REFLEXÃO DOMINICAL I
A fé apostólica, que é nossa
Por Pe. Johan Konings, sj
I. Introdução geral
Nos domingos depois da
Páscoa, a liturgia nos põe em contato com a primeira comunidade cristã. As
primeiras leituras são uma sequência de leituras tomadas dos Atos dos
Apóstolos. Nas leituras do evangelho, é-nos apresentada a “suma teológica” do
século I, o Evangelho de João. As segundas leituras são tomadas de outros
escritos muito significativos quanto aos temas batismais e da fé; no ano A, a
primeira carta de Pedro.
O segundo domingo pascal, especificamente, é marcado pelo tema
da fé batismal. É o
antigo domingo in
albis (“em vestes brancas”). Nesse domingo, os neófitos (os
novos fiéis, literalmente “brotos novos”), batizados na noite pascal,
apresentavam-se vestidos com a veste branca que receberam na noite de seu
batismo: são “como crianças recém-nascidas” (como se dizia no canto da
entrada). A oração do dia pede que progridamos na compreensão dos mistérios
básicos da nossa fé, os “sacramentos da iniciação cristã” — batismo, eucaristia
e confirmação —, e a oração depois da comunhão reza por mais profundo
entendimento do mistério da ressurreição e do batismo. Quanto às leituras,
embora não exista estrita coerência temática entre as três, todas elas nos
fazem participar do espírito do mistério pascal.
II. Comentário dos textos bíblicos
- I leitura (At 2,42-47)
A primeira leitura nos
apresenta o ideal da comunidade cristã: a comunidade primitiva dos cristãos de
Jerusalém. A descrição de At 2,42-47 acentua especialmente a comunhão dos bens,
que corresponde ao sentido do partir o pão — comemoração do Senhor Jesus.
Outros textos semelhantes sobre a vida da comunidade encontram-se em At 3,32-37
e 5,12-16. Tanto essa comunhão perfeita como os prodígios operados pelos
apóstolos serviam de testemunho para os demais habitantes de Jerusalém,
testemunho que não deixava de ter sua eficácia. Essa leitura é, portanto, mais
do que um documento histórico sobre os primeiros tempos depois da Páscoa: é
convite para restabelecermos a pureza cristã das origens.
- II leitura (1Pd 1,3-9)
A segunda leitura é
tomada da primeira carta de Pedro, que é uma espécie de homilia batismal. Na
perspectiva de seu autor, a volta gloriosa do Senhor estava próxima; os
cristãos deviam passar por um tempo de prova, como ouro na fornalha, para
depois brilhar com Cristo na sua glória. Nessa perspectiva, a fé batismal se
concebe como antecipação da plena revelação escatológica: é amar aquele que
ainda não vimos e nele crer, o coração já repleto de alegria diante da salvação
que se aproxima (e já alcançada na medida em que a fé nos põe em verdadeira
união com Cristo).
- Evangelho (Jo 20,19-31)
O evangelho constitui o fim do Evangelho de João: Jo 20,19-31 (o
capítulo 21 de João é um epílogo que excede a estrutura literária do evangelho
propriamente). O Evangelho de João é composto de dois painéis, introduzidos
pelo prólogo (1,1-18). O primeiro painel, 1,19-12,50, narra os “sinais” de
Jesus. Esses sinais manifestam que Jesus é o enviado de Deus e que Deus está
com ele e, ao mesmo tempo, revelam simbolicamente o dom que Jesus mesmo é. No
segundo painel, os capítulos 13-20, Jesus, na hora de sua despedida, abre o seu
mistério de união com o Pai e inclui nele os seus discípulos, antes de assumir,
livremente, a morte por amor e ser ressuscitado por Deus. Sua ressurreição é o
sinal de que ele vive e sobe à glória do Pai (20,17). No trecho que ouvimos
hoje, manifesta-se o dom do Espírito de Deus a partir da glorificação/exaltação
de Jesus (cf. 7,37-39). Na sua despedida, Jesus prometeu aos seus o Espírito e
a paz (14,15-17.26-27). Agora, o Ressuscitado, enaltecido e revestido com a
glória do Pai, traz esses dons aos seus (20,21-22), que serão seus enviados
como ele o foi do Pai (20,21). Para essa missão, recebem o poder de perdoar,
poder que, segundo a Bíblia, é exclusivo de Deus e, portanto, só pode ser
comunicado por quem comunga de sua autoridade. De fato, já no início do
Evangelho de Marcos, Jesus se caracteriza como o “Filho do homem” (cf. Dn
7,13-14), que recebe de Deus esse poder (Mc 2,10). Segundo Jo 20,19-23, o
Ressuscitado dá à comunidade dos fiéis o Espírito de Deus e a missão de tirar o
pecado do mundo — também a missão que João Batista reconheceu em Jesus no
início do evangelho (Jo 1,29). À maneira semítica e bíblica, a missão de
perdoar é expressa na forma afirmativa (“a quem perdoardes os pecados, serão
perdoados”) e negativa (“a quem os retiverdes [= não perdoardes], serão
retidos”, Jo 20,23). Mas isso não significa que os seguidores e sucessores de
Jesus poderão administrar o perdão arbitrariamente. Muito antes, trata-se do
poder de administrar o perdão concedido por Deus: munida do Espírito de Deus, a
comunidade reconhecerá quem recebe dele o perdão e quem não. E não deixa de ser
significativo que Jesus exprima essa presença do Espírito exatamente pelo
perdão e não pelo dom das línguas ou algo assim. Pois o que o ser humano procura,
em profundidade, é exatamente esse “estar bem com Deus e com os irmãos” que o
pecado impede, mas o perdão possibilita. Todo o culto judaico girava em torno
da reconciliação com Deus e com a comunidade. A carta aos Hebreus explica que
Jesus, enquanto sumo sacerdote definitivo, realiza essa reconciliação de uma
vez para sempre. O que Jesus confia aos seus em Jo 20,22-23 é mais que mera
“jurisdição”. É o dom da vida nova, na “paz”, no shalom, o dom do
Messias por excelência. Unidos na comunhão da verdadeira videira que é Jesus
(Jo 15,1-8), temos a vida em abundância (Jo 10,10).
A segunda parte do
evangelho de hoje conta a história de Tomé. O texto põe em evidência Tomé entre
os que viram o Ressuscitado (cf. At 10,41; 1Jo 1,1-3), mas visa às gerações
seguintes, que, sem terem visto, deverão crer — com base no testemunho das
testemunhas privilegiadas. “Felizes os que não viram e, contudo, creram” (Jo
20,28) é bem-aventurança que se dirige a nós (cf. 1Pd 1,8, primeira leitura de
hoje). E é para esse fim que os que viram nos transmitiram, por escrito, o
testemunho evangélico, como diz o autor nas palavras finais (Jo 20,30-31).
Daí podermos dizer: “Cremos na fé dos que testemunharam”, a fé
dos apóstolos, a fé apostólica. A Tomé é dado experimentar a realidade do Crucificado
que ressuscitou, e o apóstolo proclama a sua fé, tornando-se verdadeiro fiel.
Mas há outros a quem não será dado esse tipo de provas que Tomé requereu e
recebeu; eles terão de acreditar também e são chamados felizes por crerem sem
ter visto. Esses “outros” somos todos nós, cristãos das gerações
pós-apostólicas. Mas, em vez de provas palpáveis, a nós é transmitido o
testemunho escrito das testemunhas oculares, para que nós creiamos e, crendo,
tenhamos a vida em seu nome (20,30-31). A
fé dos apóstolos é nossa.
III. Pistas para reflexão: Nossa fé “apostólica”
Todo mundo gosta de ter
provas palpáveis para acreditar. Mas para que ainda acreditar quando se têm
provas palpáveis? E as pretensas provas, que certeza dão? Nossa fé não vem de
provas imediatas, mas da fé das “testemunhas designadas por Deus” (At 10,41),
principalmente dos apóstolos.
Os apóstolos foram as
testemunhas da ressurreição de Jesus. Eles puderam ver o Ressuscitado e por
isso acreditaram. Tomé foi convidado por Jesus a tocar nas chagas das mãos e do
lado (evangelho). Tomé pôde verificar e acreditou: “Meu Senhor e meu Deus!”.
Nós não temos esse privilégio. Seremos felizes se crermos sem ter visto (Jo
20,29). Mas, para que isso fosse possível, os apóstolos nos deixaram os
evangelhos, testemunho escrito do que eles viram e da fé no Cristo e Filho de
Deus que abraçaram (Jo 20,30-31).
O Cristo descrito nos
evangelhos é visto com os olhos da fé dos apóstolos. Um incrédulo o veria bem
diferente. Nós cremos em Jesus como os apóstolos o viram. A participação na fé
dos apóstolos nos dá a possibilidade de “amar Cristo sem tê-lo visto” e de
“acreditar nele (como Senhor e fonte de nossa glória futura), embora ainda não
o vejamos” (2ª leitura).
Nós acreditamos na fé
dos apóstolos e da Igreja que eles nos deixaram. Então, nossa fé não é coisa
privada. É apostólica e eclesial. Damos crédito à Igreja dos apóstolos. Os
primeiros cristãos faziam isso materialmente: entregavam os seus bens para que
ela os transformasse em instrumentos do amor do Cristo. Crer não é somente
aceitar verdades. É agir segundo a verdade do ser discípulo e seguidor do
Cristo.
É inútil querer
verificar e provar nossa fé sem passar pelos apóstolos e pela corrente de
transmissão que eles instituíram, a Igreja. É impossível verificar, por evidências
fora do âmbito dos evangelhos, a ressurreição de Cristo. Ora, o importante não
é “verificar”, ao modo de Tomé, mas viver o sentido da fé que os apóstolos
(incluindo Tomé) transmitiram. A fé dos apóstolos exige que creiamos em seu
testemunho sobre Jesus morto e ressuscitado e também que pratiquemos a vida de
comunhão fraterna na comunidade eclesial que brotou de sua pregação.
Num tempo de
hiperindividualismo, como é o nosso, essa consciência de acreditarmos naquilo
que os apóstolos acreditaram é muito importante. Deles recebemos a fé, nossa
“veste branca”, e, na comunidade que eles fundaram, nós a vivemos. Ora, por
isso mesmo é tão importante que essa comunidade, por todo o seu modo de viver o
legado do Ressuscitado, seja digna de fé.
Pe. Johan Konings, sj
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/23-de-abril-2o-domingo-da-pascoa/
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