"PASSARAM
AO LARGO O SACERDOTE E O LEVITA: O DESPREZO COMO AMEAÇA LETAL PARA A AUTOESTIMA E A QUALIDADE
DE VIDA"
[Texto Integral]
Por Lindolivo Soares Moura (*)
"Todos
temos por onde sermos
desprezíveis. Cada um de nós traz consigo um
crime cometido ou um crime que a
alma nos pede para cometer" [Fernando Pessoa]
Três palavras pronunciadas pelo
Filósofo Francês Renê Descartes revolucionaram a história da filosofia:
"Cogito, Ergo Sun!" - "Penso, Logo Existo!". Quanto mais
precisa e concisa for uma máxima, mais impactante costuma ser. Se o nome
pronunciado é Descartes, o "Cogito" é sempre lembrado. Mas e se o
nome lembrado for Shakespeare? Nesse caso a máxima evocada provavelmente será:
"ser ou não ser? Eis a questão!". Curioso é que para a chamada
filosofia existencialista "ser" e "existir" são conceitos
essencialmente distintos, enquanto para Sheakspeare e Descartes eles parecem
perfeitamente intercambiáveis. Aliás, o Existencialismo tira seu nome e sua
identidade do segundo, do "existir", enquanto o "ser" - ou
a "essência", mais precisamente - é concebido como um "eterno
vir-a-ser", um ser em contínuo processo de transformação e construção. "Eterno", força de
expressão, pois a morte como encontro pessoal, e o morrer como condição humana
universal, colocam um ponto final nesse processo. Ou não!
Assim como Pandora fora consolada pela
Esperança, depois que seu excesso de curiosidade colocara à solta todos os
males, incluindo a morte, a espiritualidade insiste em abrir uma nova porta,
apontar para "uma luz no fim do túnel". Afinal, como afirma Carl
Simonton, "na ausência da certeza, nada há de errado com a
esperança". Para Deepak Chopra, voz importante no movimento que prenuncia a
chegada de uma nova espiritualidade, essa ânsia de imortalidade
provavelmente seja a "força
motriz" que há milênios vem impulsionando os incansáveis
"buscadores" de todos os tempos e gerações: "ao longo da evolução
de Deus - ele afirma - as pessoas anseiam por transformação. Cada religião se
assemelha a um programa de treinamento, cujo principal objetivo é substituir a
concha da mortalidade pelo manto reluzente da imortalidade". O
Existencialismo não nega mas tampouco pressupõe essa transformação radical,
"transcendental", se podemos e preferimos chamá-la assim. Afirma que
nossa responsabilidade se limita à construção do nosso ser ou essência
"única e exclusivamente no aqui e no agora de nosso contexto vital" -
"sitz im leben" - bem como na
ação solidária para com os demais na persecução do mesmo objetivo. Ao mesmo tempo, paralela e correlatamente as
disciplinas diversas, notadamente aquelas assim chamadas de
"humanas", procuram oferecer, cada uma delas, sua contribuição específica
para a construção dessa "essência" e a estruturação da identidade
própria de cada um de nós.
No campo específico da Psicologia
vigora um princípio aparentemente
simples, mas que requer atenção especial. Isso porque, malgrado sua
simplicidade, tal princípio se reveste de importância crucial para a auto-estima
e a qualidade de vida, bem como para a busca de construção de nossa essência
íntima, tal como propugnado pelo Existencialismo. Requer-se que psicólogos,
filósofos, espiritualistas e humanistas, estejamos todos atentos a esse
princípio antes que a qualquer um outro, sobretudo quando o que está em foco é
o ser considerado como "razão de ser" da criação: o ser humano.
Buscando preservar sua simplicidade, tentaremos resumir tal princípio da forma
mais simplificada e fiel possível. Ficaria mais ou menos assim: "em cada
ser humano, antes do reconhecimento do desejo vigora sempre o desejo de
reconhecimento". A relevância de tal princípio se mostra ainda mais
evidente quando se tem presente a célebre afirmação psicanalítica de que
"o desejo é a alavanca do mundo". Não seria exagero, ao nosso
ver, afirmar que tal princípio possa ser
considerado como uma espécie de bússola, norteadora e orientadora de todos os
demais. Indícios dessa relevância estão presentes, por exemplo, na ousada e
provocante definição de espiritualidade de Kimeron Harding, onde os sentimentos
de "pertença" e "inclusão" aparecem como fundamentos
estruturantes indispensáveis do ser, da identidade e da personalidade de cada
pessoa. Nas palavras de Harding,
"[...] Espiritualidade não significa que você deva acreditar num
Deus ou Deuses, ou em espíritos que rondam a terra. A espiritualidade [...]
incluindo ou não um conceito de um Deus ou de um poder superior, envolve o
desenvolvimento de um sistema de crenças que o faça sentir que VOCÊ PERTENCE,
MERECE SER INCLUÍDO - maiúsculas por nossa conta - E TEM UM IMPORTANTE PAPEL no
planeta". Não parece ser diferente a percepção de William James, quando
afirma apontando nessa mesma direção: "o mais profundo princípio da
natureza humana é a ânsia de ser apreciado", isto é , não apenas de ser
considerado importante, mas sobretudo de sentir-se digno de apreço, estima,
afeição e consideração. Numa única palavra, de "validação".
Ora, se tivermos presente o fato de
que as crenças e convicções que trazemos conosco atuam como princípios que
guiam as nossas ações, e influenciam poderosamente a maneira como nos
comportamos e reagimos para com os demais, tal como sustenta Karim Khoury,
perceberemos melhor o quanto essa ânsia por reconhecimento, apreço e afeição, ocupa
o lugar central - espinha dorsal - na construção de nossa identidade própria e
de nossa essência como indivíduos singulares.
Constata-se assim que a filosofia existencialista e a psicologia - em
particular, a psicologia da personalidade - se encaminham rumo a um estratégico
ponto de convergência, fiéis a uma espécie de "encontro previamente
marcado", como se mutuamente atraídas uma pela outra. Não admira que
muitos profissionais estejam determinados a resgatar essa dimensão fundamental
e originária da filosofia, atuando profissionalmente como "orientadores
filosóficos", dessa forma complementando,
integrando e enriquecendo o trabalho dos profissionais psicólogos e
vice-versa.Tudo, esclareça-se desde logo, numa busca de sinergia e cooperação,
e não de concorrência ou competição,
como faz questão de deixar claro um dos maiores expoentes dessa nova vertente
filosófica, Lou Marinoff: "não
estamos tentando substituir ou suplantar a psiquiatria ou a psicologia. Estamos
simplesmente devolvendo a filosofia ao seu devido lugar, em parceria com outras
profissões que prestam ajuda [...]".
Essa é a principal razão que nos leva
a conectar princípios filosóficos, psicológicos
e até mesmo espirituais - não necessariamente "religiosos" - num
único e mesmo texto proposto à reflexão, opção estratégica que vimos abraçando
já há um bom tempo. Essa "conexão" não se mostra apenas viável, mas
também confiável e segura, ainda que a princípio nem sempre ao alcance da
compreensão e da aprovação de todos, malgrado a persistente busca por diálogo e
interdisciplinaridade que tem norteado os diversos saberes, ciências e
disciplinas nos últimos tempos. Feita essa observação, retomemos o objetivo
central de nossa reflexão: avaliar a importância do afeto e do apreço para
a autoestima e a qualidade de vida do
ser humano, bem como o quanto sua ausência ou escassez podem comprometer
severamente a consecução desse objetivo. A chamada "parábola do bom
samaritano" se revela arquetípica nesse sentido, ao colocar em foco num
único e mesmo relato o verso e o reverso da experiência humana do apreço: o da "ausência e
recusa" - nas atitudes do sacerdote e do levita - e o da sua
"presença revivificadora" - na pessoa do viajante samaritano - presença esta que tem no "cuidado"
uma de suas principais formas de expressão. Isto posto, podemos avançar um
pouco mais em nossa reflexão.
Aprendemos com o Existencialismo que
ninguém "nasce humano" - nem
como homem e nem como mulher, como afirma Simone de Beauvoir - senão que
"se torna" humano. Com base nessa premissa a psicologia nos põe a par
do quão importante é para cada pessoa, em sua trajetória de individuação e
diferenciação, o sentimento de aceitação e apreço que ela experimenta ao longo
desse processo de "construção de si mesma". Crasso equívoco,
portanto, é a pressuposição de que aquilo que os outros pensam, sentem ou
afirmam de nós não tem ou não deva ser tido como de maior relevância. Se é
certo que essa espécie de "espelhamento" não pode e não deva ser
considerada como critério determinante de auto-avaliação e auto-percepção, é
igualmente verdadeiro que menosprezá-la ou ignorá-la é demonstrar escasso
conhecimento daquilo que na rica expressão de Teilhard de Chardin recebe o nome
de "fenômeno humano", e de como se dá o processo de constituição de
nosso ser, de construção de nossa individualidade, e de engendramento de nossa
singularidade.Tal percepção deve, claro, ser continuamente reavaliada e revista,
na medida em que o despertar de nossa consciência continua evoluindo até
alcançar seu máximo grau de completude, como sugerem os orientais. Não seria
talvez essa a verdadeira saga do ser humano sobre a face da terra: nascer
dependente e condicionado pela mais absoluta "heteronomia", e seguir
em busca de sua auto-suficiência e
máxima "autonomia"?
Numa síntese do que se pode entender
por "autoestima", Karim Khoury a define como sendo "a avaliação
objetiva, honesta e favorável que fazemos de nós mesmos, que tem o condão de
influenciar todas as nossas demais experiências e nossa qualidade de
vida". A auto-estima pressupõe portanto, como se depreende da definição
sugerida, duas condições ou disposições básicas: autoconhecimento e mudança,
isto é, a adoção de padrões de comportamento adequados à permanente
transformação que o processo de viver e conviver impõe a cada ser humano. Essa
pressuposição norteia invariavelmente
todo tipo de atendimento, acompanhamento e aconselhamento à nossa disposição ao
longo do nosso processo de crescimento, quer estejamos nos referindo a um nível
profissional ou não. Mas, eis que aqui entra uma vez mais em cena o chamado
"princípio do duplo poder", tal como o denomina Lou Marinoff: "tudo que carrega consigo potencialidade
para o bem, carrega também consigo igual potencialidade para o mal".
Assim, o remédio poderoso pode se transformar de repente num veneno perigoso. E
é a partir daqui que a questão
envolvendo o apreço e a validação, por um lado, e o "desprezo" e a
ausência de reconhecimento, por outro, entram em cena.
Lembra-se de quantas vezes em
manifestações de agouro, recomendações, felicitações e cumprimentos por motivos
diversos, iniciamos nossa fala com o título de "prezado/prezadíssimo"
e o seu equivalente "caro/caríssimo", para mencionar apenas as
saudações mais rituais e frequentes? Entre tantos outros significados, tais
saudações têm o sentido de "dileto", "querido",
"amado", "estimado", uma espécie de "apreço que não
tem preço", algo que se insere na ordem do inestimável e do imponderável!
Sentimentos de afeição e estima que quando são sinceros e genuínos não
alimentam apenas o nosso eu consciente, mas alcançam o âmago de nosso ser mais
profundo e verdadeiro, que responde pelo nome de "self", cuja
característica principal, como já o
dissemos, consiste em portar consigo uma ânsia profunda por reconhecimento e
validação, estima e apreço! Alimentar o ego pode não ser tão difícil como
pensamos ou possa parecer, posto que habitando as superfícies ele se satisfaz
com trivialidades e superficialidades.
Já para com o "self", nossa essência mais íntima, que habita
as profundezas do nosso ser, essa já é lá uma outra história. Pode parecer um
mero jogo de palavras, "licença poética", se se preferir, mas para
entendermos bem a dimensão e a importância da estima e do apreço na
consolidação de nossa identidade e de nossa individualidade, vale a pena
reatualizar o princípio já mencionado: "para todo e cada ser humano, sem
exceção, antes do reconhecimento de qualquer tipo de desejo, está o desejo de
reconhecimento ", isto é, ser percebido como digno e merecedor de valor,
apreço, estima e validação. Essa ânsia ou desejo inato, podemos considerá-la
como uma espécie de "software" que cada ser humano traz consigo desde
sempre, antes mesmo de seu próprio nascimento, e que de forma alguma suporta permanecer
desconhecido ou passar ignorado.
Lamentavelmente porém, nem toda ânsia
por apreço e estima, e nem todo anseio por reconhecimento e validação encontram
realização e satisfação na vida real, como seria de se esperar. Você pode até
não conhecê-los, mas o fato é que muita gente conhece, experimenta, e por vezes
se vê constrangida a conviver com o desprezo, o descaso e a indiferença por
toda uma existência, trazendo para a vida adulta marcas profundas e indeléveis
da infância e da juventude. E se você nunca experimentou esses sentimentos
adversos e corrosivos da auto-imagem e da auto-estima, é provável também que
sequer tenha ideia do que eles representam para quem com eles convive, sem
esperança e expectativa de conseguir superá-los. E para que ao menos ideia
possa ter, vou lhe contar uma pequena "parábola" da vida real - a do
bom samaritano você já conhece -
esperando que essa dose de realidade venha a aguçar um pouco mais a sua
e a sensibilidade de todos nós.
A experiência que lhe será relatada
serviu de referência para que o TRT4, da Justiça do Trabalho do Rio Grande do
Sul, fizesse vir à luz a obra "Vivendo a experiência de ser um
trabalhador invisível", proposta
posteriormente a nível nacional como uma espécie de novo paradigma na formação
dos magistrados trabalhistas brasileiros. Refiro-me à experiência realizada por
alunos e alunas do Curso de Direito da USP - Universidade de São Paulo - numa
determinada etapa de sua formação acadêmica. Resumidamente, tal experiência
constituiu-se no seguinte. Parte das alunas mulheres de algumas turmas, sem que
o restante de seus colegas tivessem conhecimento, foram colocadas como
"empacotadoras" em uma determinada rede de supermercados. Parte dos
alunos homens, por sua vez, sem que seus demais colegas de turma soubessem da
iniciativa, foram trabalhar como "garis" no recinto interno da
própria Universidade. No relato posteriormente compartilhado as alunas-mulheres, empacotadoras, se queixaram
de terem sido "excessivamente vistas" e demasiadamente exigidas, já
que os chefes e responsáveis tampouco
sabiam da experiência que estava sendo levada a cabo no ambiente de trabalho.
Enquanto isso a queixa dos alunos-homens, como "garis", foi na mesma
proporção, mas no sentido exatamente inverso ao das colegas mulheres: "nós
simplesmente não éramos vistos ou percebidos como pessoas. Éramos apenas
'uniformes' desempenhando uma função, fazendo seu trabalho. Sequer nossos
colegas de turma nos reconheceram, pois nem olhar para nós eles olhavam!
Ficamos literalmente 'invisíveis!'".
Pois bem! Convido você agora, a partir
da experiência mencionada, a parar para refletir e nos conscientizarmos de
quantas pessoas - milhares, milhões? - são e continuam sendo tratadas por nós ora
com excesso extremo, ora com ausência total de visibilidade. Desprezo e indiferença costumam ser tão
rotineiros, e ocorrer com uma frequência tão grande em nosso dia-a-dia, que
passam a ser "normais" e "naturalizados" a ponto de ficarem
fora do alcance dos radares de nossa sensibilidade. Passamos a não mais
"detectar", conscientemente, as situações e vezes em que estamos
expondo e submetendo as pessoas a esse
tipo de experiência psicológica e emocionalmente tão deplorável quanto
degradante. A recusa de um contato, de um gesto, de uma palavra, às vezes até
de um olhar, para com alguém que nos
interpela num semáforo, com quem
cruzamos numa caminhada, o gari que recolhe e retira o lixo e o entulho de
nossas ruas e praças, as pessoas que trabalham no nosso prédio ou condomínio e
passam dias e noites, domingos e feriados nas guaritas e portarias, limpando e
higienizando áreas e corredores, aparando a grama e dando vida nova a nossos
jardins, aquelas que marcam presença na
administração otimizando tarefas, recebendo e posteriormente distribuindo
encomendas e pacotes, enfim, as pessoas que trabalham dentro de nossa própria
casa todos os dias, semanas, meses e às vezes anos, todas essas podem se tornar
oportunidades e experiências de satisfação ou sofrimento de vida ou morte
"psico-emocional para essas pessoas, em dependência direta da forma como
lidamos e nos comportamos para com elas.
Pensamos - e pensamos muito
equivocadamente, diga-se de passagem - que o dinheiro, uma ajuda extraordinária
ou simplesmente um bem material, são ao fim e ao cabo o de que mais necessitam
essas e outras pessoas, e concluímos que isso é o mais importante para elas.
Aprimorar urgentemente essa forma de perceber as coisas, os vínculos e os
relacionamentos,e passar a nos relacionar com as pessoas de nosso cotidiano e
de nosso convívio de uma forma mais humana, mais qualitativa que quantitativa,
revela-se ainda mais urgente que intervir na busca de solução conjunta para
minorar danos decorrentes da miséria, da desigualdade social, de eventuais
catástrofes e eventos causadores de dor e sofrimento de ordem material. Não se
trata, veja bem, de ignorar e menos ainda de desdenhar da importância de tais
realizações e iniciativas, sobretudo quando elas se mostram urgentes e
necessárias. Mas para um contingente humano certamente muito maior do que
aquele que entra em nossos cálculos e suposições, a carência psíquica e
afetivo-emocional, a ânsia por apreço, reconhecimento e validação, tudo isso é
sem dúvida muitíssimo mais gritante e importante que a carência material
econômico-financeira. Quase sempre são pessoas que trazem sobre si um histórico
de descuido, descaso e indiferença, quando não de desprezo e rejeição, que
poucos de nós conseguiríamos suportar. Ora, se a vida, os deuses e as divindades,
nos sorriram com famílias estáveis, pais afetivamente presentes, avós que nos
querem tão bem como a seus próprios filhos, e uma série de cuidadores e
prestadores de ajuda e cuidado sensíveis e amáveis, sempre ocupados e
preocupados com nossa qualidade de vida e nosso bem estar tanto material como
psíquico e emocional, por que não sorrir de volta com um maior
aprimoramento de nossa sensibilidade,
com um grau de atenção e de percepção mais apurados, com um maior investimento
de compreensão, empatia e interesse genuíno pela história e a trajetória de
vida daqueles que não foram contemplados com esse mesmo tipo de
"herança" com que fomos agraciados?
Por que não exercitar com mais frequência e atenção gestos que nos custam tão pouco, e
que podem se revestir de um poder curativo e regenerativo para o espírito e a
auto-estima de tantas pessoas, que como nós
também têm sonhos, anseios e expectativas que só podem ser percebidos e
mensurados na medida em que nos dispomos a esse exercício diferenciado de
empatia e sensibilidade?
O Psicanalista francês Jacques Lacan,
talvez mais que nenhum outro, insiste em seus "Seminários" sobre o
poder mágico das palavras. Mágico e terrível, é bem verdade! Mas a cada um de
nós cabe escolher e decidir se vamos edificar dentro de nós e a partir de nós
um arsenal bélico ou um centro de apoio e acolhimento. Um simples olhar tanto
pode "disparar" mísseis de indiferença, desprezo e agressividade
emocional, como pode enviar flechas de simpatia,
empatia, compreensão, apreço e reconhecimento. Todos sabemos por experiência
própria o que isso significa e o que isso representa na vida de uma pessoa.
Ninguém é tão rico emocionalmente, que
nunca tenha precisado de um olhar desse tipo, ou talvez até mais que um olhar.
Tampouco ninguém é tão pobre afetiva e emocionalmente, que nada tenha para
compartilhar. A escassez de bens materiais nunca é tão grave quanto a carência
de estima, afeto, apreço, reconhecimento e validação. "A deformação do
corpo não afeta a alma - dizia Sêneca - mas a beleza da alma se reflete no
corpo".
Também é certo que na medida em que
formos reconquistando nossa capacidade de sentir e perceber a presença "do
outro", para além do uniforme ou da roupa que ele veste ou deixa de
vestir, conseguiremos detectar melhor
seu mundo interior, sua história única e sua trajetória de vida pessoal.
"Os sentimentos humanos são palavras expressas no corpo humano",
dizia Aristóteles, e só não os detecta e identifica quem não se dispõe a
fazê-lo ou quem teimosamente insiste em não querer enxergar. A cegueira do
espírito, nesse sentido, é sem dúvida muito mais prejudicial que a cegueira do
corpo, porque ela nos incapacita para perceber o "invisível", e como
ensinava Saint-Exupéry, o invisível é o mais importante, o que realmente conta,
o essencial. Perder um emprego, uma fonte de renda, tendo que readequar nossa
situação econômico-financeira, pode sem
dúvida acarretar problemas e dificuldades, mas perder a capacidade de sentir,
de sensibilizar-se e de enternecer-se, talvez seja o maior dos males, a doença
mais grave, o vírus de maior alcance pandêmico a ser enfrentado. Se curável ou
não, isso só cada um de nós poderá
dizer. Remédio e vacina para isso existem, mas o negacionismo, sob a forma de
racionalização e escassez de sensibilidade, pode continuar dificultando e muito
as coisas.
À guisa de conclusão: expressar estima
e apreço pelas pessoas não é algo espontâneo e natural, exceto em casos
específicos onde a proximidade e a natureza do vínculo suscitam automaticamente
manifestações do tipo. Nossa natural tendência em racionalizar e julgar quase
sempre se antecipa à entrada em cena de nossos sentimentos e de nossa expressão
de afeto. Em razão disso, muitos, talvez a grande maioria, acabem excluídos do
nosso repertório de gentileza, validação, reconhecimento, estima e apreço.
Costumamos ser seletivos demais! E seletividade pressupõe escolha, preferência,
identificação, bem como, na contrapartida, desconfiança, preconceito,
discriminação e exclusão. "Todo semelhante tende a atrair e ser atraído pelo
semelhante", dizia São Tomás de Aquino. Natural, portanto, é a seleção e a
seletividade, como procurou demonstrar Darwin. Manifestar estima e apreço pelo
outro, pelo diferente, pelo desconhecido, exige consciência e conscientização, esforço e disposição, e com certeza boa dose
de virtude e virtuosidade.
Mas há um lado curioso e nem sempre
facilmente percebido, quando se coloca em marcha o processo anteriormente
mencionado. No exato momento, e na exata medida em que expressamos
reconhecimento, estima e apreço por alguém, estamos "ipso facto"
investindo em nossa própria auto-estima e em nossa própria qualidade de vida,
uma espécie de "efeito bumerangue" do investimento que fazemos nos
demais. O grande mestre espiritual do budismo, Sidarta Gautama, o Buda,
expressou isso numa fórmula bastante simples: "quer faça eu, o bem ou o
mal, serei sempre herdeiro daquilo que eu fizer". No cristianismo, a
chamada "Oração de São Francisco" talvez seja o exemplo mais
expressivo dessa equação simples, que Carl Jung chamou de
"sincronicidade", e que leva o nome de reciprocidade . Mas existe um
vírus altamente perigoso, que pode não apenas dificultar mas literalmente nos
convencer a "passar ao largo", como fizeram o sacerdote e o levita do
arquetípico relato-parabólico de Lucas. Você vai conhecê-lo no próximo e último
parágrafo, com o qual finalizamos nossa reflexão. Depois é só tomar sua própria
decisão, sem esquecer que quando se quer fazer alguma coisa, sempre se acha um
caminho, mas quando não se quer, sempre se acha uma boa desculpa.
Carta de Otto Lara Rezando a Norah
Medeiros:
"Quando eu morrer, morre comigo
um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver.
O diabo é que de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê, nao-vendo.
Experimente ver, pela primeira vez, o que você vê todos os dias, sem ver.
Parece fácil, mas não é. O que nos é familiar já não desperta curiosidade. O
campo visual de nossa retina é como um vazio.
Você sai todos os dias, por exemplo,
pela mesma porta. Se alguém perguntar o que você vê no seu caminho, você não
sabe. De tanto ver, você não vê. Sei de um profissional que passou 32 anos a
fio, pelo mesmo hall do prédio do seu consultório. Lá estava sempre,
pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe um bom dia, e às vezes lhe passava um
recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de
falecer.
Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como
se vestia? Não fazia a mínima ideia. Em 32 anos, nunca o vira. Para ser notado,
o porteiro teve que morrer. Se um dia em seu lugar, estivesse uma girafa
cumprindo o rito, pode ser que também ninguém desse por sua ausência. O hábito
suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver: gente, coisas,
bichos! E vemos? Não, não vemos!
Uma criança vê o que o adulto não vê.
Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo! O poeta é capaz de ver,
pela primeira vez, o que de tão visto, ninguém vê! Há pai que nunca viu o
próprio filho! Marido que nunca viu a própria esposa! Disso existe às pampas!
Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos! E É POR AÍ QUE SE INSTALA, NO
CORAÇÃO, O MONSTRO DA INDIFERENÇA" - maiúsculas por nossa conta.
______________
(*) Reflexão enviada de Vitória(ES)
via whatsapp.
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