REFLEXÃO
DOMINICAL I
A EXPERIÊNCIA DE
EMAÚS
*Pe. Johan Konings, sj
I. INTRODUÇÃO GERAL
A liturgia do segundo domingo pascal apresentou a comunidade apostólica
e sua fé em Jesus Cristo ressuscitado. Agora, o terceiro domingo apresenta a
mensagem que essa comunidade anunciou ao mundo, a pregação dos apóstolos nos
primórdios da Igreja: o “querigma”. A perspectiva do anúncio universal é criada
pela antífona da entrada, com o Salmo 66[65],1-2: “Aclamai a Deus, toda a
terra”, enquanto a oração do dia evoca a renovação espiritual dos que creem e
recebem a condição de filhos de Deus.
II. COMENTÁRIO DOS
TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (At
2,14a.22-33)
A primeira leitura apresenta o “querigma” apostólico, o anúncio – no
discurso de Pedro em Pentecostes – da ressurreição de Jesus e de sua vitória
sobre a morte. É o protótipo da pregação apostólica. Suprimida a introdução do
discurso, por ser a leitura de Pentecostes (At 2,15-21), a leitura de hoje se
inicia com o v. 22, anunciando que o profeta rejeitado ressuscitou, cumprindo
as Escrituras (Sl 16[15],8-10). Não se trata de ver aí uma realização “ao pé da
letra”, mas de reconhecer nas Escrituras antigas a maneira de agir de Deus
desde sempre, a qual se realiza num sentido “pleno” em Jesus Cristo. Ou melhor:
naquilo que se vê em Jesus, aparece o sentido profundo e escondido das antigas
Escrituras. O importante nesse querigma é o anúncio da ressurreição como sinal
de que Deus “homologou” a obra de Jesus e lhe deu razão contra tudo e todos.
Isso é atestado não só por testemunhas humanas, mas também pelo testemunho de
Deus mesmo, na Escritura. O Salmo 16[15], por exemplo, originalmente a prece de
quem sabe que Deus não o entregará à morte, encontra em Cristo sua realização
plena e inesperada. Esse salmo é também o salmo responsorial de hoje e terá de
ser devidamente valorizado.
2. II leitura (1Pd
1,17-21)
Na segunda leitura, continua a leitura da 1Pd iniciada no domingo
passado. Jesus Cristo é visto como aquele que nos conduz a Deus. Sua morte nos
remiu de um obsoleto modo de viver. Por meio de Cristo, ou seja, quando
reconhecemos e assumimos a validade do seu modo de viver e de morrer, chegamos
a crer verdadeiramente em Deus e o conhecemos como aquele que ressuscita Jesus,
aquele que dá razão a Jesus e “endossa” a sua obra. Isso modifica nossa vida.
Desde o nosso batismo, chamamos a Deus de Pai; mas ele é também o Santo que nos
chama à santidade (1Pd 1,16; cf. Lv 19,2). O sacrifício de Cristo, Cordeiro
pascal, obriga-nos à santidade. Os últimos versículos desta leitura (v. 19-21)
constituem uma profissão de fé no Cristo, que desde sempre está com Deus: ele
nos fez ver como Deus verdadeiramente é, e por isso podemos acreditar que Deus
nos ama.
3. Evangelho (Lc
24,13-35)
O evangelho é preparado pela aclamação, que
evoca o ardor dos discípulos ao escutar a Palavra de Deus (cf. Lc
24,32). Trata-se da narrativa dos discípulos de Emaús (lida também na missa da
tarde no domingo da Páscoa). A homilia pode sublinhar diversos aspectos.
1) “Não era necessário que o Cristo padecesse tudo isso para entrar na
glória?” (Lc 24,26). Cabe parar um momento junto ao termo “o Cristo”. Não é
apenas de Jesus como pessoa que se trata, mas de Jesus enquanto Cristo,
Messias, libertador e salvador enviado e autorizado por Deus. Não se trata
apenas de reconhecer a vontade divina a respeito de um homem piedoso, mas do
modo de proceder de Deus no envio de seu representante, o “Filho do
homem” revestido de sua autoridade (cf. Dn 7,13-14), que deve levar a termo o
caminho do sofrimento e da doação da vida (cf. Lc 9,22.31).
2) Jesus “lhes explicou, em todas as Escrituras, o que estava escrito a
seu respeito” (Lc 24,27). Em continuidade com a primeira leitura, podemos
explicitar o tema do cumprimento das Escrituras. As Escrituras fazem
compreender o teor divino do agir de Jesus. Enquanto os discípulos de Emaús
estavam decepcionados a respeito de Jesus, fica claro agora que, apesar da
aparência contrária, Jesus agiu certo e realizou o projeto de Deus. As
Escrituras testemunham isso. Jesus assumiu e levou a termo a maneira de ver e
de sentir de Deus que, embora de modo escondido, está representada nas antigas
Escrituras. Ele assumiu a linha fundamental da experiência religiosa de Israel
e a levou à perfeição, por assim dizer. Mas só foi possível entender isso
depois de ele ter concluído a sua missão. Só à luz da Páscoa foi possível que
as Escrituras se abrissem para os discípulos (cf. também Jo 20,9; 12,16).
3) Reconheceram-no ao partir o pão (cf. Lc 24,31 e 35). A experiência de
Emaús nos faz reconhecer Cristo na celebração do pão repartido. Na “última
ceia”, o repartir o pão fora reinterpretado, “ressignificado”, pelo próprio
Jesus como dom de sua vida pelos seus e pela multidão (Lc 22,19); e à comunhão
do cálice que acompanhava esse gesto, Jesus lhe dera o sentido de celebração da
nova e eterna aliança (Lc 22,20). Assim puderam reconhecê-lo ao partir do pão.
Mas o gesto de Jesus na casa dos discípulos significava também a rememoração do
gesto fundador que fora a Última Ceia, a primeira ceia da nova aliança. Desde
então, esse gesto se renova constantemente e recebe de cada momento histórico
significações novas e atuais. Que significa “partir o pão” hoje? Não
é apenas o gesto eucarístico; é também o repartir o pão no dia a dia, o pão do
fruto do trabalho, da cultura, da educação, da saúde… Os discípulos de Emaús,
decerto, não pensavam num mero rito “religioso”, mas em solidariedade humana.
Ao convidarem Jesus, não pensaram numa celebração ritual, mas num gesto de
solidariedade humana: que o “peregrino” pudesse restaurar as forças e
descansar, sem ter de enfrentar o perigo de uma caminhada noturna. O repartir o
pão de Jesus é situado na comunhão fraterna da vida cotidiana. Esse é o
“aporte” humano que Jesus ressignifica, chamando à memória o dom de sua vida.
III. DICAS PARA
REFLEXÃO: Entender as Escrituras e partir o pão
A liturgia de hoje nos conscientiza de que Jesus, apesar – e por meio –
de seu sofrimento e morte, é aquele que realiza plenamente o que a experiência
de Deus no Antigo Testamento já deixou entrever, aquilo que se reconhece nas
antigas Escrituras quando se olha para trás à luz do que aconteceu a Jesus. Ao
tomarmos consciência disso, brota-nos, como nos discípulos de Emaús, um
sentimento de íntima gratidão e alegria (“Não ardia o nosso coração…?” [Lc
24,32]) que invade a celebração toda, especialmente quando, ao partir o pão, a
comunidade experimenta o Senhor ressuscitado presente no seu meio.
A saudade é a benfazeja presença do ausente. Quando alguém da família ou
uma pessoa querida está longe, a gente procura se lembrar dessa pessoa. É o que
aconteceu com os discípulos de Emaús. Jesus fora embora… mas, sem que o
reconhecessem, estava caminhando com eles. Explicava-lhes as Escrituras.
Mostrava-lhes o veio escondido do Antigo Testamento que, à luz daquilo que
Jesus fez, nos faz compreender ser ele o Messias: os textos que falam do Servo
Sofredor, o qual salva o povo por seu sofrimento (Is 52-53); ou do Messias
humilde e rejeitado (Zc 9-12); ou do povo dos pobres de Javé (Sf 2-3) etc.
Jesus ressuscitado mostrou aos discípulos de Emaús esse veio, textos que eles
já tinham ouvido, mas nunca relacionado com aquilo que Jesus andou fazendo… e
sofrendo.
Isso é uma lição para nós. Devemos ler a Sagrada Escritura por
intermédio da visão de Jesus morto e ressuscitado, dentro da comunidade
daqueles que nele creem. É o que fazem os apóstolos na sua primeira pregação,
quando anunciam ao povo reunido em Jerusalém a ressurreição de Cristo,
explicando os textos que, no Antigo Testamento, falam dele, como mostra a
primeira leitura de hoje. Para a compreensão cristã da Bíblia, é
preciso ler a Bíblia na Igreja, reunidos em torno de Cristo ressuscitado.
O que aconteceu em Emaús, quando Jesus abriu as Escrituras aos
discípulos, é parecido com a primeira parte de nossa celebração dominical, a
liturgia da Palavra. E muito mais parecido ainda com a segunda parte, o rito eucarístico:
Jesus abençoa e parte o pão, e nisso os discípulos o reconhecem presente. Desde
então, a Igreja repete esse gesto da fração do pão e acredita que, neste,
Cristo mesmo se torna presente.
Emaús nos ensina as duas maneiras fundamentais de ter Cristo presente em
sua ausência: ler as Escrituras à luz de sua memória e celebrar
a fração do pão, o gesto pelo qual ele realiza sua presença real, na
comunhão de sua vida, morte e ressurreição. É a presença do Cristo pascal,
glorioso – já não ligado ao tempo e ao espaço, mas acessível a todos os que o
buscam na fé e se reúnem em seu nome.
*Pe. Johan Konings, sj
Nascido
na Bélgica, reside há muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É doutor
em Teologia e mestre em Filosofia e em Filologia Bíblica pela Universidade
Católica de Lovaina. Atualmente é professor de Exegese Bíblica na Faje, em Belo
Horizonte. Dedica-se principalmente aos seguintes assuntos: Bíblia – Antigo e
Novo Testamento (tradução), evangelhos (especialmente o de João) e hermenêutica
bíblica. Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da liturgia;
A Palavra se fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e formação dos
fiéis – anos A-B-C; Ser cristão; Evangelho segundo João: amor e fidelidade; A
Bíblia nas suas origens e hoje; Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e
Lucas e da “Fonte Q”.
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/4-de-maio-3o-domingo-da-pascoa/
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