O NATAL
NA PERSPECTIVA AGOSTINIANA
Por Fr. Jeferson Felipe Gomes da Silva
Cruz, OSA
Por volta de 411 d.C., Agostinho trocou
cartas com Volusiano, um pagão convicto, alto funcionário da corte romana,
procônsul da África. A principal página desse epistolário é a carta 137. Nela
Agostinho responde às dúvidas de Volusiano sobre o mistério da Encarnação.
Embora seja um conceito central para sua
compreensão do mistério salvífico de Cristo, Agostinho não escreveu nenhum
tratado específico sobre a Encarnação do Verbo de Deus. A carta a Volusiano e
o conjunto de
sermões natalinos, acrescidos de passagens em outras obras,
cumprem essa função no opus
agustinianum. A ausência de um tratado, contudo, não impede a
aproximação e o aprofundamento da perspectiva agostiniana sobre o Natal do
Senhor. E esta é, na medida do possível, a tentativa deste breve texto.
Já antes de sua conversão, Agostinho
ocupou-se com o mistério escondido nas palavras “o Verbo se fez carne”. Sua
compreensão, no entanto, foi aos poucos amadurecendo. Conforme ele mesmo narra
em suas Confissões:
“sabia apenas o que nos transmitiam as Escrituras, isto é: que (o Verbo feito carne)
comeu, bebeu, dormiu e caminhou, sentiu alegria e tristeza, conversou com os homens.
[...] Contudo [...] só muito mais tarde vim a saber o
significado dado pela doutrina católica às palavras ‘o Verbo se fez carne’”
(Conf. VII, 19,
25).
Na época de Agostinho havia muitas
interpretações do mistério da Encarnação. Os apolinários,
por exemplo, acreditavam que o Verbo eterno apenas se revestiu da carne humana,
mas sem alma. Os fotinianos, por sua vez, viam em Cristo não o próprio Deus,
mas apenas um homem milagroso, dotado de força divina. E, além desses, outros
grupos, como os arianos, os adocionistas e os maniqueus também ofereciam
interpretações. Agostinho,
ao contrário de todos esses grupos, defende
que o Verbo assumiu a natureza humana em sua completude;
“reconhecia em Cristo um homem completo, isto é, não somente o corpo de um
homem, ou corpo sem alma inteligente, mas um homem real” (Conf. VII, 19, 25). “Ele é
um homem porque na unidade de pessoa ele uniu a si mesmo uma alma racional e um
corpo.” (Epist. 140,
14)
O raciocínio para chegar a essa conclusão é
simples: da mesma
forma que Cristo exercia funções próprias do corpo (caminhar,
comer, beber, tocar, enxergar, falar, etc.), exercia também ministérios exclusivos
da alma (se maravilhar, se entristecer, se alegrar, se
regozijar, se enfurecer, se compadecer, etc.); uma alma verdadeiramente humana, dotada de inteligência e razão. Uma alma racional.
Mas o Filho de Deus encarnado não é apenas
verdadeiro homem, é também verdadeiro Deus, e não perdeu sua divindade ao
fazer-se partícipe de nossa debilidade (De
Civitate Dei, XXI, 15). Conforme diz Agostinho:
“Jesus,
Filho de Deus, é Deus e homem juntos [...]. Ele é Deus, porque é o Verbo de
Deus, pois o Verbo era Deus (Jo 1,1); é homem, porque, na unidade da pessoa, o
Verbo uniu a si uma alma racional e um corpo. Na medida em que é Deus, ele e o
Pai são um; enquanto homem, o Pai é maior do que ele. Pela unidade das duas
naturezas na única Pessoa do Verbo encarnado, aquele que é sempre Deus, não por
usurpação, mas por natureza, humilhou-se tomando forma de servo (Fl 2, 6-7),
mas sem perda ou prejuízo da forma de Deus. Assim, tornou-se menor, sendo o
mesmo. Graças à unidade de pessoa, não existem dois Filhos de Deus, Deus e
homem, mas apenas um: o Deus-homem, que é nosso Senhor Jesus Cristo”.
(Enchiridion,
11, 36)
No mistério da Encarnação, “havendo de fazer deuses aos que eram
homens, se fez homem o que era Deus” (Sermão 192, 1). Esse axioma da cristologia condensa a
perspectiva agostiniana sobre o Natal. O evento maravilhoso,
localizado pela Escritura em Belém da Judeia (Mt 2, 5-6; Lc 2, 4-7.11.15), é
uma verdadeira dialética de contrastes, segundo a perspectiva
agostiniana. A
Encarnação é a suma de todos os paradoxos em que se desenrola a história da
salvação.
Conforme lembra o Pe. Victorino
Capanaga, o Natal
agostiniano é a “esfera do paradoxo, como todo o mistério
de Cristo, que é mistério de luz e de sombras, de cumes inacessíveis e
manjedouras humildes. As coisas mais opostas se unem em sua pessoa: o alto e o
baixo, o luminoso e o escuro, o feliz e o infeliz, o régio e o servil, o rico e
o pobre, o glorioso e o vil”.[1] E
a apresentação desse feliz paradoxo, ou dessa dialética de contrates, fica
evidente na forma como Agostinho expõe o maravilhoso evento da Encarnação.
No Sermão 191, por exemplo, ele diz:
“Fazendo-se carne, o
Verbo do Pai que fez os tempos, fez para nós no tempo o dia do seu nascimento.
[...] Existindo junto com o Pai, ele precede todos os séculos; tendo nascido de
mãe, foi introduzido neste dia ao longo dos anos. Aquele que fez o homem
tornou-se homem. Desta forma, aquele que rege as estrelas é amamentado; o pão
tem fome; a fonte tem sede; dorme aquele que é a luz; o caminho se cansa na
caminhada; a verdade é acusada por falsas testemunhas; o juiz dos vivos e do
mortos é julgado por um juiz mortal; a justiça é condenada pelos injustos; a
disciplina é punida com chicotadas; o cacho de uvas é coroado de espinhos; a
rocha é pregada em um madeiro; a força parece enfraquecida; a saúde ferida;
e a vida é morta.” (Sermão
191, 1)
Com essa belíssima dialética, Agostinho quer
motivar os cristãos a subirem do temporal ao eterno, já que Deus dignou-se
descer do eterno ao temporal e já que Cristo “não considerou um privilégio ser
igual a Deus, mas esvaziou-se, assumindo a forma de servo e tornando-se
semelhante ao ser humano” (Fl 2, 6-7).
O paradoxo do Deus nascido está repleto de
ensinamentos para os seres humanos. Conforme diz o próprio Agostinho, “vede, oh
homem, o que Deus fez por ti; reconhece o ensinamento de grande humildade da
boca do Mestre que ainda não fala” (Sermo 188,
3). Alguns desses ensinamentos Agostinho explicitou no livro XIII do De Trinitate:
“Há na encarnação de Cristo muitos
outros bens extremamente odiosos aos espíritos arrogantes,
cuja contemplação e memória
são muito salutares. Um deles é fazer o homem compreender o lugar
que ocupa entre os seres que
Deus criou, pois a natureza humana pôde estar tão intimamente unida a Deus, que
uma pessoa surgiu das duas substâncias e, consequentemente, de três, Deus, alma
e carne [...]. Além disso, a graça divina, concedida a nós sem qualquer mérito
próprio, foi valorizada no homem Cristo; porque nem mesmo Cristo merecia por
seus méritos anteriores estar tão unido ao Deus verdadeiro, que chegasse a
formar uma pessoa, a do Filho de Deus; e no momento mesmo em que começou a ser
homem, tornou-se Deus: daí a expressão o Verbo se fez carne. Um terceiro bem: o
orgulho humano, principal obstáculo à união com Deus, foi corrigido e curado
pela profunda humildade de Deus. Através dela, o homem sabe o quanto se afastou
de Deus e pode apreciar melhor o valor terapêutico do sofrimento no caminho de
seu retorno, graças à ajuda de tal Mediador, que vem, como Deus, em auxílio dos
homens por meio de sua divindade, e como homem ele se parece conosco em
fraqueza. E então, que exemplo sublime de obediência para nós, arruinados por
um ato de desobediência, ver Deus Filho obedecer a Deus Pai até a morte na
cruz! Onde poderia brilhar mais a recompensa da obediência do que na carne
exaltada do Mediador ao ressuscitar para a vida eterna? Foi desígnio da justiça
e da bondade do Criador derrotar o demônio através de uma criatura racional,
descendente da mesma raça viciada em sua origem pela queda de um único homem,
entregando ao seu poder todo gênero humano.”
(De Trinitate,
XIII, 22).
Os ensinamentos decorrentes do mistério da
Encarnação são preciosos e urgentes, também, para o tempo desafiante que nos
toca viver. A
assunção, por Cristo, da real condição humana nos faz pensar na grandeza
(ameaçada) da natureza humana. Deus quis ter carne. Deus quis para si um corpo.
Deus quis viver com e como os seres humanos. Nós, contudo, celebramos esse
maravilhoso desígnio envoltos em paradoxos blasfemos e condenáveis: proclamamos
a humanização de Deus quando uma grande parcela da população mundial está
condenada, pela homicida ambição de alguns, a uma vida sub-humana; cantamos o
Natal do “príncipe da paz”, enquanto países travam guerra e semeiam morte;
celebramos o nascimento d’Aquele que congrega a todos no amor, enquanto
famílias, igrejas, comunidades padecem a divisão causada pelos extremismos
ideológicos. Confessamos a assunção da natureza humana por Deus enquanto
perseguimos, discriminamos e condenamos uma multidão de “seres humanos”.
Deus aceitou e assumiu a “dialética dos
contrastes” para fazer-nos encontrar o caminho da concórdia, da reconciliação e
da salvação. Ao que parece, nós ainda não aprendemos. Resta-nos insistir: “vamos, Senhor, age, desperta-nos,
convoca-nos, inflama-nos e arrebata-nos, enche-nos de fogo e doçura! Amemos!
Corramos!” (Conf. VIII, 4, 9).
https://agostinianos.org.br/artigo/dialetica-de-contrastes-o-natal-na-perspectiva-agostiniana/
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