quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

NECESSIDADE: O QUE ESSA DIFERENÇA TEM A VER COM O EXPONENCIAL AUMENTODA ANGÚSTIA E DA ANSIEDADE"

 

 

NECESSIDADE: O   QUE  ESSA  DIFERENÇA TEM A VER COM O  EXPONENCIAL  AUMENTODA ANGÚSTIA E  DA ANSIEDADE"

Lindolivo Soares Moura(*)

         "Os nossos  desejos são como crianças pequenas: quanto mais lhe cedemos, mais exigentes  se  tornam"   [Provérbio  Chinês]

Atribui-se a Arquimedes, matemático, físico, engenheiro, astrônomo e inventor grego do século III a.C., a célebre frase: "deem-me uma alavanca e eu moverei o mundo". Aproximadamente vinte e dois séculos mais tarde Sigmund Freud julgou haver encontrado o objeto capaz de satisfazer a solicitação de Arquimedes, ao sugerir que a alavanca que move o mundo…

Se é correto afirmar que conhecemos a América melhor que Colombo, assim como o Brasil melhor que Cabral, não parece haver demérito algum em afirmar que conhecemos melhor a Psicanálise que o próprio Freud. Dentre os tantos estudiosos e pesquisadores que contribuíram ou continuam contribuindo para esse "desbravamento", Jacques Lacan merece sem dúvida ser considerado um dos mais proeminentes. No que tange à  questão que estamos abordando, coube a ele estabelecer uma diferença importante entre "desejo", "demanda",  e "necessidade". Sem intenção e menos ainda pretensão de exaurir o tema, poder-se-ia dizer que "necessidade" para Lacan seria tudo aquilo que, como animais que somos, necessitamos para sustentar ou garantir nossa sobrevivência. Ou seja, como qualquer outra espécie do planeta, no limite da situação faremos tudo que for necessário para que esse objetivo - "sobreviver", ou como diria Espinoza, "preservar e expandir o nosso ser" - possa ser alcançado. Por outro lado, tudo que extrapola o estrito domínio das necessidades pode de alguma forma ser classificado ou categorizado como desejo. Isto porque aquilo que Lacan conceitua como "demanda" se encontra sem dúvida muito mais estreitamente atrelado ao desejo que às necessidades. O bebê chora, a mãe oferece o peito; o bebê mama à saciedade até esguichar leite por todo lado; ainda assim ele continua sugando freneticamente, como se estivesse no paraíso. Essa persistência do bebê em manter-se preso ao peito mesmo depois de já fartamente saciado, sugere  que essa ação esteja sendo impulsionada pelo desejo e não mais pela necessidade. Dessa forma a demanda é concebida por Lacan como uma espécie de "porta-voz" do desejo, que por intermédio da linguagem nos insere na ordem dos signos e dos significantes que habitam o misterioso e fantástico mundo do simbólico. Insere-nos e ao mesmo tempo nos aliena, diga-se de passagem, porquanto essa entrada no mundo do simbólico decreta também a alienação do próprio desejo.Toda demanda, no sentido psicanalítico e sobretudo lacaniano do termo, é por um lado expressão de uma falta e de uma incompletude, e por outro uma forma de expressar nosso apelo tanto consciente como inconsciente por satisfação. Pelo que, exatamente, esse é o enigma da questão.

Ainda de acordo com Lacan, "somos seres com capacidade de desejar, mas sempre incompletos; daí, a nossa caminhada. A ansiedade, como a conhecemos - e que brota dessa eterna 'in-satisfação', acréscimo nosso - sempre tem conexão com uma perda, com um relacionamento que tem duas faces e pode desaparecer a qualquer momento, sendo simplesmente substituído por outra coisa. Algo que nenhum paciente pode enfrentar sem sentir vertigem. A atração pela utilidade é tão irresistível que podemos observar pessoas dispostas a fazer qualquer coisa pelo prazer de confortar aqueles que nutrem a ideia de que não poderão viver sem a ajuda delas". Ousei colocar lado a lado e em sequência três ou quatro afirmações clássicas que em seus "Seminários" são feitas por Lacan separadamente. Se você não se apercebeu da estratégia, é sinal de que terá valido a pena a ousadia; "culpa sem dolo", como se diz no Direito. O fato é que para Lacan, muito mais que para Freud, o mundo do desejo e o mundo das necessidades podem por vezes se situar a "quilômetros-luz" um do outro, a despeito da imprescindível conexão e interface que devem existir entre eles. Nosso maior erro seria o de tentar satisfazer e preencher as demandas do desejo lançando mão dos mesmos objetos com os quais buscamos satisfazer nossas necessidades: o acometimento desse equívoco faria com que nosso desejo se alienasse ainda mais. Foi certamente pensando nisso que Lacan elaborou o conceito de "objeto a", por vezes tão enigmático quanto o conceito de "norma fundamental" em Kelsen. De maneira simplificada pode-se afirmar que o "objeto a" para Lacan representa o objeto inatingível do desejo, o único "teórica" e potencialmente capaz de satisfazer e locupletar o desejo, preenchendo a falta, a carência e o vazio que ele porta consigo. Ou seja, um objeto que até prova em contrário não existe. Não, ao menos no mundo imanente do real. "O objeto do teu desejo não é outro senão tu mesmo", ensina Lacan. E se ele assevera que "é no desejo do Outro que se encontra o objeto do nosso desejo", e vice-versa, isso significa apenas que esse Outro é condição imprescindível em nossa busca pelo reconhecimento de nós mesmos, já que segundo Lacan "o desejo é algo a que o sujeito não pode ter acesso por si só por ser ele o afeto que designa seu ser e se situa no nível do desejo que lhe é próprio". Em outra passagem ele diz: "pode-se amar alguém não só por aquilo que se tem, senão, literalmente, por aquilo de que se carece". Além de serem a origem primária e primordial dos nosso(s) desejo(s), nossa incompletude e a falta que ela traz consigo são também a razão pela qual jamais poderemos corresponder plenamente à demanda do desejo de quem quer que seja. "Nada há que possa satisfazer o desejo de tudo", ele afirma; ou ainda: "o que importa quantos amores você tenha, se nenhum deles pode lhe dar o universo?". Como um nômade perdido que perambula mundo afora, sem saber exatamente onde pretende chegar, "o desejo estará sempre se deslocando em direção ao objeto que aparenta ser o objeto perdido, um objeto que não tem qualquer objetividade, existindo independentemente das percepções do sujeito". Por isso a conclusão final a que chega Lacan não poderia ser outra: "a ordem simbólica - afirma ele - é intrinsecamente decepcionante". Decepcionante parece pouco; perversa, tirana ou maquiavélica seria com certeza mais adequado. Afinal ela nos impõe um tipo de desejo que nada e ninguém, nem ela mesma, é potencialmente capaz de saciar.

Nem todos os estudiosos do comportamento humano compartilham a visão e a abordagem psicanalíticas do desejo. Antes mesmo do surgimento da Psicanálise, provavelmente ninguém tenha ressaltado tanto a riqueza e a positividade do desejo, contraponto da presente reflexão, como o fez Baruch Espinoza. Imanentista por excelência, nas pegadas de Aristóteles ele escreveu que o desejo é a essência do homem, e que só podemos nos tornar humanos na medida em que afirmamos e reafirmamos nossa natureza desejante. Rejeitando categoricamente qualquer dicotomia entre corpo e alma, apetite e desejo - no nosso caso, necessidade e desejo - Espinoza afirma que o desejo não é senão o próprio apetite quando dele se tem consciência. Ou seja, o que no corpo se chama "apetite", na alma recebe o nome de "desejo", sendo a relação original da alma com o corpo, e de ambos com o mundo, uma relação "afetiva", no sentido de que o corpo sozinho nada sente, precisando da alma para socorrê-lo e assim se sentir "afetado" e poder "afetar". É assim que de acordo com Espinoza os diversos apetites em forma de desejo ajudam a preservar e sobretudo expandir o nosso ser. No sentido espinoziano o desejo não é falta de algo, nem o ser humano um ser incompleto em busca de preenchimento, mas sim um todo quando  relacionado às diversas partes que  o compõem, e parte de um todo quando em referência à natureza que o cerca. Essa riquíssima interpretação, longe de negar e menos ainda excluir o prisma peculiar a partir do qual a Psicanálise e sobretudo Lacan abordam o desejo, dialética e complementariamente a enriquece, razão pela qual não apenas pode e deve ser respeitada, como também reconhecida e validada. Guardadas e respeitadas as devidas diferenças, houvessem todos eles vividos num mesmo tempo,  Arquimedes, Espinoza, Freud e Lacan teriam com certeza se entendido  muito bem.  

À guisa de conclusão: no crepúsculo do século passado as profecias se dividiam quanto ao diagnóstico sobre qual viria a ser a "doença do século XXI", chamada também de "mal do século": depressão ou ansiedade. Duas décadas e meia foram suficientes para que a dúvida se dissipasse: de acordo com as últimas pesquisas o número de pessoas diagnosticadas com algum transtorno de ansiedade vem superando cada vez mais o número daquelas com algum tipo de depressão. Outro dado importante foi a descoberta de que a ansiedade ocupa lugar estratégico entre os chamados "fatores de risco" que favorecem o desencadeamento da depressão. A quantidade e a variedade de tipos de ansiedade mapeados não é pequena, mas um transtorno em particular tem chamado a atenção: o assim chamado TAG -  "Transtorno de Ansiedade Generalizada". Pressupõe-se que esse transtorno não permite identificar uma causa ou objeto específico que justifique a presença da ansiedade, razão principal pela qual ela é dita "generalizada". O que isso poderia ter a ver com o desejo, e sobretudo com sua principal característica, a insaciabilidade, é uma questão ainda não investigada. Uma observação mais acurada, entretanto, logo revela que ambos compartilham de uma mesma característica básica: a impossibilidade de identificação de seus respectivos "objetos". No caso do desejo essa impossibilidade decorre, como já foi observado, da própria inexistência desse objeto, do qual o assim denominado por Lacan de  "objeto a" não passa de uma mera representação. No que concerne à Ansiedade Generalizada, note-se que ela deixaria de ser classificada como tal a partir do exato momento em que essa identificação eventualmente viesse a ocorrer, passando a ser classificada como um novo e específico tipo de ansiedade. Essa particularidade envolvendo a insaciabilidade do desejo e a natureza generalizada da ansiedade permite sustentar a hipótese de que todos os diversos tipos de ansiedade e, e não somente a Ansiedade Generalizada, estão inexoravelmente atrelados a uma angústia ou ansiedade primordial que cada indivíduo carrega consigo, ansiedade e angústia estas adquiridas ao longo das inúmeras e infrutíferas tentativas de preencher a falta e locupletar o desejo, que por serem da ordem do simbólico jamais se permitem ser totalmente locupletados.

A hipótese mencionada nos remete à famosa cena de Platão e Aristóteles à saída da Academia, em que Platão é retratado com o dedo indicador apontando para o alto enquanto seu discípulo Aristóteles repete o gesto só que apontando para baixo. Em consonância com a presente reflexão, tal cena sugere e permite a seguinte interpretação: enquanto Aristóteles apontando para a terra, insiste no fato de que nossas "necessidades", primárias e imediatas, não podem ser satisfeitas senão no mundo imanente do aqui e do agora, Platão ao apontar para o alto parece buscar convencê-lo, e a nós, de que o ser humano não é um animal como um outro qualquer, para o qual as necessidades básicas e primárias de subsistência e sobrevivência são as únicas e portanto suficientes. Como seres simbólicos que somos, nossos sonhos e nossos desejos mais profundos   "transcendem", ultrapassam -  "meta" + "physis" ou "meta" + "physiké" - o mundo físico da imanência, e nos remetem a uma outra ordem ou princípio de realidade, que de acordo com o próprio Platão viria a ser o mundo das "ideias" ou "essências" eternas, imutáveis e perfeitas. O curioso de tudo isso é que o pai da Metafísica  é considerado Aristóteles, e não Platão - por motivos absolutamente acidentais e aleatórios, é bem verdade - enquanto Platão é tido como um dos criadores da dialética. Mas afinal, poder-se-ia perguntar, de que lado se posiciona a razão? A resposta mais adequada seria: equidistante de ambos. Platão e Aristóteles dialogam sobre realidades diferentes - necessidade e desejo, imanência e transcendência - mas inextrincavelmente conectadas e mutuamente complementares. O desejo não ignora a necessidade; muito menos desdenha dela; apenas não se satisfaz com ela. E com que, afinal, se satisfaz o desejo? De acordo com Lacan, no que se refere à falta que ele porta consigo absolutamente nada. Aurélio Agostinho arriscaria uma outra alternativa: "fizestes-nos, Senhor, para Vós, e o nosso coração está inquieto enquanto não repousar em Vós!". Mas também isso seria uma estranha forma de alienação do desejo, diria Lacan. Talvez sim, talvez não, diria Agostinho. "Na ausência da certeza - diria Carl Simonton - nada há de errado com a esperança".

Dizíamos no início que disparar um sinal de alerta seria o principal objetivo da presente reflexão. Pois bem: muitos cuidadores, sobretudo quando no exercício da função de pais, desconhecem ou simplesmente ignoram a diferença profunda que existe entre desejo e necessidade. Abarrotam e literalmente sufocam com bens e objetos materiais aqueles que estão sob seus cuidados. Se a condição econômica é melhor, o perigo é ainda maior. Relembrando Lacan: "a atração pela utilidade é tão irresistível que podemos observar pessoas dispostas a fazer qualquer coisa pelo prazer de confortar aqueles que nutrem a ideia de que não poderão viver sem a ajuda delas". Quanto mais nobre a intenção, maior o risco de se agravar a alienação. A natureza ao longo de toda a sua extensão nos ensina que existe um "número ótimo" e também um "ponto de saturação" a ser respeitado, esse último observado criteriosamente e ensinado pelos químicos de profissão. Reprovar nesse ponto significa refazer a lição. Pais e cuidadores em geral precisam se especializar urgentemente no que tange a essas duas leis básicas que governam tanto a natureza quanto a química dos elementos. O lembrete de Sara J. Hale pode servir de alerta e é sem dúvida precioso nesse sentido: "existe um pequeno perigo de nos sentirmos famintos em uma terra de abundância - ela afirma; entretanto o perigo de nos empanturrarmos é iminente". Karim Khoury - "Com a corda toda. Autoestima e qualidade de vida" - nos ensina que a noção do "suficiente" fortalece a nossa autoestima, preserva o nosso autorrespeito, e contribui para lançar por terra muitas depreciações que acabamos fazendo de nós mesmos. Ele exemplifica: "você não é um Einstein e não conhece tanto a matemática quanto ele, mas isso não é motivo para se autodepreciar, ficar ansioso ou deprimido. Você não precisa conhecer matemática como ele. Você sabe o suficiente e isso basta". Da mesma forma, ao falar da importância de satisfação de nossas necessidades ele orienta: "alimente-se de forma saudável; não ultrapasse seus limites: coma o suficiente". Ora, é sabido que o muito comer - a que popularmente damos o nome de "gula", mas que por razões muito mais complexas funciona como um gatilho para a compulsão - tem sido nesses tempos de pessoas cada vez mais sem rumo e sem direção a "saída" mais ao alcance da mão. Basta solicitar ou "pedir" - com certeza você já baixou meia dúzia de aplicativos com essa intenção - e em minutos você estará "matando" sua fome, enquanto "dribla" e supõe "ilusoriamente" manter sob controle as investidas da angústia, da ansiedade e da depressão. Depois, claro, de haver declarado guerra ao espelho e ter tomado meia dúzia de comprimidos tentando dormir sem conseguir. Sono "rem", profundo, nem pensar: o sentimento de culpa não permite. Melhor para os terapeutas de plantão. A propósito, entre os tantos aplicativos para pedir comida, já baixou o aplicativo de algum deles? Depressão, automutilação, e até suicídios podem começar por aí. Para resumir, aqui vai a seguinte sugestão: "tanto quanto possível, todo problema deve ter sua solução buscada a partir da natureza que o problema apresenta". Assim, o que é da ordem da necessidade deve ter sua satisfação de acordo o que é dessa natureza, enquanto aquilo que é da ordem do desejo, a satisfação correspondente. Em ambos os casos, deixando-se orientar pelas duas regras de ouro do "número ótimo" e do "ponto de saturação", sem esquecer-se do sábio princípio do "suficiente". Um último alerta aos pais e cuidadores: empanturrar e saturar está longe de ser a "saída"; ao contrário do que possa parecer, é a porta de entrada em direção àquele nebuloso "esquema", "arapuca", ou  "presídio de segurança máxima", dos quais falamos à exaustão.

                         

(*) Reflexão enviada de Vitória(ES) por whatsapp.

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