O Evangelho de Mateus na Dinâmica do Ano Litúrgico – ciclo A
Por Aíla Luzia Pinheiro de Andrade*
A proclamação do Evangelho na liturgia tem por objetivo fazer que a
Palavra de Deus possa ecoar na vida de cada pessoa que celebra e estabelecer um
ritmo próprio em seu pensamento e sentimento e nas diversas dimensões da sua
existência. Dessa forma, dá condições para que os membros da assembleia
litúrgica possam viver em conformidade com a Palavra proclamada. Ao entrarmos
no Ano Litúrgico A, faz sentido apontar alguns temas-chave, abordagens
literárias e singularidades do Evangelho de Mateus. Por isso, este artigo tem
por objetivo oferecer algumas chaves de interpretação desse Evangelho, para que
as pessoas que fazem parte das assembleias litúrgicas tenham, na própria vida,
um bom aproveitamento das passagens a serem proclamadas, domingo a domingo, no
ciclo A do Lecionário.
Introdução
Com seus ritmos anuais e textos cuidadosamente selecionados, o ano
litúrgico tem suas raízes ancoradas na liturgia do antigo Israel e da Igreja
primitiva. A celebração semanal da Páscoa no dia do Senhor marcou a primeira
etapa no desenvolvimento do que veio a se tornar o ano litúrgico. A partir daí,
eventos marcantes da vida de Jesus começaram a ser incorporados mediante textos
bíblicos específicos que estimularam e moldaram a memória das primeiras
comunidades. No decorrer da história, o ciclo único expandiu-se para um ciclo
de três anos, sendo cada ano vinculado a um dos Evangelhos sinóticos: Ano A com
Mateus, Ano B com Marcos e Ano C com Lucas. Seguir o lecionário do Ano A
proporciona à assembleia litúrgica ouvir a história de Jesus conforme Mateus,
desde o nascimento até a morte e a ressurreição, em breves lições ao longo de
mais de cinquenta semanas.
O Evangelho de Mateus abre o Novo Testamento, mas não foi o primeiro a
ser redigido. É um texto bem escrito e organizado de forma a auxiliar a
memorização em uma cultura predominantemente oral, como prevaleceu nos
primeiros séculos da era cristã. As razões da popularidade desse Evangelho na
Igreja têm a ver com o fato de ter sido muito utilizado na formação cristã
(catequese) e se tornado um tipo de manual, no qual as primeiras comunidades
encontravam orientação segura para sua vida e missão no mundo.
A catequese, ao longo da história, fez uso extensivo do Evangelho de
Mateus, o qual ganhou a reputação de ser “o Evangelho do catequista”. Isso se
deu por diversas razões, especialmente pela apresentação da nova vida anunciada
por Cristo no Sermão da montanha (Mt 5-7) e pelo “sermão eclesial”, no qual se
enfatiza a humildade e a misericórdia como marcas da liderança cristã autêntica
e do serviço ao próximo (18,1-35). Também porque nesse Evangelho encontramos
ensinamentos sobre oração (6,5-15), celibato (19,12), casamento (19,1-9),
crianças (19,13-15) e a importância de praticar os mandamentos (19,16-19). O
núcleo da formação cristã envolvia configurar a própria vida a Jesus, “manso e
humilde de coração” (11,29), sendo o caminho do discípulo concebido como
tornar-se semelhante ao Mestre. Esse Evangelho é chamado de “livro da Igreja”,
porque parece refletir, mais claramente do que os outros Evangelhos, sobre
temas relacionados a liderança, organização, autoridade e ordem dentro da
estrutura e da vida eclesial.
Mateus oferece uma imagem de Jesus mestre realizando seu ministério
público de forma alternada entre atos poderosos (curas, milagres e exorcismos)
e discursos memoráveis. O autor bíblico também destaca a relação entre a Antiga
e a Nova Aliança, fornecendo às primeiras comunidades cristãs instruções sobre
o que significava viver como povo de Deus e em que isso se diferenciava de
viver conforme as tradições legais e litúrgicas de Israel. Finalmente, Mateus
insiste que as boas-novas são destinadas à proclamação não apenas entre o povo
judeu, mas também a toda a humanidade. Esse Evangelho é resultado e testemunho
notável do senhorio universal de Jesus, que permanece com seu povo, Israel,
restaurado e renovado, e com as pessoas dos demais povos, juntos fazendo parte
da mesma comunidade.
É útil, então, ter em mente os cinco temas que são a coluna vertebral de
Mateus, enquanto as passagens destacadas pela liturgia vão sendo proclamadas ao
longo do Ano A. Esses cinco temas dão a tônica a cada passagem proclamada.
1.
Jesus mestre e o Sermão da montanha (Mt 5-7)
O Evangelho de Mateus começa com uma genealogia, que vai de Abraão a
Davi e aos acontecimentos que cercam o nascimento de Jesus até a fixação de sua
morada em Nazaré. A narrativa sobre o ministério do Messias começa com o
batismo no Jordão e a vinda do Espírito Santo sobre Jesus, seguida das
tentações no deserto. O ministério inicial de Jesus na Galileia, por palavras e
ações, fez sua fama se espalhar, o que levou ao Sermão da montanha, o primeiro
dos discursos. O sermão apresenta a ética do Reino que Jesus veio instaurar.
As bem-aventuranças, que introduzem o Sermão da montanha (5,3-12), foram
primeiramente vividas de forma paradigmática pelo próprio Cristo. Quem ler
atentamente o texto de Mateus perceberá que as bem-aventuranças apresentam uma
espécie de retrato da figura interior de Jesus, uma espécie de “biografia”
velada. Aquele que não tem onde reclinar a cabeça (8,20) é verdadeiramente
pobre; aquele que pode dizer: “Vinde a mim, que sou manso e humilde de coração”
(11,28-29) é verdadeiramente manso e puro de coração. Ele é o pacificador, é
aquele que sofre por amor e nunca revida a violência.
As bem-aventuranças revelam o mistério do próprio Cristo e nos chamam à
comunhão com ele. Precisamente por seu caráter cristológico oculto, são
direcionamentos para o discipulado, um roteiro para a Igreja, que reconhece
nelas o modelo do que ela mesma deve ser. O Sermão da montanha conclui-se com a
multidão maravilhada diante do ensinamento novo. “Enquanto projeto de vida,
consistem na prática da misericórdia para com os mais fragilizados. As
bem-aventuranças, afinal, se concretizam no serviço a Jesus encarnado nos
‘irmãos mais pequeninos’. A catequese mateana tem em vista formar
discípulos-apóstolos bem-aventurados!” (VITÓRIO, 2019, p. 60).
Ao serem proclamadas as passagens do Evangelho de Mateus ao longo
do Ano A, não se deve esquecer desse propósito mateano, expresso no início do
ministério público de Jesus.
2. Jesus mestre e o Reino revelado ao povo de Deus (Mt 10)
Após o Sermão da montanha, temos o chamado e o envio dos doze. Eles
devem proclamar o Evangelho e realizar curas e exorcismos nas cidades dos
judeus.
A busca das “ovelhas perdidas da casa de Israel” será o ponto de
partida, de forma a manter o “privilégio” de Israel na oferta da salvação.
Porém, com a recusa da “casa de Israel” (cf. Mt 27,25) de acolher o Messias
Jesus, os discípulos-apóstolos irão em busca dos gentios e dos samaritanos, de
toda a humanidade (cf. Mt 28,19) (VITÓRIO, 2019, p. 110)
O restante de Mt 10 consiste nas instruções sobre a necessidade de os
evangelizadores procederem de acordo com o que proclamam. Essas instruções,
dadas aos doze, são conhecidas como “discurso missionário”. Os missionários não
devem ganhar dinheiro nem levá-lo consigo, devem ter apenas o necessário para
sua tarefa. O v. 10 proíbe um par extra de sandálias e o cajado; isso significa
que devem viver de forma simples, à semelhança de Jesus (10,9-10).
São orientados a serem cautelosos com a oposição que podem receber
durante a missão, mas não devem ter medo, pois serão inspirados sobre o que
deverão dizer para se defenderem. Nesse sentido, aderir ao projeto de Jesus
traz uma divisão social tão séria, que até pode romper os laços familiares mais
próximos.
“O discípulo não está acima do mestre, nem o servo acima do seu senhor”
(10,24): isso significa que, quanto mais semelhantes a Cristo (10,25), maiores
são as possibilidades de receber hostilidades no exercício da missão. Apesar da
possível oposição, os doze estarão constantemente sob o cuidado providencial do
Pai celestial (10,29-31).
2.
Jesus mestre e o mistério revelado em parábolas (Mt
13)
A atividade mais proeminente de Jesus, no Evangelho de Mateus, é
ensinar. Para a comunidade de Mateus, Jesus é o Senhor ressuscitado, cujos
ensinamentos medeiam a presença de Deus. Para Mateus, Jesus é Mestre
precisamente como Senhor da Igreja. Jesus é um exímio contador de parábolas, as
quais são o recurso pedagógico mais eficiente para ensinar a Igreja. As
parábolas constituem o coração da pregação de Jesus e refletem “exatamente, e
com especial nitidez, a Boa-nova de Jesus, o cunho escatológico da sua
pregação, a seriedade do seu apelo à conversão, bem como o seu conflito com o
farisaísmo” (JEREMIAS, 2020, p. 7).
Em sua Exortação Apostólica Gaudete
et Exsultate, o papa Francisco realizou, no capítulo 3, a análise de
cada bem-aventurança do Evangelho de Mateus, afirmando que nas bem-aventuranças
“está delineado o rosto do Mestre, que somos chamados a deixar transparecer no
dia a dia da nossa vida” (GE 15).
Durante o ano litúrgico, ao serem proclamadas as passagens do Evangelho
de Mateus, não podemos esquecer que as parábolas são ensinamentos que visam
transformar nossa maneira de ver a vida e de viver como seguidores e sempre
aprendizes do mestre Jesus.
3.
Jesus mestre e os discípulos-missionários
Em Mateus 18, podemos discernir questões e lutas presentes nas primeiras
comunidades cristãs às quais Mateus estava escrevendo: lutas pelo poder (v.
1-4); comportamento escandaloso (v. 5-10); a necessidade de trazer de volta as
pessoas que haviam se afastado da comunidade (v. 12-14); e, sobretudo, a
necessidade de perdão, sem o qual nenhuma comunidade pode durar muito tempo (v.
21-35). O foco dos v. 15-20 é a delicada questão de exortar aqueles que
precisam de correção (18,15-20).
O texto de Mt 18 é chamado de discurso eclesial, ou seja, sobre a
Igreja. O tema central do discurso é a comunidade de seguidores e o papel da
liderança em conduzi-la. Mateus se esforça para afirmar a autoridade da Igreja
como árbitro final quando as questões não podem ser resolvidas entre indivíduos
(v. 18-20), passagem frequentemente usada para sustentar a autoridade da
liderança e a presença contínua de Jesus no apoio à Igreja ao longo da
história.
No entanto, o exercício da liderança na Igreja deve ser do mesmo modo
como o mestre Jesus liderou seus discípulos. O discurso enfatiza a importância
da humildade como uma das maiores virtudes dentro da comunidade. Ensina que, no
Reino dos Céus, é ter a humildade das crianças o que importa, não a
proeminência social nem a influência de alguns sobre os outros.
4.
Jesus mestre e o fim dos tempos
Em Mt 23, Jesus denuncia os escribas e fariseus e exprime um lamento
sobre Jerusalém, que mata os profetas (v. 37-39). Em seguida, Jesus menciona a
destruição do templo e dá aos seus discípulos os sinais sobre o fim dos tempos,
no discurso escatológico de Mt 24. Foi em meio a esse discurso que os
discípulos ficaram muito confusos e perguntaram: 1) Quando essas coisas
aconteceriam?; 2) Qual o sinal da segunda vinda de Jesus e do fim dos tempos?
(Mt 24,3).
Jesus respondeu, a partir de Mt 24,4, elencando os sinais que virão
antes do fim: falsos messias, guerras, fomes, terremotos, perseguições, falsos
profetas, iniquidade, falta de perseverança na fé, bem como a pregação do
Evangelho a todo o mundo (24,4-14). A seção imediatamente posterior
concentra-se na destruição de Jerusalém (v. 15-20). Na seção seguinte,
24,21-39, Jesus enfoca o tema da segunda vinda do Filho do Homem. Na última
seção do discurso, 24,40-25,46, ele convida seus discípulos a estarem sempre
preparados e vigilantes (ANDRADE, 2012, p. 77-79).
O texto de Mt 25,35-36: “Tive fome e me destes de comer. Tive sede e me
destes de beber. Era forasteiro e me recolhestes. Estive nu e me vestistes,
doente e me visitastes, preso e viestes ver-me” não pode ser separado das
bem-aventuranças de Mt 5. Há um elenco de sofrimentos e necessidades humanas
bem elaborado em Mt 25 (fome, sede, nudez, doença e prisão: 25,35-36) que pode
ser encontrado nas bem-aventuranças, as quais fornecem um catálogo semelhante
(pobreza, luto, fome, sede, perseguição: 5,3-11). No monte das
bem-aventuranças, Jesus falava diretamente aos seus discípulos, instruindo-os
nos mistérios do Reino e dirigindo uma promessa de felicidade aos que quiserem
sofrer e ser perseguidos por causa dele e da justiça: “Alegrai-vos e exultai,
porque é grande a vossa recompensa nos céus” (5,12).
Na perspectiva de sua segunda vinda, à vista de “todas as nações”, Jesus
ressuscitado aponta para aqueles que realmente viveram as bem-aventuranças como
ele as ensinou e que assim se identificaram completamente com sua forma de
pensar.
Considerações finais
O papa Francisco sempre enfatizou uma
missiologia e uma evangelização globais convincentes, baseadas nas obras de
misericórdia espirituais e corporais e na unidade intrínseca entre Mt 5 e Mt
25. Na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, o papa escreve
que
Jesus, o evangelizador por excelência e o Evangelho em pessoa,
identificou-se especialmente com os mais pequeninos (cf. Mt 25,40). Isso
recorda a todos os cristãos que somos chamados a cuidar dos mais frágeis da
terra (EG 209) […] e é indispensável prestar atenção e debruçar-nos sobre as
novas formas de pobreza e fragilidade, nas quais somos chamados a reconhecer
Cristo sofredor: os sem-abrigo, os toxicodependentes, os refugiados, os povos
indígenas, os idosos cada vez mais sós e abandonados etc. (EG 210).
No que tange à evangelização do mundo inteiro, Jesus não somente dá o
exemplo, na forma como acolhe a todas as pessoas, mas também, já ressuscitado,
dá uma orientação final aos discípulos: “Ide, portanto, e fazei discípulos
dentre todas as nações, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito
Santo” (28,19). É esse o significado de os discípulos serem “o sal da terra”
(5,13) e “a luz do mundo” (5,14).
O papa Francisco destaca que “toda a evangelização está fundada sobre
essa Palavra escutada, meditada, vivida, celebrada e testemunhada. A Sagrada
Escritura é fonte da evangelização” (EG 174), e o maior incentivo para a
evangelização é contemplar o Evangelho “com amor, é deter-se nas suas páginas e
lê-lo com o coração” (EG 264).
O Evangelho de Mateus nos ensina a ler e ponderar as Escrituras tendo
como referência Jesus, pois o evangelista reconhece que nossa compreensão de
Deus e de seus caminhos é profundamente enriquecida pela descoberta da unidade
do plano do Pai, conforme se desenrolam, nas páginas das Escrituras, o Antigo e
o Novo Testamentos.
Referências bibliográficas
ANDRADE, A.
L. P. Eis que faço novas todas as coisas: teologia apocalíptica.
São Paulo: Paulinas, 2012.
BÍBLIA.
Português. Bíblia de Jerusalém: revista e ampliada. São Paulo:
Paulus, 2002.
JEREMIAS, J. As
parábolas de Jesus. São Paulo: Paulus, 2020.
FRANCISCO, Papa. Gaudete
et Exsultate: Exortação Apostólica sobre o chamado à santidade no mundo
atual (GE). São Paulo: Paulus, 2020.
FRANCISCO, Papa. Evangelii
Gaudium: Exortação Apostólica sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual
(EG). São Paulo: Paulus, 2019.
VITÓRIO, J. Lendo
o Evangelho segundo Mateus: o caminho do discipulado do Reino. São Paulo:
Paulus, 2019. E-book.
Aíla Luzia Pinheiro de Andrade*
*é graduada em Filosofia pela Universidade Estadual
do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje-MG),
onde também cursou mestrado e doutorado. Atualmente, leciona na Universidade
Católica de Pernambuco e na Faculdade Católica do Rio Grande do Norte. Escreveu
Palavra viva e eficaz, pela Paulus. E-mail: aylanj@gmail.com
https://www.vidapastoral.com.br/edicao/o-evangelho-de-mateus-na-dinamica-do-ano-liturgico-ciclo-a/
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