sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

O NATAL NA PERSPECTIVA AGOSTINIANA

 

 

O NATAL NA PERSPECTIVA AGOSTINIANA

Por Fr. Jeferson Felipe Gomes da Silva Cruz, OSA

Por volta de 411 d.C., Agostinho trocou cartas com Volusiano, um pagão convicto, alto funcionário da corte romana, procônsul da África. A principal página desse epistolário é a carta 137. Nela Agostinho responde às dúvidas de Volusiano sobre o mistério da Encarnação.

Embora seja um conceito central para sua compreensão do mistério salvífico de Cristo, Agostinho não escreveu nenhum tratado específico sobre a Encarnação do Verbo de Deus. A carta a Volusiano e o conjunto de sermões natalinos, acrescidos de passagens em outras obras, cumprem essa função no opus agustinianum. A ausência de um tratado, contudo, não impede a aproximação e o aprofundamento da perspectiva agostiniana sobre o Natal do Senhor. E esta é, na medida do possível, a tentativa deste breve texto.

Já antes de sua conversão, Agostinho ocupou-se com o mistério escondido nas palavras “o Verbo se fez carne”. Sua compreensão, no entanto, foi aos poucos amadurecendo. Conforme ele mesmo narra em suas Confissões: “sabia apenas o que nos transmitiam as Escrituras, isto é: que (o Verbo feito carne) comeu, bebeu, dormiu e caminhou, sentiu alegria e tristeza, conversou com os homens. [...] Contudo [...] só muito mais tarde vim a saber o significado dado pela doutrina católica às palavras ‘o Verbo se fez carne’” (Conf. VII, 19, 25).

Na época de Agostinho havia muitas interpretações do mistério da Encarnação. Os apolinários, por exemplo, acreditavam que o Verbo eterno apenas se revestiu da carne humana, mas sem alma. Os fotinianos, por sua vez, viam em Cristo não o próprio Deus, mas apenas um homem milagroso, dotado de força divina. E, além desses, outros grupos, como os arianos, os adocionistas e os maniqueus também ofereciam interpretações.  Agostinho, ao contrário de todos esses grupos, defende que o Verbo assumiu a natureza humana em sua completude; “reconhecia em Cristo um homem completo, isto é, não somente o corpo de um homem, ou corpo sem alma inteligente, mas um homem real” (Conf. VII, 19, 25). “Ele é um homem porque na unidade de pessoa ele uniu a si mesmo uma alma racional e um corpo.” (Epist. 140, 14)       

O raciocínio para chegar a essa conclusão é simples: da mesma forma que Cristo exercia funções próprias do corpo (caminhar, comer, beber, tocar, enxergar, falar, etc.), exercia também ministérios exclusivos da alma (se maravilhar, se entristecer, se alegrar, se regozijar, se enfurecer, se compadecer, etc.); uma alma verdadeiramente humanadotada de inteligência e razãoUma alma racional.

Mas o Filho de Deus encarnado não é apenas verdadeiro homem, é também verdadeiro Deus, e não perdeu sua divindade ao fazer-se partícipe de nossa debilidade (De Civitate Dei, XXI, 15). Conforme diz Agostinho:

Jesus, Filho de Deus, é Deus e homem juntos [...]. Ele é Deus, porque é o Verbo de Deus, pois o Verbo era Deus (Jo 1,1); é homem, porque, na unidade da pessoa, o Verbo uniu a si uma alma racional e um corpo. Na medida em que é Deus, ele e o Pai são um; enquanto homem, o Pai é maior do que ele. Pela unidade das duas naturezas na única Pessoa do Verbo encarnado, aquele que é sempre Deus, não por usurpação, mas por natureza, humilhou-se tomando forma de servo (Fl 2, 6-7), mas sem perda ou prejuízo da forma de Deus. Assim, tornou-se menor, sendo o mesmo. Graças à unidade de pessoa, não existem dois Filhos de Deus, Deus e homem, mas apenas um: o Deus-homem, que é nosso Senhor Jesus Cristo”. (Enchiridion, 11, 36)

No mistério da Encarnação, “havendo de fazer deuses aos que eram homens, se fez homem o que era Deus” (Sermão 192, 1). Esse axioma da cristologia condensa a perspectiva agostiniana sobre o Natal. O evento maravilhoso, localizado pela Escritura em Belém da Judeia (Mt 2, 5-6; Lc 2, 4-7.11.15), é uma verdadeira dialética de contrastes, segundo a perspectiva agostiniana. A Encarnação é a suma de todos os paradoxos em que se desenrola a história da salvação.

Conforme lembra o Pe. Victorino Capanaga, o Natal agostiniano é a “esfera do paradoxo, como todo o mistério de Cristo, que é mistério de luz e de sombras, de cumes inacessíveis e manjedouras humildes. As coisas mais opostas se unem em sua pessoa: o alto e o baixo, o luminoso e o escuro, o feliz e o infeliz, o régio e o servil, o rico e o pobre, o glorioso e o vil”.[1] E a apresentação desse feliz paradoxo, ou dessa dialética de contrates, fica evidente na forma como Agostinho expõe o maravilhoso evento da Encarnação.

No Sermão 191, por exemplo, ele diz:

“Fazendo-se carne, o Verbo do Pai que fez os tempos, fez para nós no tempo o dia do seu nascimento. [...] Existindo junto com o Pai, ele precede todos os séculos; tendo nascido de mãe, foi introduzido neste dia ao longo dos anos. Aquele que fez o homem tornou-se homem. Desta forma, aquele que rege as estrelas é amamentado; o pão tem fome; a fonte tem sede; dorme aquele que é a luz; o caminho se cansa na caminhada; a verdade é acusada por falsas testemunhas; o juiz dos vivos e do mortos é julgado por um juiz mortal; a justiça é condenada pelos injustos; a disciplina é punida com chicotadas; o cacho de uvas é coroado de espinhos; a rocha é pregada em um madeiro; a força parece enfraquecida; a saúde ferida;
e a vida é morta.” (Sermão 191, 1)

Com essa belíssima dialética, Agostinho quer motivar os cristãos a subirem do temporal ao eterno, já que Deus dignou-se descer do eterno ao temporal e já que Cristo “não considerou um privilégio ser igual a Deus, mas esvaziou-se, assumindo a forma de servo e tornando-se semelhante ao ser humano” (Fl 2, 6-7).

O paradoxo do Deus nascido está repleto de ensinamentos para os seres humanos. Conforme diz o próprio Agostinho, “vede, oh homem, o que Deus fez por ti; reconhece o ensinamento de grande humildade da boca do Mestre que ainda não fala” (Sermo 188, 3). Alguns desses ensinamentos Agostinho explicitou no livro XIII do De Trinitate:

Há na encarnação de Cristo muitos outros bens extremamente odiosos aos espíritos arrogantes,
cuja contemplação e memória são muito salutares. Um deles é fazer o homem compreender o lugar
que ocupa entre os seres que Deus criou, pois a natureza humana pôde estar tão intimamente unida a Deus, que uma pessoa surgiu das duas substâncias e, consequentemente, de três, Deus, alma e carne [...]. Além disso, a graça divina, concedida a nós sem qualquer mérito próprio, foi valorizada no homem Cristo; porque nem mesmo Cristo merecia por seus méritos anteriores estar tão unido ao Deus verdadeiro, que chegasse a formar uma pessoa, a do Filho de Deus; e no momento mesmo em que começou a ser homem, tornou-se Deus: daí a expressão o Verbo se fez carne. Um terceiro bem: o orgulho humano, principal obstáculo à união com Deus, foi corrigido e curado pela profunda humildade de Deus. Através dela, o homem sabe o quanto se afastou de Deus e pode apreciar melhor o valor terapêutico do sofrimento no caminho de seu retorno, graças à ajuda de tal Mediador, que vem, como Deus, em auxílio dos homens por meio de sua divindade, e como homem ele se parece conosco em fraqueza. E então, que exemplo sublime de obediência para nós, arruinados por um ato de desobediência, ver Deus Filho obedecer a Deus Pai até a morte na cruz! Onde poderia brilhar mais a recompensa da obediência do que na carne exaltada do Mediador ao ressuscitar para a vida eterna? Foi desígnio da justiça e da bondade do Criador derrotar o demônio através de uma criatura racional, descendente da mesma raça viciada em sua origem pela queda de um único homem, entregando ao seu poder todo gênero humano
.”


(De Trinitate, XIII, 22).

Os ensinamentos decorrentes do mistério da Encarnação são preciosos e urgentes, também, para o tempo desafiante que nos toca viver. A assunção, por Cristo, da real condição humana nos faz pensar na grandeza (ameaçada) da natureza humana. Deus quis ter carne. Deus quis para si um corpo. Deus quis viver com e como os seres humanos. Nós, contudo, celebramos esse maravilhoso desígnio envoltos em paradoxos blasfemos e condenáveis: proclamamos a humanização de Deus quando uma grande parcela da população mundial está condenada, pela homicida ambição de alguns, a uma vida sub-humana; cantamos o Natal do “príncipe da paz”, enquanto países travam guerra e semeiam morte; celebramos o nascimento d’Aquele que congrega a todos no amor, enquanto famílias, igrejas, comunidades padecem a divisão causada pelos extremismos ideológicos. Confessamos a assunção da natureza humana por Deus enquanto perseguimos, discriminamos e condenamos uma multidão de “seres humanos”.

Deus aceitou e assumiu a “dialética dos contrastes” para fazer-nos encontrar o caminho da concórdia, da reconciliação e da salvação. Ao que parece, nós ainda não aprendemos. Resta-nos insistir: “vamos, Senhor, age, desperta-nos, convoca-nos, inflama-nos e arrebata-nos, enche-nos de fogo e doçura! Amemos! Corramos!” (Conf. VIII, 4, 9).   

https://agostinianos.org.br/artigo/dialetica-de-contrastes-o-natal-na-perspectiva-agostiniana/

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