quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

SANTO AGOSTINHO O SERMÃO DOS PASTORES (II)

 

 

SANTO AGOSTINHO

O SERMÃO DOS PASTORES (II)


VII, 14 - «Não reconduzis as ovelhas que se desgarraram, não procurais as que andam perdidas». Encontramo-nos neste mundo entre as mãos de ladrões e os dentes de lobos furiosos; por isso, ante estes perigos vos pedimos que não deixeis de orar. Além disso, há ovelhas que são rebeldes. Se procuramos os que se extraviaram por sua culpa e para sua perdição, dizem que nada temos com isso e respondem-nos: «Que quereis de nós? Porque nos procurais»? E não compreendem que a razão por que os procuramos e queremos salvar é precisamente o fato de andarem errantes e perdidos. «Se estou no erro — dizem-nos — se me perco, que te importa a ti; porque me procuras»? Justamente por que estás no erro, quero levar-te ao bom caminho; porque andas perdido, quero encontrar-te.


«Eu quero andar assim errante — replicam — quero andar assim perdido». Queres andar assim errante, assim perdido? Mas, com mais força ainda, não o quero eu. Digo-te claramente: quero ser importuno. Porque ressoam aos meus ouvidos as palavras do Apóstolo: «Prega a palavra, insiste oportuna e inoportunamente». Oportunamente para quem? Inoportunamente para quem? Oportunamente para quem quer ouvir, inoportunamente par quem não quer ouvir. Porque quero ser inoportuno, não hesito em dizer-te: «Tu queres errar, tu queres perder-te, mas não o quero eu. Não o quer principalmente Aquele que me faz tremer. Se eu quisesse também o teu erro e perdição, repara no que Ele diz, ouve como Ele me adverte: “Não reconduzis as ovelhas que se desgarraram, não procurais as que andam perdidas”. Hei-de ter mais medo de ti do que d'Ele? «Todos nós devemos comparecer perante o tribunal de Cristo». Não tenho medo de ti. Não podes derrubar o tribunal de Cristo e erigir o tribunal de Donato.


Hei-de reconduzir quem se extravia, hei-de procurar quem anda perdido. Quer queiras quer não, é isso que farei. E ainda que, ao procurar-te, os espinhos das silvas me rasguem a pele, passarei pelas veredas mais estreitas, saltarei todas as sebes e correrei por toda a parte, enquanto me der forças o Senhor que me faz tremer. Hei-de reconduzir quem se extravia, hei-de procurar quem anda perdido. Se não queres que eu sofra, não te extravies, não andes perdido.


15 - E não basta quanto sofro ao ver-te errante e perdido. Muito temo que venha a chegar a matar as ovelhas fortes e sadias se te abandono a ti. Repara no que se segue: «E matais as ovelhas fortes e sadias». Se eu for negligente em procurar o que se extravia e perde, também o que é forte e sadio sentirá a tentação de se extraviar e perder. Desejo lucros exteriores, mas temo mais os danos interiores. Se me mostrasse indiferente perante o teu extravio, o que é forte, ao ver isto, pensará que é uma coisa sem importância passar à heresia. Se não te procuro a ti que te perdeste, quando aparecer alguma comodidade no mundo que justifique a mudança, dir-me-á a ovelha forte que está perto de se perder: «Deus está aqui e está ali; que mais faz? Isto é obra de homens conflituosos; Deus pode adorar-se em toda a parte». Se por acaso lhe disser algum donatista: «Não te darei a minha filha se não tomas o meu partido», será necessário que ele pense e diga: «Se nada houvesse de mal em pertencer ao partido destes, os nossos pastores não diriam tantas coisas contra eles, não se preocupariam tanto com o seu extravio». Mas se deixamos de o dizer e nos calamos, dirá o contrário: «Certamente, se fosse coisa reprovável pertencer ao partido de Donato, falariam contra ele, refutá-lo-iam, esforçar-se-iam por os vencer. Se estivessem transviados, reconduzi-los-iam; se se perdessem, buscá-los-iam». Não é por acaso, pois, que depois de ter dito: «matastes a ovelha gorda», acrescenta concluindo: «acabastes com a forte». Isto seria uma repetição senão fosse pelo que antes dissemos: «Não reconduzistes a extraviada, e não procurastes a que estava perdida», e assim fazendo «matastes a forte».


VIII, 16 — Portanto, escutai o que se diz de seguida acerca destes pastores negligentes e maus: «As minhas ovelhas dispersaram-se por falta de pastor, convertendo-se em presa para todos os animais do campo». Os lobos devoram-nas, arrebatam-nas os leões rugindo, quando as ovelhas não estão unidas ao seu pastor. Mesmo que o pastor esteja presente, se este age mal não é verdadeiro pastor. Assim se juntam a pastores que não são pastores, que se apascentam a si mesmos, não as ovelhas. A consequência disto é um desvio mortal, pois entregam-se a animais predadores que desejam saciar-se com a sua morte. Assim são os que se alegram com os extravios de outros: animais que se alimentam de mortos.


17 - «Espalharam-se por todos os montes e colinas». Os animais que procedem dos montes e das colinas são o orgulho terreno e a soberba do mundo. Exaltou-se a soberba de Donato e criou um partido. Parmeniano, que o seguiu, consolidou o erro. O primeiro é o monte, o segundo a colina. Qualquer autor de um erro, inchando com a soberba da terra, promete a todas as ovelhas um repouso e bons pastos. E às vezes encontram ali as ovelhas pastos que têm a sua origem na chuva divina, não na dureza do monte. Também eles têm Escrituras e Sacramentos, mas estes não pertencem ao monte; e mesmo que se encontrem nele, é mau permanecer ali. Espalhados por montes e colinas, abandonam o rebanho, abandonam a unidade e os redis defendidos contra lobos e leões. Que Deus as chame para que saiam dali, que Ele próprio as chame. E agora mesmo O ouvistes chamar: «Espalharam-se por todos os montes e colinas», quer dizer, por causa de estarem cheias da soberba terrena.


Há também montes bons: «Levanto os meus olhos para os montes, donde me virá o auxílio». Mas percebe que a tua esperança não está nos montes: «O meu auxílio vem do Senhor, que fez o céu e a terra». Não penses que ofendes os montes santos quando dizes: «o meu auxílio vem para mim, não dos montes, mas do Senhor que fez o céu e a terra». Isto também to dizem os próprios montes, pois era como um monte aquele que clamava: «Ouvi que há cismas entre vós, e que cada um de vós diz: “Sou de Paulo, eu de Apolo, eu de Cefas, eu de Cristo». Levanta os olhos para este monte, escuta o que diz, mas não te deixes ficar nele; senão, escuta o que diz em seguida: «Acaso foi Paulo que foi crucificado por vós»? Portanto, depois de teres levantado os olhos para os montes, donde te vem o auxílio, quer dizer, para os escritores das Escrituras Sagradas, põe a tua atenção naquele que, com todas as suas forças, com todos os seus ossos, clama: «Senhor, quem é semelhante a Vós»? E assim poderás dizer tranquilo, sem ofensa alguma aos montes, que «o meu auxílio vem do Senhor, que fez o céu e a terra»; então não só te corroborarão os montes, mas também te amarão e fortalecerão mais; se tornares a por neles a tua esperança, entristecer-se-ão. Um anjo, que mostrava ao homem muitas coisas divinas e maravilhosas, foi adorado por este, como que elevando os olhos para o monte; mas o anjo, orientando-o para Deus, disse: «Não faças isso! Adora a Deus, pois eu sou Seu servo como tu e os teus irmãos».


18 - «Espalharam-se por todos os montes e colinas, dispersaram-se por toda a face da terra». Que significa: «Dispersaram-se por toda face da terra»? Quer dizer que se deixaram atrair pelas coisas terrenas, por tudo o que brilha à face da terra; e só isso amam e procuram. Não querem morrer, não querem aquela morte em que a sua vida se esconde em Cristo. «Dispersaram-se por toda a face da terra» porque amam os bens terrenos e andam errantes por toda a face da terra. Nem todos os hereges estão em toda a terra, mas em toda ela há hereges; uns aqui, outros ali, mas não faltam em nenhum lugar. Nem eles mesmos se conhecem: há uma seita em África, outra heresia no Oriente, outra no Egito, outra na Mesopotâmia, para dar alguns exemplos. Encontram-se em diversos lugares; uma só mãe, a soberba, os gerou a todos, como também uma só mãe, a nossa Igreja Católica, gerou todos os fiéis cristãos, que vivem no mundo inteiro.


Não é de admirar que a soberba gere a divisão, como a caridade gera a unidade. A nossa mãe, a Igreja Católica, com o Pastor que nela vive, procura por toda a parte os que andam errantes, fortalece os débeis, cura os doentes, trata os feridos. Vela por todos, embora os hereges não se conheçam diretamente uns aos outros; mas ela conhece-os a todos, porque está junto de todos. Por exemplo, em África existe o partido de Donato, não o dos eunomianos, e juntamente com eles está ali a Igreja Católica.


Ela é como a videira que foi crescendo e se propagou por toda a parte; aqueles hereges, porém, são como sarmentos inúteis, que a foice do agricultor tem de cortar por causa da sua esterilidade, não para amputar a videira mas apenas para a podar. Aqueles sarmentos ficam no mesmo lugar onde caíram ao serem cortados. A videira, porém, vai crescendo por todo o lado e conhece não só os sarmentos que nela permaneceram, mas também os que foram cortados e ficaram junto dela. Ela reconduz os extraviados, pois referindo-se aos sarmentos cortados, também diz o Apóstolo: «Poderoso é Deus para os enxertar de novo». Portanto, quer lhes chames ovelhas que se desgarraram do rebanho, quer lhes chames sarmentos que foram cortados da videira, Deus é tão poderoso para reconduzir as ovelhas como para enxertar de novo os sarmentos, porque Ele é o Pastor supremo e o verdadeiro Agricultor. «Dispersaram-se por toda face da terra, e ninguém se interessa por elas, ninguém as procura», quer dizer, nenhum daqueles meus pastores se interessa por elas, nenhum pastor humano as procura.


IX, 19 — «Por isso, pastores, escutai a palavra do Senhor: pela Minha vida, diz o Senhor Deus». Vede como começa. É como um juramento que faz o próprio Deus, tomando a Sua vida por testemunho: «Pela Minha vida, diz o Senhor». Os pastores morreram mas as ovelhas estão seguras, pela vida do Senhor. «Pela Minha vida, diz o Senhor Deus». Quais foram os pastores que morreram? Os que procuravam os seus interesses e não os de Jesus Cristo. Mas haverá outros pastores, que não procurem os seus interesses mas os de Jesus Cristo? Há certamente. Eles encontram-se e não faltam nem faltarão.


Vejamos o que diz o Senhor quando jura pela Sua vida; talvez diga que há-de tirar as ovelhas aos maus pastores, que se apascentam a si mesmos e não as ovelhas, e dar-lhes-á bons pastores, que apascentem as ovelhas e não a si mesmos. «Pela Minha vida, diz o Senhor Deus; as minhas ovelhas converteram-se presa para todos os animais ferozes, porque não têm pastor». De novo fala do Pastor, antes e agora; não diz: «porque não há pastores». Para tais ovelhas, que andam extraviadas para seu mal e para seu mal perdidas, não há Pastor, e mesmo que esteja presente (visto que, se estiver presente, há luz) não é luz para os cegos. «E os pastores não procuraram as minhas ovelhas; alimentaram-se a si mesmos e não as minhas ovelhas».


20 - «Por isso, pastores, escutai a palavra do Senhor». Mas que escutais, pastores? «Diz o Senhor: Eu enfrentarei os pastores e reclamarei as minhas ovelhas das suas mãos».


Ouvi e aprendei, ovelhas de Deus: Deus reclama as Suas ovelhas aos maus pastores e pede contas de as terem levado à morte. Com efeito, Ele diz noutro lugar por meio do mesmo Profeta: «Filho do homem, eu te constituí sentinela na casa de Israel. Quando ouvires a palavra da Minha boca, hás-de adverti-los da Minha parte. Se Eu disser ao pecador: “Vais morrer”, e tu não lhe falares para que ele se afaste do mau caminho, ele morrerá por causa da sua maldade, mas Eu perdir-te-ei contas do seu sangue. Mas se advertires o pecador para que se afaste do seu caminho e ele não se converter, ele morrerá por causa do seu pecado, mas tu salvarás a tua alma». Que é isto, irmãos? Vedes como é perigoso calar? O pecador morre e morre justamente; morre na sua impiedade e no seu pecado, a negligência o levou à morte. De fato, ele poderia ter encontrado o Pastor da vida, que diz: «Pela Minha vida, diz o Senhor». Mas não o fez, porque não foi advertido pela voz daquele que foi constituído chefe e sentinela precisamente para o advertir. Por isso aquele morrerá com toda a justiça, mas também este será condenado com toda a justiça. Se, porém — continua o Senhor — tu disseres ao pecador: «vais morrer, porque te ameaça a espada do Senhor», e ele nada fizer por evitar a espada que está iminente, e a espada realmente cair sobre ele e o matar, morrerá ele no seu pecado, mas tu salvarás a tua alma. Por isso, a nossa obrigação é advertir e não nos calarmos; vós, porém, ainda que nos calássemos, tendes o dever de ouvir as palavras do Pastor na Santa Escritura.


X, 21 — Vejamos agora, como era minha intenção, se Ele retira as ovelhas aos maus pastores e as confia aos bons pastores. Vejo, de fato, que Ele retira as ovelhas aos maus pastores, quando diz: «Eu enfrentarei os pastores e reclamarei as minhas ovelhas das suas mãos; não permitirei que apascentem mais as Minhas ovelhas e lese deixarão de ser pastores que se apascentam a si mesmos». Eu disse-lhes que apascentassem as Minhas ovelhas, mas eles apascentam-se a si mesmos e não as Minhas ovelhas. Por isso, «não permitirei que apascentem mais as Minhas ovelhas».


Como os afasta Ele, para que não apascentem mais as Suas ovelhas? Afasta-os quando diz: «Fazei o que eles dizem, mas não o que eles fazem», que é como se dissesse: «Dizem as Minhas palavras, mas procedem segundo os seus interesses». Podia ter dito: «Fazei tranquilamente o que fazem; a eles condená-los-ei por viverem mal, mas a vós perdoar-vos-ei, porque seguistes os vossos chefes». Se tivesse dito isto, repito, teria aterrorizado os maus pastores, que se apascentam a si mesmos e não as ovelhas. Mas Ele infunde assim temor não só ao cego que guia, mas também ao cego que o segue; não é dito que cai na fossa apenas o cego que conduz, e não aquele que o segue, mas sim que «se um cego guia outro cego, ambos caem na fossa». Por isso adverte as ovelhas, dizendo-lhes: «”Fazei o que eles dizem mas não o que eles fazem”. E assim, quando não fazeis o que fazem os maus pastores, não são eles que vos apascentam; quando fazeis o que eles dizem, sou Eu que vos apascento. Proclamam os Meus preceitos e não os cumprem».


Dizem alguns: «Seguimos os nossos bispos tranquilamente»; é algo que costumam dizer frequentemente os hereges, quando são convencidos pela verdade manifesta: «Nós somos ovelhas; eles darão conta de nós». Certamente darão má conta da vossa morte. O mau pastor dará má conta da morte da ovelha maligna. Porventura vive a ovelha quando se apresenta a sua pele? Recrimina-se o pastor por ter descuidado a ovelha transviada, devido ao que caiu nos dentes do lobo e foi devorada. De que lhe aproveita mostrar a pele marcada? O pai de família reclama a vida da ovelha, e é nesta ocasião que o mau pastor lhe apresenta a pele, dando conta somente da pele. Poderá mentir o pastor? Via-o desde o alto Quem depressa o julgará: contar-lhe-á as palavras e os atos, e vê também os seus pensamentos. O mau pastor apresenta a pele da ovelha morta: «Anunciei-lhe as Tuas palavras, mas não quis seguí-las; esforcei-me para que não se desviasse do rebanho, mas não me obedeceu». Se diz isto proferindo a verdade — e Deus sabe se diz a verdade — dá boa conta da ovelha má; se, pelo contrário, Deus vê que descuidou a ovelha desviada, que não procurou a que estava perdida, de que lhe serve ter encontrado a pele para a apresentar? Devia tê-la reconduzido ao rebanho, para não ter que mostrar a pele da ovelha morta. Se, pois, não deu boa conta quem a procurou quando estava extraviada, que contas dará quem a extraviou? Isto é aquilo que ouço: se o bispo da Igreja Católica não dá boa conta da ovelha, se não a procurou quando se desviou do rebanho de Deus, que contas há-de dar o bispo herege que não só não a reconduziu do extravio, mas antes o impulsionou?


22 — Mas vejamos, segundo disse, de que forma aparta Deus as ovelhas dos maus pastores. Já o disse antes: «Fazei o que dizem, mas não façais o que fazem». Não eles que vos apascentam, mas Deus; queiram ou não os pastores, para chegar ao leite e à lã, têm de anunciar a palavra de Deus. Diz o Apóstolo àqueles que dizem coisas boas e praticam o mal: «Tu que pregas que não se deve roubar, roubas». Escuta aquilo que é pregado, não roubes; não imites o que rouba. Se quiseres imitar o ladrão, ele te ultrapassará com a sua manha; dá-te veneno e não alimento. Mas se escutas que diz algo, não da sua colheita, mas da de Deus, vê bem, pois também o Senhor diz que «não se podem colher uvas das silvas nem figos dos abrolhos»; mas não deves, de certa maneira, caluniá-lO, dizendo: «Senhor, não me amparaste, porque não se podem colher uvas das silvas, e noutro lugar me disseste a propósito de alguns: “Fazei o que dizem mas não façais o que fazem”; ora, isto quer dizer que os que agem mal são silvas; como queres então que colha a uva da palavra destas silvas»? Ele responderá: «Aquela uva não é produto das silvas; o que acontece é que, por vezes, o sarmento se enrola na sebe, brotando as uvas no meio das silvas espessas; mas a sua raiz não está na raiz daquelas. Se tens fome e não tens de onde as tirar, mete a mão com cuidado para não te ferires nas silvas, quer dizer, para não imitar as ações dos maus; colhe assim a uva que jaz no meio das silvas, mas que é fruto da videira. O alimento abundante virá até ti, mas para as silvas está reservado o tormento do fogo».


XI, 23 - «Arrancarei de suas mãos e de seus dentes as minhas ovelhas, e não serão mais pasto seu». O mesmo é dito no Salmo: «Não sabem todos os que praticam a iniquidade que devoram o Meu povo como quem come pão»? «Já não serão mais pasto seu, porque isto diz o Senhor Deus: Eis-Me aqui Eu mesmo». Afastei as ovelhas dos maus pastores intimando-as a que não façam o que eles fazem, que não ajam as incautas e despreocupadas ovelhas como eles, maus pastores. Que dizer? A quem se dará o que aos maus se retirou? Aos pastores bons, talvez? Não é isso que está dito. Que diremos, irmãos? Será que não há pastores bons? Não se diz noutro lugar das Escrituras: «Dar-lhes-ei pastores segundo o Meu coração, que as apascentarão com disciplina»? Assim como não dá aos bons pastores as ovelhas que tira aos maus — como se não houvessem pastores bons — assim diz: «Aceitá-las-ei Eu»? Ele tinha dito a Pedro: «Apascenta as Minhas ovelhas». Que pensar então? Quando se entregaram a Pedro as ovelhas, o Senhor não disse: «Eu apascentarei as Minhas ovelhas, pelo que não o deves fazer», mas pelo contrário, foi dito: «Pedro, amas-Me? Apascenta as Minhas ovelhas». Porventura porque agora já não temos Pedro entre nós — já foi recebido no descanso dos apóstolos e dos mártires - não há ninguém a quem o Senhor das ovelhas possa dizer com confiança: «Apascenta as Minhas ovelhas»? Talvez, obrigado pela necessidade, desça do céu para exercer o ofício de apascentar as suas ovelhas, por não ter a quem as entregar e por não as querer deixar abandonadas? Assim parece, pois é dito: «Isto diz o Senhor Deus: “Eis-Me aqui Eu mesmo”», quer dizer, Aquele a Quem dizíamos: «Vós que conduzis José como um rebanho», o povo estabelecido no Egito. Israel, espalhado já entre os povos, é o próprio José, do qual sabeis que foi levado para o Egito, vendido pelos irmãos. Cristo também foi vendido pelos judeus: dentre os apóstolos, foi Judas quem O vendeu. Começando Cristo a estar entre os gentios, ali foi honrado, ali cresceu o Seu povo, não o abandonando o seu Pastor. Está dito: «Despertai o Vosso poder e vinde salvar-nos»; Ele faz isto agora e continuará a fazê-lo, e diz: «Eu mesmo procurarei as Minhas ovelhas, e as visitarei, como um pastor visita o seu rebanho». Os maus pastores não se preocuparam, não as resgataram com o seu sangue. «Como um pastor visita o seu rebanho durante o dia»; em que dia? «Quando hajam tempestades e nuvens», isto é, chuvas e trevas. As chuvas e as trevas são o extravio no mundo, uma grande obscuridade que surge dos apetites dos homens e uma grande névoa que cobra a terra. É difícil que no meio destas trevas se não extraviem as ovelhas, mas o Pastor não as abandona, antes as procurando através das trevas com Seu olhar aguçado, sem que a obscuridade O impeça de as ver. Ele vê-as, e chama a ovelha transviada em qualquer lugar onde ela esteja, para que se cumpra o que diz o Evangelho: «As Minhas ovelhas escutam a Minha voz e seguem-Me; entre todas procurarei as que são Minhas, reuni-las-ei de todos os lugares onde se desgarraram no dia das chuvas e da tempestade». Justamente quando for mais difícil encontrá-las é que Eu as encontrarei.


24 - «Arrancá-las-ei de entre os povos e as reunirei dos vários países; hei-de reconduzi-las à sua terra e apascentá-las nas montanhas de Israel». As montanhas de Israel são as páginas da Escritura divina. Apascentai-vos nela se quereis apascentar-vos em segurança. Tudo quanto nela encontrais, saboreai-o bem; tudo o que encontrais fora dela, rejeitai-o. Para não vos perderdes no meio do nevoeiro, ouvi a voz do Pastor, e reuni-vos nos montes da Santa Escritura. Aí estão as delícias do vosso coração, aí nada é venenoso, nada é prejudicial; são as pastagens fertilíssimas dos montes de Israel. Vinde, ovelhas sãs, vinde vós somente, e apascentais-vos nas pastagens sadias dos montes de Israel.


«E ao longo das ribeiras e em todos os prados da terra». Dos montes que vos mostramos brotaram os rios da pregação evangélica, quando «a Sua voz se fez ouvir por toda a terra» e, através destes rios da pregação evangélica, espalharam-se por toda a terra os prados férteis e abundantes, onde podem apascentar-se os rebanhos do Senhor.


«Apascentá-las-ei em boas pastagens e terão o seu redil nos altos montes de Israel», isto é, encontrarão um lugar onde possam descansar e dizer: «Estamos bem aqui; é verdade o que nos disseram, não nos enganaram». E descansarão na glória de Deus, que será o seu redil. «E dormirão», isto é, «descansarão em agradáveis delícias».


25 — «E terão abundantes pastagens nos montes de Israel». Já vos falei dos montes de Israel, que são aqueles montes benéficos para onde levantamos os olhos e donde nos vem o auxílio. Mas «o nosso auxílio vem do Senhor que fez o céu e a terra». Por isso, para que não puséssemos toda a nossa esperança naqueles montes, depois de dizer: «Apascentarei as Minhas ovelhas nos montes de Israel», acrescentou imediatamente: «Eu mesmo apascentarei as Minhas ovelhas». Por conseguinte, levanta os teus olhos para os montes, donde te virá o auxílio, mas espera somente n'Aquele que diz: «Eu mesmo apascentarei», porque o teu auxílio «vem do Senhor que fez o céu e a terra».


26 - «E fá-las-ei descansar, diz o Senhor Deus». Mas para as fazer descansar com o que é que Se preocupou antes? Eis que Ele o diz logo em seguida: «Isto diz o Senhor Deus: “Procurarei a que se perdeu, chamarei a que se desviou, ligarei a ferida, fortalecerei a débil e guardarei a que é forte”». Tudo coisas que não faziam os maus pastores, que se apascentavam a si mesmos, não as ovelhas. O Senhor não diz: «Estabelecerei outros pastores que façam isto», mas sim: «Eu mesmo o farei, pois não confiarei as Minhas ovelhas a nenhum outro». Estai tranquilos, irmãos; vós, que sois ovelhas, confiai. Somos nós os que temos de temer, como se nos faltasse o Bom Pastor.


XII, 27 — E termina assim: «Eu as apascentarei com justiça». Vede como só Ele pode apascentar o rebanho com justiça. De facto, qual é o homem que pode julgar o homem? A terra está cheia de juízos temerários. Aquele de quem perdêramos toda a esperança, de um momento para o outro converte-se e torna-se o melhor de todos. E aquele em quem tanto confiávamos, dum momento para o outro falha e torna-se o pior de todos. Nem o nosso temor é constante, nem o nosso amor é estável.


O que é hoje cada homem, dificilmente o sabe o próprio homem. E se de algum modo ele sabe o que é hoje, não sabe o que será amanhã. Só Deus apascenta com justiça, dando a cada um o que precisa: isto a uns, aquilo a outros, a cada qual o que lhe convém, porque Ele sabe o que deve fazer. Portanto, só Ele apascenta com justiça.


28 — Segundo o profeta Jeremias, «clamou a perdiz, reuniu ovos que não pôs, amontoando riquezas, mas sem juízo». Ao contrário desta perdiz que amontoou as suas riquezas sem juízo, este Pastor apascenta sabiamente. Porque foi a perdiz néscia? Porque reuniu aquilo que não gerou. Porque é sábio o Pastor? Porque cria o que Ele próprio gerou. Falo do Bom Pastor. Os pastores bons ou não existem ou estão ocultos. Se não os há, porque perdemos tempo? Se estão ocultos, porque não se fala deles? Na imagem daquela perdiz alguns dos nossos antecessores e comentadores da Escritura viram simbolizado o diabo, que reúne o que não gerou. Ele não é criador, mas imitador, amontoando nesciamente as suas riquezas. A ele não lhe importa se alguém se extravia desta ou daquela forma: quer é que todos se extraviem, seja por que erros forem. E quantas heresias, e tão diferentes, existem! E tantos erros! Ele deseja que os homens se percam em qualquer deles, não importa; o diabo não diz: «Sejam donatistas ou arianos». Seja aqui, seja ali, pertencem-lhe a ele, que reúne nesciamente: «Se adora aos ídolos, é meu; se permanece na superstição dos judeus, é meu; se abandona a unidade por esta ou aquela heresia, é meu». Reúne injustamente ao amontoar as suas riquezas.


E que se segue? «Na metade dos seus dias abandoná-la-ão, e no seu fim será néscia». Eis que chega Aquele que congrega de todas as pastes as Suas ovelhas; e eis que na metade dos seus dias, o mau pastor, antes do que esperava e pensava, vê-se abandonado pelas ovelhas, surgindo como um néscio no seu fim. Porque é que nos seus primeiros dias aparecia como sábio e nos últimos aparecerá como néscio? Escutai, irmãos. Por vezes, na Escritura, diz-se sabedoria em lugar de astúcia, num sentido figurado, não no próprio. É assim que se diz: «Onde está o sábio, onde está o douto, onde está o investigador das coisas deste mundo? Não tornou Deus néscia a sabedoria deste mundo»? Esta perdiz, este dragão, esta serpente mostrou-se aparentemente sábia quando, por meio de Eva, enganou Adão. Acreditou Adão que ela dizia a verdade, estimando que lhe dava um bom conselho; acreditou nela em vez de acreditar em Deus. Segundo o costume das Escrituras — pois não nos importa o que dizem os gramáticos deste mundo — fala-se da sabedoria em sentido abusivo e mau, e isso pode ser comprovado no mesmo livro: «Era a serpente a mais sábia de todos os animais». Este animal, o mais sábio de todos, é considerada astuta e hábil a enganar. Logo, já não se lhe dá crédito. Devemos dizer-lhe: «Renunciamos a ti; basta que, incautamente, nos tenhas enganado da primeira vez». Deste modo, pois, será néscia nos seus últimos dias; serão descobertas as suas fraudes, e por isso mesmo deixará de existir. Nos seus últimos dias será néscio quem reuniu o que não gerou e amontoou riquezas sem juízo. Ao contrário deste, o nosso Redentor apascenta sabiamente.


29 — Pensemos num herege qualquer. Ainda que não seja irmão do diabo, certamente que é seu ajudante e filho. Também a ele lhe chamamos perdiz e animal dado a contendas. Os caçadores sabem que esta ave pode ser caçada pela sua ânsia de lutar. Os hereges lutaram contra a verdade logo desde o momento em que se separaram. Agora dizem: «Não queremos lutar», porque já estão capturados. Não têm que mais dizer senão: «Não quero lutas». Oh cativo! Sem dúvida eras tu que nos primeiros tempos da tua separação nos acusavas de «traditores», condenavas os inocentes, procuravas o tribunal do Imperador, não te submetias ao juízo dos bispos, sempre que eras vencido voltavas a apelar, diante do próprio Imperador litigavas afanosamente! Reunias o que não havias gerado, Onde está agora a tua dura cerviz? Onde está a tua língua? Onde está o teu silvo, oh serpente? Certamente que nos teus últimos dias te tornaste néscio, te atemorizaste por não seres sábio. Já não queres julgar aquilo que está certo, nem sequer o teu erro, nem a verdade. Mas Cristo apascenta-te com justiça; Ele distingue as Suas ovelhas das que não são Suas. Diz o Senhor: «As Minhas ovelhas ouvem a Minha voz e seguem-Me».


XIII, 30 - Aqui vejo todos os bons pastores identificados com o Bom Pastor. Não faltam pastores.

 

 

Fonte: http://patristicabrasil.blogspot.com.br

 

https://espelhodejustica.blogspot.com/2013/03/santo-agostinho-o-sermao-dos-pastores.html

 

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