NECESSIDADE:
O QUE
ESSA DIFERENÇA TEM A VER COM
O EXPONENCIAL AUMENTODA ANGÚSTIA E DA ANSIEDADE"
Lindolivo
Soares Moura(*)
"Os nossos desejos são como crianças pequenas: quanto
mais lhe cedemos, mais exigentes se tornam" [Provérbio
Chinês]
Atribui-se a
Arquimedes, matemático, físico, engenheiro, astrônomo e inventor grego do
século III a.C., a célebre frase: "deem-me uma alavanca e eu moverei o
mundo". Aproximadamente vinte e dois séculos mais tarde Sigmund Freud
julgou haver encontrado o objeto capaz de satisfazer a solicitação de
Arquimedes, ao sugerir que a alavanca que move o mundo…
Se é correto afirmar
que conhecemos a América melhor que Colombo, assim como o Brasil melhor que
Cabral, não parece haver demérito algum em afirmar que conhecemos melhor a
Psicanálise que o próprio Freud. Dentre os tantos estudiosos e pesquisadores
que contribuíram ou continuam contribuindo para esse "desbravamento",
Jacques Lacan merece sem dúvida ser considerado um dos mais proeminentes. No
que tange à questão que estamos
abordando, coube a ele estabelecer uma diferença importante entre
"desejo", "demanda",
e "necessidade". Sem intenção e menos ainda pretensão de
exaurir o tema, poder-se-ia dizer que "necessidade" para Lacan seria
tudo aquilo que, como animais que somos, necessitamos para sustentar ou
garantir nossa sobrevivência. Ou seja, como qualquer outra espécie do planeta,
no limite da situação faremos tudo que for necessário para que esse objetivo -
"sobreviver", ou como diria Espinoza, "preservar e expandir o
nosso ser" - possa ser alcançado. Por outro lado, tudo que extrapola o
estrito domínio das necessidades pode de alguma forma ser classificado ou
categorizado como desejo. Isto porque aquilo que Lacan conceitua como
"demanda" se encontra sem dúvida muito mais estreitamente atrelado ao
desejo que às necessidades. O bebê chora, a mãe oferece o peito; o bebê mama à
saciedade até esguichar leite por todo lado; ainda assim ele continua sugando
freneticamente, como se estivesse no paraíso. Essa persistência do bebê em
manter-se preso ao peito mesmo depois de já fartamente saciado, sugere que essa ação esteja sendo impulsionada pelo
desejo e não mais pela necessidade. Dessa forma a demanda é concebida por Lacan
como uma espécie de "porta-voz" do desejo, que por intermédio da
linguagem nos insere na ordem dos signos e dos significantes que habitam o
misterioso e fantástico mundo do simbólico. Insere-nos e ao mesmo tempo nos
aliena, diga-se de passagem, porquanto essa entrada no mundo do simbólico
decreta também a alienação do próprio desejo.Toda demanda, no sentido
psicanalítico e sobretudo lacaniano do termo, é por um lado expressão de uma
falta e de uma incompletude, e por outro uma forma de expressar nosso apelo
tanto consciente como inconsciente por satisfação. Pelo que, exatamente, esse é
o enigma da questão.
Ainda de acordo com
Lacan, "somos seres com capacidade de desejar, mas sempre incompletos;
daí, a nossa caminhada. A ansiedade, como a conhecemos - e que brota dessa
eterna 'in-satisfação', acréscimo nosso - sempre tem conexão com uma perda, com
um relacionamento que tem duas faces e pode desaparecer a qualquer momento,
sendo simplesmente substituído por outra coisa. Algo que nenhum paciente pode
enfrentar sem sentir vertigem. A atração pela utilidade é tão irresistível que
podemos observar pessoas dispostas a fazer qualquer coisa pelo prazer de confortar
aqueles que nutrem a ideia de que não poderão viver sem a ajuda delas".
Ousei colocar lado a lado e em sequência três ou quatro afirmações clássicas
que em seus "Seminários" são feitas por Lacan separadamente. Se você
não se apercebeu da estratégia, é sinal de que terá valido a pena a ousadia;
"culpa sem dolo", como se diz no Direito. O fato é que para Lacan,
muito mais que para Freud, o mundo do desejo e o mundo das necessidades podem
por vezes se situar a "quilômetros-luz" um do outro, a despeito da
imprescindível conexão e interface que devem existir entre eles. Nosso maior
erro seria o de tentar satisfazer e preencher as demandas do desejo lançando
mão dos mesmos objetos com os quais buscamos satisfazer nossas necessidades: o
acometimento desse equívoco faria com que nosso desejo se alienasse ainda mais.
Foi certamente pensando nisso que Lacan elaborou o conceito de "objeto
a", por vezes tão enigmático quanto o conceito de "norma
fundamental" em Kelsen. De maneira simplificada pode-se afirmar que o
"objeto a" para Lacan representa o objeto inatingível do desejo, o
único "teórica" e potencialmente capaz de satisfazer e locupletar o
desejo, preenchendo a falta, a carência e o vazio que ele porta consigo. Ou
seja, um objeto que até prova em contrário não existe. Não, ao menos no mundo
imanente do real. "O objeto do teu desejo não é outro senão tu
mesmo", ensina Lacan. E se ele assevera que "é no desejo do Outro que
se encontra o objeto do nosso desejo", e vice-versa, isso significa apenas
que esse Outro é condição imprescindível em nossa busca pelo reconhecimento de
nós mesmos, já que segundo Lacan "o desejo é algo a que o sujeito não pode
ter acesso por si só por ser ele o afeto que designa seu ser e se situa no
nível do desejo que lhe é próprio". Em outra passagem ele diz:
"pode-se amar alguém não só por aquilo que se tem, senão, literalmente,
por aquilo de que se carece". Além de serem a origem primária e primordial
dos nosso(s) desejo(s), nossa incompletude e a falta que ela traz consigo são
também a razão pela qual jamais poderemos corresponder plenamente à demanda do
desejo de quem quer que seja. "Nada há que possa satisfazer o desejo de
tudo", ele afirma; ou ainda: "o que importa quantos amores você
tenha, se nenhum deles pode lhe dar o universo?". Como um nômade perdido
que perambula mundo afora, sem saber exatamente onde pretende chegar, "o
desejo estará sempre se deslocando em direção ao objeto que aparenta ser o
objeto perdido, um objeto que não tem qualquer objetividade, existindo independentemente
das percepções do sujeito". Por isso a conclusão final a que chega Lacan
não poderia ser outra: "a ordem simbólica - afirma ele - é intrinsecamente
decepcionante". Decepcionante parece pouco; perversa, tirana ou
maquiavélica seria com certeza mais adequado. Afinal ela nos impõe um tipo de
desejo que nada e ninguém, nem ela mesma, é potencialmente capaz de saciar.
Nem todos os
estudiosos do comportamento humano compartilham a visão e a abordagem
psicanalíticas do desejo. Antes mesmo do surgimento da Psicanálise,
provavelmente ninguém tenha ressaltado tanto a riqueza e a positividade do
desejo, contraponto da presente reflexão, como o fez Baruch Espinoza.
Imanentista por excelência, nas pegadas de Aristóteles ele escreveu que o
desejo é a essência do homem, e que só podemos nos tornar humanos na medida em
que afirmamos e reafirmamos nossa natureza desejante. Rejeitando
categoricamente qualquer dicotomia entre corpo e alma, apetite e desejo - no
nosso caso, necessidade e desejo - Espinoza afirma que o desejo não é senão o
próprio apetite quando dele se tem consciência. Ou seja, o que no corpo se
chama "apetite", na alma recebe o nome de "desejo", sendo a
relação original da alma com o corpo, e de ambos com o mundo, uma relação
"afetiva", no sentido de que o corpo sozinho nada sente, precisando
da alma para socorrê-lo e assim se sentir "afetado" e poder
"afetar". É assim que de acordo com Espinoza os diversos apetites em
forma de desejo ajudam a preservar e sobretudo expandir o nosso ser. No sentido
espinoziano o desejo não é falta de algo, nem o ser humano um ser incompleto em
busca de preenchimento, mas sim um todo quando
relacionado às diversas partes que
o compõem, e parte de um todo quando em referência à natureza que o
cerca. Essa riquíssima interpretação, longe de negar e menos ainda excluir o
prisma peculiar a partir do qual a Psicanálise e sobretudo Lacan abordam o
desejo, dialética e complementariamente a enriquece, razão pela qual não apenas
pode e deve ser respeitada, como também reconhecida e validada. Guardadas e
respeitadas as devidas diferenças, houvessem todos eles vividos num mesmo
tempo, Arquimedes, Espinoza, Freud e
Lacan teriam com certeza se entendido
muito bem.
À guisa de conclusão: no crepúsculo do
século passado as profecias se dividiam quanto ao diagnóstico sobre qual viria
a ser a "doença do século XXI", chamada também de "mal do
século": depressão ou ansiedade. Duas décadas e meia foram suficientes
para que a dúvida se dissipasse: de acordo com as últimas pesquisas o número de
pessoas diagnosticadas com algum transtorno de ansiedade vem superando cada vez
mais o número daquelas com algum tipo de depressão. Outro dado importante foi a
descoberta de que a ansiedade ocupa lugar estratégico entre os chamados
"fatores de risco" que favorecem o desencadeamento da depressão. A
quantidade e a variedade de tipos de ansiedade mapeados não é pequena, mas um
transtorno em particular tem chamado a atenção: o assim chamado TAG - "Transtorno de Ansiedade
Generalizada". Pressupõe-se que esse transtorno não permite identificar
uma causa ou objeto específico que justifique a presença da ansiedade, razão
principal pela qual ela é dita "generalizada". O que isso poderia ter
a ver com o desejo, e sobretudo com sua principal característica, a insaciabilidade,
é uma questão ainda não investigada. Uma observação mais acurada, entretanto,
logo revela que ambos compartilham de uma mesma característica básica: a
impossibilidade de identificação de seus respectivos "objetos". No
caso do desejo essa impossibilidade decorre, como já foi observado, da própria
inexistência desse objeto, do qual o assim denominado por Lacan de "objeto a" não passa de uma mera
representação. No que concerne à Ansiedade Generalizada, note-se que ela
deixaria de ser classificada como tal a partir do exato momento em que essa
identificação eventualmente viesse a ocorrer, passando a ser classificada como
um novo e específico tipo de ansiedade. Essa particularidade envolvendo a
insaciabilidade do desejo e a natureza generalizada da ansiedade permite
sustentar a hipótese de que todos os diversos tipos de ansiedade e, e não
somente a Ansiedade Generalizada, estão inexoravelmente atrelados a uma
angústia ou ansiedade primordial que cada indivíduo carrega consigo, ansiedade
e angústia estas adquiridas ao longo das inúmeras e infrutíferas tentativas de
preencher a falta e locupletar o desejo, que por serem da ordem do simbólico
jamais se permitem ser totalmente locupletados.
A hipótese mencionada
nos remete à famosa cena de Platão e Aristóteles à saída da Academia, em que
Platão é retratado com o dedo indicador apontando para o alto enquanto seu
discípulo Aristóteles repete o gesto só que apontando para baixo. Em
consonância com a presente reflexão, tal cena sugere e permite a seguinte
interpretação: enquanto Aristóteles apontando para a terra, insiste no fato de
que nossas "necessidades", primárias e imediatas, não podem ser
satisfeitas senão no mundo imanente do aqui e do agora, Platão ao apontar para
o alto parece buscar convencê-lo, e a nós, de que o ser humano não é um animal
como um outro qualquer, para o qual as necessidades básicas e primárias de
subsistência e sobrevivência são as únicas e portanto suficientes. Como seres
simbólicos que somos, nossos sonhos e nossos desejos mais profundos "transcendem", ultrapassam - "meta" + "physis" ou
"meta" + "physiké" - o mundo físico da imanência, e nos
remetem a uma outra ordem ou princípio de realidade, que de acordo com o
próprio Platão viria a ser o mundo das "ideias" ou
"essências" eternas, imutáveis e perfeitas. O curioso de tudo isso é
que o pai da Metafísica é considerado
Aristóteles, e não Platão - por motivos absolutamente acidentais e aleatórios,
é bem verdade - enquanto Platão é tido como um dos criadores da dialética. Mas
afinal, poder-se-ia perguntar, de que lado se posiciona a razão? A resposta
mais adequada seria: equidistante de ambos. Platão e Aristóteles dialogam sobre
realidades diferentes - necessidade e desejo, imanência e transcendência - mas
inextrincavelmente conectadas e mutuamente complementares. O desejo não ignora
a necessidade; muito menos desdenha dela; apenas não se satisfaz com ela. E com
que, afinal, se satisfaz o desejo? De acordo com Lacan, no que se refere à
falta que ele porta consigo absolutamente nada. Aurélio Agostinho arriscaria
uma outra alternativa: "fizestes-nos, Senhor, para Vós, e o nosso coração
está inquieto enquanto não repousar em Vós!". Mas também isso seria uma
estranha forma de alienação do desejo, diria Lacan. Talvez sim, talvez não, diria
Agostinho. "Na ausência da certeza - diria Carl Simonton - nada há de
errado com a esperança".
Dizíamos no início
que disparar um sinal de alerta seria o principal objetivo da presente
reflexão. Pois bem: muitos cuidadores, sobretudo quando no exercício da função de
pais, desconhecem ou simplesmente ignoram a diferença profunda que existe entre
desejo e necessidade. Abarrotam e literalmente sufocam com bens e objetos
materiais aqueles que estão sob seus cuidados. Se a condição econômica é
melhor, o perigo é ainda maior. Relembrando Lacan: "a atração pela
utilidade é tão irresistível que podemos observar pessoas dispostas a fazer
qualquer coisa pelo prazer de confortar aqueles que nutrem a ideia de que não
poderão viver sem a ajuda delas". Quanto mais nobre a intenção, maior o
risco de se agravar a alienação. A natureza ao longo de toda a sua extensão nos
ensina que existe um "número ótimo" e também um "ponto de
saturação" a ser respeitado, esse último observado criteriosamente e
ensinado pelos químicos de profissão. Reprovar nesse ponto significa refazer a
lição. Pais e cuidadores em geral precisam se especializar urgentemente no que
tange a essas duas leis básicas que governam tanto a natureza quanto a química
dos elementos. O lembrete de Sara J. Hale pode servir de alerta e é sem dúvida
precioso nesse sentido: "existe um pequeno perigo de nos sentirmos
famintos em uma terra de abundância - ela afirma; entretanto o perigo de nos
empanturrarmos é iminente". Karim Khoury - "Com a corda toda.
Autoestima e qualidade de vida" - nos ensina que a noção do
"suficiente" fortalece a nossa autoestima, preserva o nosso
autorrespeito, e contribui para lançar por terra muitas depreciações que
acabamos fazendo de nós mesmos. Ele exemplifica: "você não é um Einstein e
não conhece tanto a matemática quanto ele, mas isso não é motivo para se
autodepreciar, ficar ansioso ou deprimido. Você não precisa conhecer matemática
como ele. Você sabe o suficiente e isso basta". Da mesma forma, ao falar
da importância de satisfação de nossas necessidades ele orienta:
"alimente-se de forma saudável; não ultrapasse seus limites: coma o
suficiente". Ora, é sabido que o muito comer - a que popularmente damos o
nome de "gula", mas que por razões muito mais complexas funciona como
um gatilho para a compulsão - tem sido nesses tempos de pessoas cada vez mais
sem rumo e sem direção a "saída" mais ao alcance da mão. Basta
solicitar ou "pedir" - com certeza você já baixou meia dúzia de
aplicativos com essa intenção - e em minutos você estará "matando"
sua fome, enquanto "dribla" e supõe "ilusoriamente" manter
sob controle as investidas da angústia, da ansiedade e da depressão. Depois,
claro, de haver declarado guerra ao espelho e ter tomado meia dúzia de
comprimidos tentando dormir sem conseguir. Sono "rem", profundo, nem
pensar: o sentimento de culpa não permite. Melhor para os terapeutas de
plantão. A propósito, entre os tantos aplicativos para pedir comida, já baixou
o aplicativo de algum deles? Depressão, automutilação, e até suicídios podem
começar por aí. Para resumir, aqui vai a seguinte sugestão: "tanto quanto
possível, todo problema deve ter sua solução buscada a partir da natureza que o
problema apresenta". Assim, o que é da ordem da necessidade deve ter sua
satisfação de acordo o que é dessa natureza, enquanto aquilo que é da ordem do
desejo, a satisfação correspondente. Em ambos os casos, deixando-se orientar
pelas duas regras de ouro do "número ótimo" e do "ponto de
saturação", sem esquecer-se do sábio princípio do "suficiente".
Um último alerta aos pais e cuidadores: empanturrar e saturar está longe de ser
a "saída"; ao contrário do que possa parecer, é a porta de entrada em
direção àquele nebuloso "esquema", "arapuca", ou "presídio de segurança máxima", dos
quais falamos à exaustão.
(*) Reflexão enviada
de Vitória(ES) por whatsapp.
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