SANTO
AGOSTINHO
O SERMÃO DOS PASTORES (II)
VII, 14 - «Não reconduzis as ovelhas que se desgarraram, não procurais as que
andam perdidas». Encontramo-nos neste mundo entre as mãos de ladrões e os
dentes de lobos furiosos; por isso, ante estes perigos vos pedimos que não
deixeis de orar. Além disso, há ovelhas que são rebeldes. Se procuramos os que
se extraviaram por sua culpa e para sua perdição, dizem que nada temos com isso
e respondem-nos: «Que quereis de nós? Porque nos procurais»? E não compreendem
que a razão por que os procuramos e queremos salvar é precisamente o fato de
andarem errantes e perdidos. «Se estou no erro — dizem-nos — se me perco, que
te importa a ti; porque me procuras»? Justamente por que estás no erro, quero
levar-te ao bom caminho; porque andas perdido, quero encontrar-te.
«Eu quero andar assim errante — replicam — quero andar assim perdido». Queres
andar assim errante, assim perdido? Mas, com mais força ainda, não o quero eu.
Digo-te claramente: quero ser importuno. Porque ressoam aos meus ouvidos as
palavras do Apóstolo: «Prega a palavra, insiste oportuna e inoportunamente».
Oportunamente para quem? Inoportunamente para quem? Oportunamente para quem
quer ouvir, inoportunamente par quem não quer ouvir. Porque quero ser
inoportuno, não hesito em dizer-te: «Tu queres errar, tu queres perder-te, mas
não o quero eu. Não o quer principalmente Aquele que me faz tremer. Se eu
quisesse também o teu erro e perdição, repara no que Ele diz, ouve como Ele me
adverte: “Não reconduzis as ovelhas que se desgarraram, não procurais as que
andam perdidas”. Hei-de ter mais medo de ti do que d'Ele? «Todos nós devemos
comparecer perante o tribunal de Cristo». Não tenho medo de ti. Não podes
derrubar o tribunal de Cristo e erigir o tribunal de Donato.
Hei-de reconduzir quem se extravia, hei-de procurar quem anda perdido. Quer
queiras quer não, é isso que farei. E ainda que, ao procurar-te, os espinhos
das silvas me rasguem a pele, passarei pelas veredas mais estreitas, saltarei
todas as sebes e correrei por toda a parte, enquanto me der forças o Senhor que
me faz tremer. Hei-de reconduzir quem se extravia, hei-de procurar quem anda
perdido. Se não queres que eu sofra, não te extravies, não andes perdido.
15 - E não basta quanto sofro ao ver-te errante e perdido. Muito temo que venha
a chegar a matar as ovelhas fortes e sadias se te abandono a ti. Repara no que
se segue: «E matais as ovelhas fortes e sadias». Se eu for negligente em
procurar o que se extravia e perde, também o que é forte e sadio sentirá a
tentação de se extraviar e perder. Desejo lucros exteriores, mas temo mais os
danos interiores. Se me mostrasse indiferente perante o teu extravio, o que é
forte, ao ver isto, pensará que é uma coisa sem importância passar à heresia.
Se não te procuro a ti que te perdeste, quando aparecer alguma comodidade no
mundo que justifique a mudança, dir-me-á a ovelha forte que está perto de se
perder: «Deus está aqui e está ali; que mais faz? Isto é obra de homens
conflituosos; Deus pode adorar-se em toda a parte». Se por acaso lhe disser algum
donatista: «Não te darei a minha filha se não tomas o meu partido», será
necessário que ele pense e diga: «Se nada houvesse de mal em pertencer ao
partido destes, os nossos pastores não diriam tantas coisas contra eles, não se
preocupariam tanto com o seu extravio». Mas se deixamos de o dizer e nos
calamos, dirá o contrário: «Certamente, se fosse coisa reprovável pertencer ao
partido de Donato, falariam contra ele, refutá-lo-iam, esforçar-se-iam por os
vencer. Se estivessem transviados, reconduzi-los-iam; se se perdessem,
buscá-los-iam». Não é por acaso, pois, que depois de ter dito: «matastes a
ovelha gorda», acrescenta concluindo: «acabastes com a forte». Isto seria uma
repetição senão fosse pelo que antes dissemos: «Não reconduzistes a extraviada,
e não procurastes a que estava perdida», e assim fazendo «matastes a forte».
VIII, 16 — Portanto, escutai o que se diz de seguida acerca destes pastores
negligentes e maus: «As minhas ovelhas dispersaram-se por falta de pastor,
convertendo-se em presa para todos os animais do campo». Os lobos devoram-nas,
arrebatam-nas os leões rugindo, quando as ovelhas não estão unidas ao seu
pastor. Mesmo que o pastor esteja presente, se este age mal não é verdadeiro
pastor. Assim se juntam a pastores que não são pastores, que se apascentam a si
mesmos, não as ovelhas. A consequência disto é um desvio mortal, pois
entregam-se a animais predadores que desejam saciar-se com a sua morte. Assim
são os que se alegram com os extravios de outros: animais que se alimentam de
mortos.
17 - «Espalharam-se por todos os montes e colinas». Os animais que procedem dos
montes e das colinas são o orgulho terreno e a soberba do mundo. Exaltou-se a
soberba de Donato e criou um partido. Parmeniano, que o seguiu, consolidou o
erro. O primeiro é o monte, o segundo a colina. Qualquer autor de um erro,
inchando com a soberba da terra, promete a todas as ovelhas um repouso e bons
pastos. E às vezes encontram ali as ovelhas pastos que têm a sua origem na
chuva divina, não na dureza do monte. Também eles têm Escrituras e Sacramentos,
mas estes não pertencem ao monte; e mesmo que se encontrem nele, é mau
permanecer ali. Espalhados por montes e colinas, abandonam o rebanho, abandonam
a unidade e os redis defendidos contra lobos e leões. Que Deus as chame para
que saiam dali, que Ele próprio as chame. E agora mesmo O ouvistes chamar:
«Espalharam-se por todos os montes e colinas», quer dizer, por causa de estarem
cheias da soberba terrena.
Há também montes bons: «Levanto os meus olhos para os montes, donde me virá o
auxílio». Mas percebe que a tua esperança não está nos montes: «O meu auxílio
vem do Senhor, que fez o céu e a terra». Não penses que ofendes os montes
santos quando dizes: «o meu auxílio vem para mim, não dos montes, mas do Senhor
que fez o céu e a terra». Isto também to dizem os próprios montes, pois era
como um monte aquele que clamava: «Ouvi que há cismas entre vós, e que cada um
de vós diz: “Sou de Paulo, eu de Apolo, eu de Cefas, eu de Cristo». Levanta os
olhos para este monte, escuta o que diz, mas não te deixes ficar nele; senão,
escuta o que diz em seguida: «Acaso foi Paulo que foi crucificado por vós»?
Portanto, depois de teres levantado os olhos para os montes, donde te vem o
auxílio, quer dizer, para os escritores das Escrituras Sagradas, põe a tua
atenção naquele que, com todas as suas forças, com todos os seus ossos, clama:
«Senhor, quem é semelhante a Vós»? E assim poderás dizer tranquilo, sem ofensa
alguma aos montes, que «o meu auxílio vem do Senhor, que fez o céu e a terra»;
então não só te corroborarão os montes, mas também te amarão e fortalecerão
mais; se tornares a por neles a tua esperança, entristecer-se-ão. Um anjo, que
mostrava ao homem muitas coisas divinas e maravilhosas, foi adorado por este,
como que elevando os olhos para o monte; mas o anjo, orientando-o para Deus,
disse: «Não faças isso! Adora a Deus, pois eu sou Seu servo como tu e os teus
irmãos».
18 - «Espalharam-se por todos os montes e colinas, dispersaram-se por toda a
face da terra». Que significa: «Dispersaram-se por toda face da terra»? Quer
dizer que se deixaram atrair pelas coisas terrenas, por tudo o que brilha à
face da terra; e só isso amam e procuram. Não querem morrer, não querem aquela
morte em que a sua vida se esconde em Cristo. «Dispersaram-se por toda a face
da terra» porque amam os bens terrenos e andam errantes por toda a face da
terra. Nem todos os hereges estão em toda a terra, mas em toda ela há hereges;
uns aqui, outros ali, mas não faltam em nenhum lugar. Nem eles mesmos se
conhecem: há uma seita em África, outra heresia no Oriente, outra no Egito,
outra na Mesopotâmia, para dar alguns exemplos. Encontram-se em diversos
lugares; uma só mãe, a soberba, os gerou a todos, como também uma só mãe, a
nossa Igreja Católica, gerou todos os fiéis cristãos, que vivem no mundo
inteiro.
Não é de admirar que a soberba gere a divisão, como a caridade gera a unidade.
A nossa mãe, a Igreja Católica, com o Pastor que nela vive, procura por toda a
parte os que andam errantes, fortalece os débeis, cura os doentes, trata os
feridos. Vela por todos, embora os hereges não se conheçam diretamente uns aos
outros; mas ela conhece-os a todos, porque está junto de todos. Por exemplo, em
África existe o partido de Donato, não o dos eunomianos, e juntamente com eles
está ali a Igreja Católica.
Ela é como a videira que foi crescendo e se propagou por toda a parte; aqueles
hereges, porém, são como sarmentos inúteis, que a foice do agricultor tem de
cortar por causa da sua esterilidade, não para amputar a videira mas apenas para
a podar. Aqueles sarmentos ficam no mesmo lugar onde caíram ao serem cortados.
A videira, porém, vai crescendo por todo o lado e conhece não só os sarmentos
que nela permaneceram, mas também os que foram cortados e ficaram junto dela.
Ela reconduz os extraviados, pois referindo-se aos sarmentos cortados, também
diz o Apóstolo: «Poderoso é Deus para os enxertar de novo». Portanto, quer lhes
chames ovelhas que se desgarraram do rebanho, quer lhes chames sarmentos que
foram cortados da videira, Deus é tão poderoso para reconduzir as ovelhas como
para enxertar de novo os sarmentos, porque Ele é o Pastor supremo e o
verdadeiro Agricultor. «Dispersaram-se por toda face da terra, e ninguém se
interessa por elas, ninguém as procura», quer dizer, nenhum daqueles meus
pastores se interessa por elas, nenhum pastor humano as procura.
IX, 19 — «Por isso, pastores, escutai a palavra do Senhor: pela Minha vida, diz
o Senhor Deus». Vede como começa. É como um juramento que faz o próprio Deus,
tomando a Sua vida por testemunho: «Pela Minha vida, diz o Senhor». Os pastores
morreram mas as ovelhas estão seguras, pela vida do Senhor. «Pela Minha vida,
diz o Senhor Deus». Quais foram os pastores que morreram? Os que procuravam os
seus interesses e não os de Jesus Cristo. Mas haverá outros pastores, que não
procurem os seus interesses mas os de Jesus Cristo? Há certamente. Eles
encontram-se e não faltam nem faltarão.
Vejamos o que diz o Senhor quando jura pela Sua vida; talvez diga que há-de
tirar as ovelhas aos maus pastores, que se apascentam a si mesmos e não as
ovelhas, e dar-lhes-á bons pastores, que apascentem as ovelhas e não a si
mesmos. «Pela Minha vida, diz o Senhor Deus; as minhas ovelhas converteram-se
presa para todos os animais ferozes, porque não têm pastor». De novo fala do
Pastor, antes e agora; não diz: «porque não há pastores». Para tais ovelhas,
que andam extraviadas para seu mal e para seu mal perdidas, não há Pastor, e
mesmo que esteja presente (visto que, se estiver presente, há luz) não é luz
para os cegos. «E os pastores não procuraram as minhas ovelhas; alimentaram-se
a si mesmos e não as minhas ovelhas».
20 - «Por isso, pastores, escutai a palavra do Senhor». Mas que escutais,
pastores? «Diz o Senhor: Eu enfrentarei os pastores e reclamarei as minhas ovelhas
das suas mãos».
Ouvi e aprendei, ovelhas de Deus: Deus reclama as Suas ovelhas aos maus
pastores e pede contas de as terem levado à morte. Com efeito, Ele diz noutro
lugar por meio do mesmo Profeta: «Filho do homem, eu te constituí sentinela na
casa de Israel. Quando ouvires a palavra da Minha boca, hás-de adverti-los da
Minha parte. Se Eu disser ao pecador: “Vais morrer”, e tu não lhe falares para
que ele se afaste do mau caminho, ele morrerá por causa da sua maldade, mas Eu
perdir-te-ei contas do seu sangue. Mas se advertires o pecador para que se
afaste do seu caminho e ele não se converter, ele morrerá por causa do seu
pecado, mas tu salvarás a tua alma». Que é isto, irmãos? Vedes como é perigoso
calar? O pecador morre e morre justamente; morre na sua impiedade e no seu
pecado, a negligência o levou à morte. De fato, ele poderia ter encontrado o
Pastor da vida, que diz: «Pela Minha vida, diz o Senhor». Mas não o fez, porque
não foi advertido pela voz daquele que foi constituído chefe e sentinela precisamente
para o advertir. Por isso aquele morrerá com toda a justiça, mas também este
será condenado com toda a justiça. Se, porém — continua o Senhor — tu disseres
ao pecador: «vais morrer, porque te ameaça a espada do Senhor», e ele nada
fizer por evitar a espada que está iminente, e a espada realmente cair sobre
ele e o matar, morrerá ele no seu pecado, mas tu salvarás a tua alma. Por isso,
a nossa obrigação é advertir e não nos calarmos; vós, porém, ainda que nos
calássemos, tendes o dever de ouvir as palavras do Pastor na Santa Escritura.
X, 21 — Vejamos agora, como era minha intenção, se Ele retira as ovelhas aos
maus pastores e as confia aos bons pastores. Vejo, de fato, que Ele retira as
ovelhas aos maus pastores, quando diz: «Eu enfrentarei os pastores e reclamarei
as minhas ovelhas das suas mãos; não permitirei que apascentem mais as Minhas
ovelhas e lese deixarão de ser pastores que se apascentam a si mesmos». Eu
disse-lhes que apascentassem as Minhas ovelhas, mas eles apascentam-se a si mesmos
e não as Minhas ovelhas. Por isso, «não permitirei que apascentem mais as
Minhas ovelhas».
Como os afasta Ele, para que não apascentem mais as Suas ovelhas? Afasta-os
quando diz: «Fazei o que eles dizem, mas não o que eles fazem», que é como se
dissesse: «Dizem as Minhas palavras, mas procedem segundo os seus interesses».
Podia ter dito: «Fazei tranquilamente o que fazem; a eles condená-los-ei por
viverem mal, mas a vós perdoar-vos-ei, porque seguistes os vossos chefes». Se
tivesse dito isto, repito, teria aterrorizado os maus pastores, que se
apascentam a si mesmos e não as ovelhas. Mas Ele infunde assim temor não só ao
cego que guia, mas também ao cego que o segue; não é dito que cai na fossa
apenas o cego que conduz, e não aquele que o segue, mas sim que «se um cego
guia outro cego, ambos caem na fossa». Por isso adverte as ovelhas,
dizendo-lhes: «”Fazei o que eles dizem mas não o que eles fazem”. E assim,
quando não fazeis o que fazem os maus pastores, não são eles que vos
apascentam; quando fazeis o que eles dizem, sou Eu que vos apascento. Proclamam
os Meus preceitos e não os cumprem».
Dizem alguns: «Seguimos os nossos bispos tranquilamente»; é algo que costumam
dizer frequentemente os hereges, quando são convencidos pela verdade manifesta:
«Nós somos ovelhas; eles darão conta de nós». Certamente darão má conta da
vossa morte. O mau pastor dará má conta da morte da ovelha maligna. Porventura
vive a ovelha quando se apresenta a sua pele? Recrimina-se o pastor por ter
descuidado a ovelha transviada, devido ao que caiu nos dentes do lobo e foi
devorada. De que lhe aproveita mostrar a pele marcada? O pai de família reclama
a vida da ovelha, e é nesta ocasião que o mau pastor lhe apresenta a pele,
dando conta somente da pele. Poderá mentir o pastor? Via-o desde o alto Quem
depressa o julgará: contar-lhe-á as palavras e os atos, e vê também os seus
pensamentos. O mau pastor apresenta a pele da ovelha morta: «Anunciei-lhe as
Tuas palavras, mas não quis seguí-las; esforcei-me para que não se desviasse do
rebanho, mas não me obedeceu». Se diz isto proferindo a verdade — e Deus sabe
se diz a verdade — dá boa conta da ovelha má; se, pelo contrário, Deus vê que
descuidou a ovelha desviada, que não procurou a que estava perdida, de que lhe
serve ter encontrado a pele para a apresentar? Devia tê-la reconduzido ao
rebanho, para não ter que mostrar a pele da ovelha morta. Se, pois, não deu boa
conta quem a procurou quando estava extraviada, que contas dará quem a
extraviou? Isto é aquilo que ouço: se o bispo da Igreja Católica não dá boa
conta da ovelha, se não a procurou quando se desviou do rebanho de Deus, que
contas há-de dar o bispo herege que não só não a reconduziu do extravio, mas
antes o impulsionou?
22 — Mas vejamos, segundo disse, de que forma aparta Deus as ovelhas dos maus
pastores. Já o disse antes: «Fazei o que dizem, mas não façais o que fazem».
Não eles que vos apascentam, mas Deus; queiram ou não os pastores, para chegar
ao leite e à lã, têm de anunciar a palavra de Deus. Diz o Apóstolo àqueles que
dizem coisas boas e praticam o mal: «Tu que pregas que não se deve roubar,
roubas». Escuta aquilo que é pregado, não roubes; não imites o que rouba. Se
quiseres imitar o ladrão, ele te ultrapassará com a sua manha; dá-te veneno e
não alimento. Mas se escutas que diz algo, não da sua colheita, mas da de Deus,
vê bem, pois também o Senhor diz que «não se podem colher uvas das silvas nem
figos dos abrolhos»; mas não deves, de certa maneira, caluniá-lO, dizendo:
«Senhor, não me amparaste, porque não se podem colher uvas das silvas, e noutro
lugar me disseste a propósito de alguns: “Fazei o que dizem mas não façais o
que fazem”; ora, isto quer dizer que os que agem mal são silvas; como queres
então que colha a uva da palavra destas silvas»? Ele responderá: «Aquela uva
não é produto das silvas; o que acontece é que, por vezes, o sarmento se enrola
na sebe, brotando as uvas no meio das silvas espessas; mas a sua raiz não está
na raiz daquelas. Se tens fome e não tens de onde as tirar, mete a mão com
cuidado para não te ferires nas silvas, quer dizer, para não imitar as ações
dos maus; colhe assim a uva que jaz no meio das silvas, mas que é fruto da
videira. O alimento abundante virá até ti, mas para as silvas está reservado o
tormento do fogo».
XI, 23 - «Arrancarei de suas mãos e de seus dentes as minhas ovelhas, e não
serão mais pasto seu». O mesmo é dito no Salmo: «Não sabem todos os que
praticam a iniquidade que devoram o Meu povo como quem come pão»? «Já não serão
mais pasto seu, porque isto diz o Senhor Deus: Eis-Me aqui Eu mesmo». Afastei
as ovelhas dos maus pastores intimando-as a que não façam o que eles fazem, que
não ajam as incautas e despreocupadas ovelhas como eles, maus pastores. Que
dizer? A quem se dará o que aos maus se retirou? Aos pastores bons, talvez? Não
é isso que está dito. Que diremos, irmãos? Será que não há pastores bons? Não
se diz noutro lugar das Escrituras: «Dar-lhes-ei pastores segundo o Meu
coração, que as apascentarão com disciplina»? Assim como não dá aos bons
pastores as ovelhas que tira aos maus — como se não houvessem pastores bons —
assim diz: «Aceitá-las-ei Eu»? Ele tinha dito a Pedro: «Apascenta as Minhas
ovelhas». Que pensar então? Quando se entregaram a Pedro as ovelhas, o Senhor
não disse: «Eu apascentarei as Minhas ovelhas, pelo que não o deves fazer», mas
pelo contrário, foi dito: «Pedro, amas-Me? Apascenta as Minhas ovelhas».
Porventura porque agora já não temos Pedro entre nós — já foi recebido no
descanso dos apóstolos e dos mártires - não há ninguém a quem o Senhor das
ovelhas possa dizer com confiança: «Apascenta as Minhas ovelhas»? Talvez,
obrigado pela necessidade, desça do céu para exercer o ofício de apascentar as
suas ovelhas, por não ter a quem as entregar e por não as querer deixar
abandonadas? Assim parece, pois é dito: «Isto diz o Senhor Deus: “Eis-Me aqui
Eu mesmo”», quer dizer, Aquele a Quem dizíamos: «Vós que conduzis José como um
rebanho», o povo estabelecido no Egito. Israel, espalhado já entre os povos, é
o próprio José, do qual sabeis que foi levado para o Egito, vendido pelos
irmãos. Cristo também foi vendido pelos judeus: dentre os apóstolos, foi Judas
quem O vendeu. Começando Cristo a estar entre os gentios, ali foi honrado, ali
cresceu o Seu povo, não o abandonando o seu Pastor. Está dito: «Despertai o
Vosso poder e vinde salvar-nos»; Ele faz isto agora e continuará a fazê-lo, e
diz: «Eu mesmo procurarei as Minhas ovelhas, e as visitarei, como um pastor
visita o seu rebanho». Os maus pastores não se preocuparam, não as resgataram
com o seu sangue. «Como um pastor visita o seu rebanho durante o dia»; em que
dia? «Quando hajam tempestades e nuvens», isto é, chuvas e trevas. As chuvas e
as trevas são o extravio no mundo, uma grande obscuridade que surge dos
apetites dos homens e uma grande névoa que cobra a terra. É difícil que no meio
destas trevas se não extraviem as ovelhas, mas o Pastor não as abandona, antes
as procurando através das trevas com Seu olhar aguçado, sem que a obscuridade O
impeça de as ver. Ele vê-as, e chama a ovelha transviada em qualquer lugar onde
ela esteja, para que se cumpra o que diz o Evangelho: «As Minhas ovelhas
escutam a Minha voz e seguem-Me; entre todas procurarei as que são Minhas,
reuni-las-ei de todos os lugares onde se desgarraram no dia das chuvas e da
tempestade». Justamente quando for mais difícil encontrá-las é que Eu as
encontrarei.
24 - «Arrancá-las-ei de entre os povos e as reunirei dos vários países; hei-de
reconduzi-las à sua terra e apascentá-las nas montanhas de Israel». As
montanhas de Israel são as páginas da Escritura divina. Apascentai-vos nela se
quereis apascentar-vos em segurança. Tudo quanto nela encontrais, saboreai-o
bem; tudo o que encontrais fora dela, rejeitai-o. Para não vos perderdes no
meio do nevoeiro, ouvi a voz do Pastor, e reuni-vos nos montes da Santa
Escritura. Aí estão as delícias do vosso coração, aí nada é venenoso, nada é
prejudicial; são as pastagens fertilíssimas dos montes de Israel. Vinde,
ovelhas sãs, vinde vós somente, e apascentais-vos nas pastagens sadias dos
montes de Israel.
«E ao longo das ribeiras e em todos os prados da terra». Dos montes que vos
mostramos brotaram os rios da pregação evangélica, quando «a Sua voz se fez
ouvir por toda a terra» e, através destes rios da pregação evangélica,
espalharam-se por toda a terra os prados férteis e abundantes, onde podem
apascentar-se os rebanhos do Senhor.
«Apascentá-las-ei em boas pastagens e terão o seu redil nos altos montes de
Israel», isto é, encontrarão um lugar onde possam descansar e dizer: «Estamos
bem aqui; é verdade o que nos disseram, não nos enganaram». E descansarão na
glória de Deus, que será o seu redil. «E dormirão», isto é, «descansarão em
agradáveis delícias».
25 — «E terão abundantes pastagens nos montes de Israel». Já vos falei dos
montes de Israel, que são aqueles montes benéficos para onde levantamos os
olhos e donde nos vem o auxílio. Mas «o nosso auxílio vem do Senhor que fez o
céu e a terra». Por isso, para que não puséssemos toda a nossa esperança
naqueles montes, depois de dizer: «Apascentarei as Minhas ovelhas nos montes de
Israel», acrescentou imediatamente: «Eu mesmo apascentarei as Minhas ovelhas».
Por conseguinte, levanta os teus olhos para os montes, donde te virá o auxílio,
mas espera somente n'Aquele que diz: «Eu mesmo apascentarei», porque o teu
auxílio «vem do Senhor que fez o céu e a terra».
26 - «E fá-las-ei descansar, diz o Senhor Deus». Mas para as fazer descansar
com o que é que Se preocupou antes? Eis que Ele o diz logo em seguida: «Isto
diz o Senhor Deus: “Procurarei a que se perdeu, chamarei a que se desviou,
ligarei a ferida, fortalecerei a débil e guardarei a que é forte”». Tudo coisas
que não faziam os maus pastores, que se apascentavam a si mesmos, não as
ovelhas. O Senhor não diz: «Estabelecerei outros pastores que façam isto», mas
sim: «Eu mesmo o farei, pois não confiarei as Minhas ovelhas a nenhum outro».
Estai tranquilos, irmãos; vós, que sois ovelhas, confiai. Somos nós os que
temos de temer, como se nos faltasse o Bom Pastor.
XII, 27 — E termina assim: «Eu as apascentarei com justiça». Vede como só Ele
pode apascentar o rebanho com justiça. De facto, qual é o homem que pode julgar
o homem? A terra está cheia de juízos temerários. Aquele de quem perdêramos
toda a esperança, de um momento para o outro converte-se e torna-se o melhor de
todos. E aquele em quem tanto confiávamos, dum momento para o outro falha e
torna-se o pior de todos. Nem o nosso temor é constante, nem o nosso amor é
estável.
O que é hoje cada homem, dificilmente o sabe o próprio homem. E se de algum
modo ele sabe o que é hoje, não sabe o que será amanhã. Só Deus apascenta com
justiça, dando a cada um o que precisa: isto a uns, aquilo a outros, a cada
qual o que lhe convém, porque Ele sabe o que deve fazer. Portanto, só Ele
apascenta com justiça.
28 — Segundo o profeta Jeremias, «clamou a perdiz, reuniu ovos que não pôs,
amontoando riquezas, mas sem juízo». Ao contrário desta perdiz que amontoou as
suas riquezas sem juízo, este Pastor apascenta sabiamente. Porque foi a perdiz
néscia? Porque reuniu aquilo que não gerou. Porque é sábio o Pastor? Porque
cria o que Ele próprio gerou. Falo do Bom Pastor. Os pastores bons ou não
existem ou estão ocultos. Se não os há, porque perdemos tempo? Se estão
ocultos, porque não se fala deles? Na imagem daquela perdiz alguns dos nossos
antecessores e comentadores da Escritura viram simbolizado o diabo, que reúne o
que não gerou. Ele não é criador, mas imitador, amontoando nesciamente as suas
riquezas. A ele não lhe importa se alguém se extravia desta ou daquela forma:
quer é que todos se extraviem, seja por que erros forem. E quantas heresias, e
tão diferentes, existem! E tantos erros! Ele deseja que os homens se percam em
qualquer deles, não importa; o diabo não diz: «Sejam donatistas ou arianos».
Seja aqui, seja ali, pertencem-lhe a ele, que reúne nesciamente: «Se adora aos
ídolos, é meu; se permanece na superstição dos judeus, é meu; se abandona a
unidade por esta ou aquela heresia, é meu». Reúne injustamente ao amontoar as
suas riquezas.
E que se segue? «Na metade dos seus dias abandoná-la-ão, e no seu fim será
néscia». Eis que chega Aquele que congrega de todas as pastes as Suas ovelhas;
e eis que na metade dos seus dias, o mau pastor, antes do que esperava e
pensava, vê-se abandonado pelas ovelhas, surgindo como um néscio no seu fim.
Porque é que nos seus primeiros dias aparecia como sábio e nos últimos
aparecerá como néscio? Escutai, irmãos. Por vezes, na Escritura, diz-se
sabedoria em lugar de astúcia, num sentido figurado, não no próprio. É assim
que se diz: «Onde está o sábio, onde está o douto, onde está o investigador das
coisas deste mundo? Não tornou Deus néscia a sabedoria deste mundo»? Esta
perdiz, este dragão, esta serpente mostrou-se aparentemente sábia quando, por
meio de Eva, enganou Adão. Acreditou Adão que ela dizia a verdade, estimando
que lhe dava um bom conselho; acreditou nela em vez de acreditar em Deus.
Segundo o costume das Escrituras — pois não nos importa o que dizem os
gramáticos deste mundo — fala-se da sabedoria em sentido abusivo e mau, e isso
pode ser comprovado no mesmo livro: «Era a serpente a mais sábia de todos os
animais». Este animal, o mais sábio de todos, é considerada astuta e hábil a enganar.
Logo, já não se lhe dá crédito. Devemos dizer-lhe: «Renunciamos a ti; basta
que, incautamente, nos tenhas enganado da primeira vez». Deste modo, pois, será
néscia nos seus últimos dias; serão descobertas as suas fraudes, e por isso
mesmo deixará de existir. Nos seus últimos dias será néscio quem reuniu o que
não gerou e amontoou riquezas sem juízo. Ao contrário deste, o nosso Redentor
apascenta sabiamente.
29 — Pensemos num herege qualquer. Ainda que não seja irmão do diabo,
certamente que é seu ajudante e filho. Também a ele lhe chamamos perdiz e
animal dado a contendas. Os caçadores sabem que esta ave pode ser caçada pela
sua ânsia de lutar. Os hereges lutaram contra a verdade logo desde o momento em
que se separaram. Agora dizem: «Não queremos lutar», porque já estão
capturados. Não têm que mais dizer senão: «Não quero lutas». Oh cativo! Sem
dúvida eras tu que nos primeiros tempos da tua separação nos acusavas de
«traditores», condenavas os inocentes, procuravas o tribunal do Imperador, não
te submetias ao juízo dos bispos, sempre que eras vencido voltavas a apelar,
diante do próprio Imperador litigavas afanosamente! Reunias o que não havias
gerado, Onde está agora a tua dura cerviz? Onde está a tua língua? Onde está o
teu silvo, oh serpente? Certamente que nos teus últimos dias te tornaste
néscio, te atemorizaste por não seres sábio. Já não queres julgar aquilo que
está certo, nem sequer o teu erro, nem a verdade. Mas Cristo apascenta-te com
justiça; Ele distingue as Suas ovelhas das que não são Suas. Diz o Senhor: «As
Minhas ovelhas ouvem a Minha voz e seguem-Me».
XIII, 30 - Aqui vejo todos os bons pastores identificados com o Bom Pastor. Não
faltam pastores.
Fonte: http://patristicabrasil.blogspot.com.br
https://espelhodejustica.blogspot.com/2013/03/santo-agostinho-o-sermao-dos-pastores.html
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