sua cura aparece, várias vezes, o verbo “nascer”.
Demonstra íntima ligação com o episódio do encontro de Nicodemos com Jesus, que
lhe indica o caminho do “novo nascimento”. Podemos, então, discernir em que
consiste a recuperação da verdadeira visão: é renascer, pela fé, acolhendo a
Jesus e deixando-se conduzir pela sua palavra: “Se permanecerdes na minha
palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos, e conhecereis a verdade e a
verdade vos libertará” (Jo 8,32). A tradição cristã vai interpretar o ato de
lavar-se na piscina de Siloé como o símbolo da regeneração cristã pelo batismo.
III.
Pistas para reflexão
— Viver na luz de Deus é o tema central das leituras deste
domingo. Pelo
relato da eleição de Davi, conforme o primeiro livro de Samuel, Deus chama as
pessoas não com base nas aparências. Ele não segue o padrão dominante da
sociedade. A unção de Davi aponta para o nosso batismo. Fomos ungidos:
revestidos de Cristo. Fomos eleitos por Deus, que concede a cada um de nós uma
missão segundo os diferentes dons. Deus quis contar com Davi para que assumisse
a missão de servir ao povo como um governante justo. É uma indicação muito
importante para quem assume cargos de responsabilidade social. Deus conta
conosco para levar adiante o seu plano de amor e justiça no mundo. Ele é a Luz
que brilha nas trevas. A salvação que ele oferece à humanidade depende da
resposta que damos ao seu chamado.
— Jesus é a Luz do mundo. Caminhou neste mundo fazendo o bem,
curando as pessoas e dissipando as trevas. A cura do cego de nascença vai além
do sentido físico. É libertação das influências das ideologias dominantes.
Somos cegos quando entramos no jogo da ambição de poder e deixamos de servir
humildemente o próximo; quando nos consideramos superiores aos outros e
quebramos a fraternidade; quando acumulamos para nós mesmos o que Deus ofereceu
para a vida de todos… Jesus curou o cego misturando a sua saliva com a terra. A
terra que Deus nos deu é sagrada, manifesta a sua bondade, oferece recursos
para uma vida saudável.
— Viver como filhos da luz. Deus nos concede a liberdade de
escolha: caminhar na luz ou nas trevas. São bem conhecidas as obras das trevas:
corrupção, mentira, violência, hedonismo e tudo o que prejudica o ser humano e
a natureza. É tempo de revisão de vida e de conversão: Deus nos oferece a
oportunidade de sair das trevas para a luz. O discípulo missionário de Jesus
escolhe o caminho da verdade, da justiça e da bondade; assume o risco de ser
autêntico e se empenha na construção de outro mundo possível.
Celso Loraschi
*Mestre em Teologia
Dogmática com Concentração em Estudos Bíblicos e professor de evangelhos
sinóticos e Atos dos Apóstolos no Instituto Teológico de Santa Catarina (Itesc).
E-mail: loraschi@itesc.org.br
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/26-de-marco-4o-domingo-da-quaresma/
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