SANTO
AGOSTINHO
Santo Agostinho - O sermão dos pastores(I)
I, 1 - Não é agora a primeira vez
que ouvis dizer que toda a nossa esperança está em Cristo e que n'Ele está toda
a nossa glória verdadeira. Esta é uma verdade evidente e familiar para vós que
pertenceis ao rebanho d'Aquele que vigia e apascenta Israel. Mas porque há
pastores a quem agrada o nome de pastores, mas não querem cumprir os deveres de
pastores, consideremos o que lhes diz o Senhor pela boca do Profeta. Escutai
vós com atenção, ouçamos nós com temor.
2 - «A palavra do Senhor foi-me dirigida nestes termos: Filho do homem,
profetiza contra os pastores de Israel e diz aos pastores de Israel». Acabamos
de ouvir esta leitura que nos foi proclamada, e por isso quero falar-vos um
pouco sobre ela. Deus me ajude a dizer coisas
verdadeiras, porque não pretendo expor ideias
próprias. Porque se vos propusesse ideias pessoais, também eu seria daqueles
pastores que, em vez de apascentar as ovelhas, se apascentam a si mesmos; mas
se é d'Ele o que dizemos, então é Ele que vos apascenta por intermédio de mim.
«Eis o que diz o Senhor Deus: ai dos pastores de Israel, que se apascentam a si
mesmos! Porventura não é o seu rebanho que os pastores devem apascentar»? É
como se dissesse: «Os pastores não se devem apascentar a si, mas as ovelhas».
Essa é a primeira acusação contra estes pastores: apascentam-se a si mesmos e
não o rebanho. Quem são os que se apascentam a si mesmos? Aqueles de quem o
Apóstolo afirma: «Todos procuram os seus próprios interesses e não os de Jesus
Cristo».
Ora bem. Nós, a quem o Senhor, pela sua misericórdia infinita e não por mérito
nosso, colocou neste lugar de tão grande responsabilidade — e de que havemos de
dar rigorosas contas — devemos distinguir claramente duas coisas: somos
cristãos e somos bispos. Somos cristãos para nosso proveito, somos bispos para
vosso proveito. Pelo facto de sermos cristãos, devemos pensar na nossa
salvação; pelo facto de sermos bispos, devemos preocupar-nos com a vossa.
E há muitos que, sendo cristãos e não bispos, chegam até Deus, percorrendo um
caminho mais fácil e progredindo nele tanto mais expeditamente quanto menor é o
peso da responsabilidade que suportam. Nós, porém, devemos dar contas a Deus
pela nossa própria vida, como cristãos; mas, além disso, devemos dar contas a
Deus pelo exercício do nosso ministério, como pastores. Se vos digo isto é para
que, compadecendo-vos, oreis por nós. Chegará o dia em que tudo será submetido
a juízo. Aquele dia, embora esteja ainda longe para o mundo, para cada homem é
o último da sua vida. Deus quis manter oculto um e outro: o dia em que há-de
chegar o fim do mundo, e o dia em que há-de chegar o final da vida para cada um
dos homens. Desejas não temer esse dia oculto? Prepara-te antes que chegue.
Visto que os bispos foram chamados para que cuidem daqueles de que estão à
frente, não devem procurar nesse ministério a sua própria utilidade, mas a
daqueles a quem servem. O bispo que se regozija em sê-lo, que busque a sua
própria honra e olhe somente para as suas comodidades, apascenta-se a si mesmo
e não às ovelhas. A estes se dirige a palavra do Senhor.
Escutai agora vós como ovelhas de Deus, e considerai como Deus vos constituiu
com segurança, de modo que sejam quem forem aqueles que presidem - sejamos nós
quem sejamos — Aquele que apascenta Israel vos sustentará. Deus não abandona as
Suas ovelhas, pelo que os maus pastores expiarão as penas merecidas e as
ovelhas receberão o prometido.
II, 3 - Vejamos então o que diz a palavra divina, que não poupa ninguém, aos
pastores que se apascentam a si mesmos e não as ovelhas: «Bebeis o leite,
vestis-vos com a lã e matais as ovelhas mais gordas, mas não apascentais o meu
rebanho. Não fortaleceis as ovelhas débeis, não tratais as que estão doentes,
não curais as que estão feridas; não reconduzis a ovelha tresmalhada, não
procurais a que anda perdida; mas a todas tratais com crueldade e violência. E
as minhas ovelhas dispersaram-se por falta de pastor».
Dos pastores que se apascentam a si mesmos e não as ovelhas, diz-se aqui o que
eles fazem e o que não fazem. Que fazem eles? «Bebeis o leite e vestis-vos com
a lã». Também o Apóstolo diz: «Quem planta uma vinha e não come do fruto dela?
Quem apascenta um rebanho e não se alimenta com o leite do rebanho»? Aqui se
compreende que o leite do rebanho representa os bens que o povo de Deus oferece
para sustentar a vida temporal dos seus prelados. Era disto precisamente que
falava o Apóstolo nas palavras que vos recordei.
4 - Se bem que o Apóstolo tivesse preferido viver do trabalho das suas mãos
para não ter de tomar o leite das suas ovelhas, afirmou no entanto que tinha o
direito de receber este leite, como determinara o Senhor ao dizer: «Os que
anunciam o Evangelho vivam do Evangelho»; e noutro lugar afirmou que outros
apóstolos como ele usaram deste direito, não usurpado, mas devido. Ao renunciar
a este seu direito, ele foi além da sua obrigação, mas não exigiu que os outros
fizessem o mesmo. Talvez ele esteja representado no que se diz do bom
samaritano que levou à estalagem o homem ferido e disse: «Se gastares algo
mais, dar-to-ei quando voltar».
Que mais diremos sobre estes pastores que não exigem o leite do rebanho?
Devemos afirmar que são mais misericordiosos que os outros, ou melhor, que
desempenham mais generosamente o dever pastoral da misericórdia. Podem fazê-lo
e fazem-no. Louvem-se estes e não se condenem os outros. Com efeito, o próprio
Apóstolo não procurava donativos; mas desejava que as ovelhas, isto é, os
fiéis, dessem o seu fruto e não fossem estéreis e inúteis.
Quando, em certa altura, Paulo se encontrava em grande necessidade, preso pela
confissão da verdade, foram-lhe enviados pelos irmãos alguns bens para socorrer
a sua indigência. Ele respondeu-lhes, agradecendo com estas palavras: «Fizestes
bem em socorrer-me nas minhas necessidades. Todavia, eu aprendi já a
contentar-me em todas as circunstâncias em que me encontro. Tanto sei viver na
abundância como na penúria. Tudo posso n'Aquele que me conforta. Apesar disso, fizestes bem em ter-me socorrido na
minha grave situação».
Mas para mostrar o que mais lhe interessava naquela boa obra, para não ser
daqueles que se apascentam a si mesmos e não as ovelhas, dá-lhes a entender que
não se alegra tanto pela ajuda que recebeu, como pelo bem que eles realizaram.
Que lhe interessava nesta boa acção deles? «Eu não procuro o dom material — diz
ele — o que procuro é que aumente o fruto para vosso proveito; não para que eu
seja saciado, mas para que vós não fiqueis sem merecimento».
5 - Portanto, aqueles que não podem fazer como Paulo, vivendo com o trabalho
das suas mãos, recebam o leite das suas ovelhas, isto é, recebam dos fiéis o
necessário para o seu sustento, mas não esqueçam a debilidade do rebanho. Não
procurem o seu próprio interesse, para não darem a impressão de que anunciam o
Evangelho por necessidade ou interesse próprio; o seu procedimento deve fazer
compreender que se preocupam apenas em preparar a luz da palavra e da verdade
para iluminar os homens, como está escrito: «Estejam cingidos os vossos rins e
as vossas lâmpadas acesas»; e noutro lugar: «Não se acende uma Lâmpada para a
colocar debaixo do alqueire, mas sobre o candelabro, para iluminar a todos os
que estão em casa. Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam
as vossas boas obras e glorifiquem o vosso Pai que está nos céus».
Se acendes uma lâmpada na tua casa, não vais deitando azeite para que não se
apague? Mas se a lâmpada em que deitas o azeite não alumia, não merece ser
colocada sobre o candelabro, mas imediatamente quebrada. Portanto, o que
recebemos para poder viver deve aumentar a nossa caridade para saciar os
outros. Não como se o Evangelho fosse um bem rentável como cujo preço se
pagasse o alimento àqueles que o anunciam. Vender assim o Evangelho seria
vender por vil preço uma coisa de valor incomparável. Embora recebam do povo o
necessário para o seu sustento, a recompensa pelo seu trabalho esperem-na do
Senhor. O povo nunca poderá recompensar devidamente aqueles que por caridade
lhe ministram o Evangelho. A melhor recompensa que podem esperar os pregadores
do Evangelho é a salvação daqueles que os escutam.
Que é que se censura nos pastores? De que são acusados? De beberem o leite das
ovelhas e de se vestirem com a sua lã, descuidando o interesse do rebanho. Buscavam,
portanto, os seus próprios interesses e não os de Jesus Cristo.
III, 6 - Depois de vos termos explicado o que significa «beber o leite»,
vejamos agora o que quer dizer «vestir-se com a lã». Quem oferece leite oferece
alimento; e quem oferece lã oferece honras. Estas são as duas coisas que
procuram alcançar do povo aqueles que se apascentam a si mesmos e não as
ovelhas: prover às suas necessidades e receber honras e louvores.
Com razão se entende que o vestuário representa aqui uma forma de honra, porque
as vestes servem para cobrir a nudez. De fato, todo o homem é frágil, e
portanto são frágeis os vossos pastores. Aqueles que vos governam são homens
semelhantes a vós. Como vós têm um corpo, comem, dormem e levantam-se do sono; como vós
nasceram e um dia morrerão. Se considerais o que eles são por si mesmos,
reconhecereis que são simplesmente homens. Mas se os cobris de honras, é como
se cobrísseis a sua fragilidade.
7 - Vede como Paulo considera a honra que recebia do povo santo de Deus, quando
diz: «Recebestes-me como a um anjo de Deus. Posso até testemunhar que, se fosse
possível, teríeis arrancado os vossos olhos para mos dar». Mas apesar de ser
tão grande a honra que lhe prestaram, deixou porventura de repreender os seus
erros para não perder essa honra e esses louvores? Se assim procedesse, teria
sido um daqueles pastores que se apascentam a si mesmos e não as ovelhas. Nesse
caso, diria consigo mesmo: «Que me importa a mim? Cada um faça o que quiser; o
meu sustento está garantido, a minha honra está salva; tenho leite e tenho lã;
é o que me basta. Cada um vá para onde puder». Então para ti está tudo em ordem
se cada um for para onde puder? Prescindindo mesmo da tua função de bispo e
considerando-te apenas como simples fiel, devias recordar que «se um membro
sofre, todos os membros sofrem com ele».
Por isso o Apóstolo, depois de lhes ter recordado o modo como se comportaram
com ele, para que não parecesse que já se tinha esquecido da honra que lhe
prestaram, dá testemunho que o receberam como a um anjo de Deus e de que, se
fosse possível, até arrancariam os próprios olhos para lhos dar. Mas apesar
disso, ele aproxima-se da ovelha doente e infectada, para curar a chaga sem
poupar a infecção. E assim lhes fala: «Porventura tornei-me vosso inimigo por
vos ter dito a verdade»? Portanto, ele recebeu o leite das ovelhas, como há
pouco recordamos, e vestiu-se com a lã das ovelhas, mas não descuidou o bem do
rebanho. Não buscava os seus interesses, mas os de Jesus Cristo.
8 — Longe de nós esteja o dizer: «Vivei como quiserdes, estai tranquilos, Deus
não castiga ninguém; basta que tenhais a fé cristã. Não castiga aquele que
redimiu, não castiga aqueles por quem derramou o Seu Sangue. E se quiserdes
deleitar o vosso espírito com os espetáculos públicos, ide tranquilos. Que tem
isso de mal? Ide, celebrai tranquilos também esta festa, da qual participa toda
a cidade, entre a alegria dos comensais e dos que crêem que se alegram com os
festins públicos, quando na realidade se perdem. A misericórdia de Deus é
grande e tudo perdoa. Coroai-vos de rosas antes que murchem. Na casa do vosso
Deus celebrareis quando quiserdes. Saturai-vos e enchei-vos de vinho na
companhia dos vossos. Foi para isto que se vos deram as criaturas: para que
gozeis delas. Deus não as deu aos pagãos e ímpios tirando-as a vós». Se
aconselhássemos tudo isto, talvez tivéssemos mais gente conosco; talvez alguns
ao ouvir-nos pensem que não falamos sabiamente; poderiam ser poucos aqueles a
quem ofenderíamos, e regozijar-nos-íamos assim com uma grande multidão. Se
disséssemos isto, não proclamando a palavra de Deus, não pregando a palavra de
Jesus Cristo, mas a nossa própria, seriamos pastores que se apascentam a si
mesmos e não as ovelhas.
IV, 9 - Quando o Senhor disse o que estes pastores fazem, disse também o que
não fazem. Ao males que sofrem as ovelhas são grandes e largamente difundidos.
Muito poucas são as ovelhas sadias e bem alimentadas, isto é, aquelas a quem
não falta o alimento da verdade e se apascentam abundantemente com dons de
Deus. Mas os maus pastores nem sequer estas ovelhas poupam. Como se fosse pouco
descuidarem-se das doentes e das débeis, das que se desgarraram e andam
perdidas, também matam, quanto deles depende, as que estão fortes e de
boa saúde. E se estas vivem, é só pela misericórdia de Deus
que vivem; porque os maus pastores tudo fazem para as matar. Dirás: «Como é que
as matam»? Vivendo mal, dando-lhes mau exemplo. Não sem razão foi dito àquele
servo de Deus, que era um dos membros mais eminentes do Supremo Pastor:
«Apresenta-te a ti mesmo, para com todos, como exemplo de boas obras». E
também: «Sê modelo dos fiéis».
Com efeito, mesmo a ovelha forte, ao ver que o pastor habitualmente vive mal,
afastando o seu olhar dos caminhos do Senhor e fixando-se apenas nos critérios
humanos, começa a pensar em seu coração: «Se o meu superior vive assim, quem
sou eu para seguir um caminho diferente»? É assim que o pastor mata a ovelha
forte. E se mata a ovelha forte, que fará ele das outras? Que fará este pastor
que, em vez de fortalecer as ovelhas débeis, dá a morte, com o seu exemplo,
àquelas que encontra sadias e fortes?
Eu vos declaro e repito: há ovelhas que apesar disso vivem, apoiadas somente na
palavra do Senhor, recordando as palavras que ouviram do mesmo Senhor: «Fazei o
que eles vos dizem, mas não o que eles fazem». No entanto, aquele que vive mal
na presença do povo, quanto dele depende, mata os que observam o mau exemplo da
sua vida. Não se iluda pelo facto de aquela ovelha não estar morta. Ela vive,
sem dúvida, mas ele é um homicida.
É como o caso de um homem sensual que olha para uma mulher com intenções
pecaminosas; embora ela permaneça casta, ele comete pecado de luxúria. É
verdadeira e clara palavra do Senhor a este respeito: «Aquele que olhar para
uma mulher para a desejar, já cometeu adultério no seu coração». Não entrou nos
seus aposentos, mas pecou no íntimo do seu coração.
De modo semelhante, quem vive mal perante aqueles que lhe foram confiados,
quanto dele depende, mata também os fortes. Quem o imita, morre; quem não o
imita, vive. Mas quanto dele depende, leva-os ambos à morte. É o que diz o
Senhor: «Matais as ovelhas gordas e sadias e não apascentais o meu rebanho».
V, 10 - Já ouvistes o que fazem o maus pastores. Vede agora o que não fazem:
«Não fortaleceis as ovelhas débeis, não tratais as que estão doentes, não
curais as que estão feridas, não reconduzis as que se desgarraram, não
procurais as que se perderam»; e imolais, assassinais, «matais as fortes e
sadias».
Se uma ovelha está doente, isto é, se tem um coração doente, pode sucumbir nas
tentações, sobretudo se não está vigilante e preparada. Neste caso, o pastor
negligente não diz à ovelha do seu rebanho: «Filho, se queres servir a Deus,
permanece firme na justiça e no temor, e prepara a tua alma para a tentação».
Quem assim fala, fortalece o que é débil e torna-o forte, para que, tendo
abraçado a fé, não ponha a sua esperança nas prosperidades deste mundo. Porque
se for habituado a pôr a sua esperança nas prosperidades deste mundo, essas
mesmas prosperidades o vão corrompendo de tal modo que, ao sobrevirem as
adversidades, perturba-se, ou talvez sucumba totalmente.
Quem assim procede não edifica sobre pedra firme, mas sobre a areia. «Ora a
pedra era Cristo». Por isso os cristãos devem imitar os sofrimentos de Cristo e
não andar em busca de delícias. Fortalece-se o que é débil quando se lhe diz:
«Conta com as tentações deste mundo; mas de todas elas te livrará o Senhor, se
d'Ele não se afastar o teu coração. Foi para confortar o teu coração que Ele
veio a este mundo e por ti quis padecer e morrer; por ti sujeitou-Se aos
escarros e foi coroado de espinhos; por ti recebeu opróbrios e finalmente
morreu numa cruz. Tudo isto Ele sofreu por ti; e tu, nada. Tudo isto quis
sofrer, não para Seu próprio proveito, mas pensando somente em ti».
11 - Que espécie de pastores são esses que, para não desgostarem os seus
ouvintes, não só deixam de os preparar para as tentações eminentes, mas até
lhes prometem a felicidade deste mundo, felicidade que Deus nem sequer ao
próprio mundo prometeu? O Senhor anunciou tribulações sobre tribulações para
este mundo até ao fim dos tempos, e tu pretendes que o cristão possa viver sem
tribulações? Precisamente porque é cristão, terá de sofrer ainda mais neste
mundo.
Diz o Apóstolo: «Todos os que querem viver piedosamente em Cristo sofrerão
perseguições». Agora tu, pastor insensato, que procuras os teus interesses e
não os de Jesus Cristo, deixas que Ele diga: «Todos os que querem viver
piedosamente em Cristo sofrerão perseguições»; e por tua conta vais dizendo:
«Se viveres piedosamente em Cristo, terás tudo em abundância. E se não tens
filhos, hás-de tê-los e poderás alimentá-los com abundância, sem que nenhum
deles te morra». É este o teu processo de construir? Repara no que fazes e onde
constróis. Estás a construir sobre areia. «Virão as chuvas, transbordarão os
rios, soprarão os ventos e investirão contra essa casa; e ela cairá e será
grande a sua ruína».
Retira da areia a tua construção, edifica sobre a pedra; quem deseja ser
cristão tenha o seu fundamento em Cristo. Considere os sofrimentos humilhantes
de Cristo; olhe para Aquele que, sem pecado, pagou o que não devia; escute a
palavra da Escritura que lhe diz: «O Senhor castiga aquele que reconhece como
filho». Portanto, prepare-se para ser castigado ou renuncie a ser reconhecido
como filho.
Diz a Escritura: «O Senhor castiga aquele que reconhece como filho». E tu
dizes: «Talvez para mim haja uma exceção»? Recorda, porém, que se és excluído
do castigo, és excluído do número dos filhos. «Então — dirás tu — Ele castiga
absolutamente todos os filhos»? sem dúvida castiga todos os Seus filhos, como
castigou também o Seu Filho Unigénito. Aquele Filho Unigênito, igual ao Pai
«pela Sua condição divina», o Verbo pelo Qual todas as coisas foram feitas, não
tinha possibilidade de ser provado ou castigado. E no entanto, para não ficar
sem castigo, revestiu-Se de um corpo. Ora se Deus não poupou o Seu Filho
Unigênito que não conhecera o pecado, pensas que deixará sem castigo o filho
adotivo e pecador? O Apóstolo diz que fomos chamados à adoção. E de fato
recebemos a adoção filial, para sermos herdeiros com o Filho Unigênito, para
sermos sua herança, como diz o salmo: «Pede-Me e dar-te-ei as nações como
herança». Deus no-l'O dá como exemplo nos Seus sofrimentos.
12 - Mas, evidentemente, para que o débil não caia nas tentações futuras, nem
deve ser iludido com falsas esperanças, nem aterrorizado com excessivos
temores. Deves dizer-lhe: «Prepara a tua alma para a tentação». E se ao ouvir
estas palavras, ele começa a vacilar, a estremecer e a retroceder, deves
recordar-lhe também: «Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados acima das
vossas forças». Anunciar e predizer os sofrimentos futuros é dar força a quem é
débil; prometer a misericórdia de Deus, que assegura a vitória sobre todas as
tentações, é curar as feridas daquele que está excessivamente atemorizado.
Há de fato alguns que, ao ouvirem falar das provações que hão-de suportar,
preparam com maior empenho as suas armas e até têm sede de beber este cálice.
Parece-lhes insuficiente a medicina comum dos fiéis e fortalecem-se para a
glória do martírio. Há outros, porém, que ao ouvirem falar das provações
futuras que necessariamente os cristãos têm de suportar, e das quais só estão
isentos os que não querem ser verdadeiramente cristãos, perdem a coragem e
vacilam.
A estes oferece-lhes o conforto medicinal, cura a ovelha ferida. Diz: «Não
temas, não te abandonará nas tentações Aquele em Quem acreditaste. Deus é fiel,
não deixará que sejas tentado acima das tuas forças. Não é uma afirmação minha;
é o Apóstolo que o diz, e acrescenta: “Quereis uma prova de que Cristo fala em
mim”? Portanto, quando ouves estas palavras, ouves o próprio Cristo, ouves
Aquele Pastor que apascenta Israel, em nome do Qual foi dito: “Destes-nos a
beber copioso pranto, com medida”. O que diz o Apóstolo — “Não permite que
sejais tentados acima das vossas forças” — di-lo também o Profeta ao falar de
um pranto “com medida”. Não abandones, portanto, Aquele que te corrige e
exorta, atemoriza e consola, fere e cura a ferida».
VI, 13 - «Não fortaleceis as ovelhas débeis, nem tratais as doentes». Isto diz
o Senhor aos maus pastores, aos falsos pastores, aos pastores que procuram os
seus interesses e não os de Jesus Cristo, que recebem o leite e a lã das ovelhas,
mas não têm cuidado do rebanho, nem fortalecem as ovelhas débeis.
Entre o doente e o débil ou enfermo, isto é, não firme — embora também se
chamem enfermos ou débeis os doentes — pode notar-se uma diferença. É certo que
estas ideias que nos esforçamos por distinguir, poderíamos certamente
explicá-las com maior diligência e, sem dúvida, melhor o faria qualquer outro
que tivesse alcançado uma luz espiritual mais abundante. Mas para que não vos
sintais defraudados, vou dizer-vos o que penso quanto ao sentido que sugerem
estas palavras da Escritura.
Débil é aquele de quem se teme que sucumba na tentação; doente é aquele que
padece alguma paixão que o impede de seguir o caminho de Deus e aceitar o jugo
de Cristo.
Pensai nesses homens que querem viver bem, que se decidiram já a viver
dignamente, mas ainda não estão tão dispostos a sofrer o mal como a praticar o
bem. Ora a fortaleza cristã deve levar-nos não só a praticar o bem, mas também
a suportar o mal. Portanto, aqueles que desejam sinceramente praticar boas
obras, mas não querem ou não podem suportar os sofrimentos, são realmente
débeis. E aqueles que se entregam à vida mundana, cativos das más paixões, e
não praticam boas obras, esses estão doentes e inválidos e são incapazes de
realizar qualquer boa ação precisamente por causa da sua doença.
Assim estava a alma daquele paralítico que não pôde ser levado até junto do
Senhor; e aqueles que o transportaram abriram o teto, e por ali o introduziram
na casa onde o Senhor Se encontrava. Para conseguires o mesmo nas almas dos
homens, também tu deves abrir o teto e colocar na presença do Senhor a alma
paralítica, isto é, imobilizada nos seus membros inválidos, vazia de boas
obras, mas cheia de pecados e enfraquecida pela doença das suas paixões.
Portanto, se todos os membros estão imobilizados e há realmente uma paralisia
interior, para ires ter com o médico — talvez o médico esteja dentro de ti e
não dás pela Sua presença; seria este um sentido oculto nas Escrituras — se
queres descobrir-Lhe o que está oculto, abre o teto e coloca diante d'Ele o
paralítico.
Aos que não fazem nada disto nem se preocupam com fazê-lo, ouvistes a
advertência que eles ouvem: «Não fortaleceis as ovelhas doentes, não curais as
que estão feridas». Como já dissemos, a ovelha é ferida pelo terror das
tentações; e o pastor pode dar-lhe a medicina que cura essas feridas,
recordando-lhe aquelas palavras de conforto: «Deus é fiel, e não permitirá que
sejais tentados acima das vossas forças; mas no tempo da tentação dar-vos-á
forças para o vencer».
Fonte: http://patristicabrasil.blogspot.com.br
https://espelhodejustica.blogspot.com/2013/03/santo-agostinho-o-sermao-dos-pastores.html
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