REFLEXÃO II
28 de março –
QUINTA-FEIRA SANTA: Ceia do Senhor
Por Aíla Luzia Pinheiro Andrade, nj
O
MEMORIAL DO SENHOR
I.
INTRODUÇÃO GERAL
A instrução de Jesus
“fazei isto em memória de mim” não significa ter uma recordação intelectual de
sua pessoa; trata-se de uma ordem para que a comunidade de fiéis (a Igreja)
celebre a entrega de Jesus ratificada na cruz e plenificada na ressurreição. E,
como a páscoa de Jesus foi realizada como plenificação da Páscoa judaica, a
“memória” que se celebra é o conjunto dos atos salvíficos de Deus, quando a
morte foi transformada em vida. A celebração da eucaristia é atualização, no
aqui e agora, dos eventos salvíficos realizados ao longo da história que
culminaram no mistério de Cristo.
II.
COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1.
Evangelho (Jo 13,1-15): Façais assim como eu
fiz
A cena do lava-pés se
situa na segunda parte do Evangelho de João (13-20), na qual se relata a
exaltação de Jesus, sua elevação ao Pai. Nesse bloco, Jesus se dirige aos
discípulos (cap. 13-17) num longo discurso de despedida.
O v. 1 abre a cena da
ceia, introduzindo o leitor no contexto em que serão desenvolvidos os discursos
de Jesus aos seus. A ceia é realizada antes da festa da Páscoa, ou seja, antes
de Jesus passar deste mundo ao Pai. A ceia é dominada pela temática que
perpassa por todo o evangelho: amor e fidelidade. Jesus amou os seus e seu amor
permanece até o fim. Esse amor será transbordado na entrega definitiva de Jesus
na cruz. Na cena do lava-pés, Jesus antecipa, de modo prefigurativo, essa
entrega e as suas consequências.
Nos vv. 2-5, Jesus
põe-se a lavar os pés dos seus discípulos. O gesto realizado durante a ceia é
muito significativo. Sabemos que cear com alguém significa partilhar de sua
vida e ideais. Jesus partilhava com os seus a mesma vida e missão que recebeu
do Pai. Sabendo que tudo recebera do Pai, o amor em sua plenitude, e ciente de
que sua hora havia chegado, pois estava para voltar ao Pai, Jesus vai mostrar,
no gesto do lava-pés, o que significa esse amor pleno recebido do Pai e
oferecido aos seus.
As normas de conduta
relativas à hospedagem determinavam que lavar os pés era uma atividade
realizada pelo anfitrião ou pelo seu primogênito (cf. Gn 18,4; Lc 7,44), e não
por um escravo, como geralmente se pensa. No Antigo Testamento, o dono da casa
lavava os pés do hóspede como gesto de acolhida. E, assim como Abraão acolheu
Deus na figura dos três homens que o visitaram (cf. Gn 18,4), no gesto de lavar
os pés Jesus, o primogênito de Deus, acolhe na casa paterna toda a humanidade.
É um sinal profundo em que se revela o rosto do Pai, que ama e acolhe, dando-se
de forma definitiva no Filho. Esse gesto fundamenta a vocação da Igreja no
mundo.
O questionamento de
Pedro (vv. 6-11) diante daquele gesto denota a falta de disposição do apóstolo
para, em nome de Jesus, acolher na Igreja, da qual é chefe, todo ser humano
indistintamente. Inicialmente, Pedro não compreendeu isso; só depois da
ressurreição de Jesus é que o apóstolo entendeu que Jesus queria a acolhida dos
gentios na comunidade (At 10,34). Mas não permitir a Jesus lavar-lhe os pés
significa não tomar parte com ele, não ter parte na herança, ou seja, não
participar da comunhão com Deus realizada em Jesus Cristo, em sua vida e morte
aqui antecipada nesse gesto profético.
Os vv. 12-15 explicam
a atitude de Jesus, oferecem o seu significado. Aqueles que têm parte com
Jesus, que partilham de sua vida e missão, não poderão se ausentar do serviço
ao outro. Serviço que se traduz no acolhimento do outro, na entrega de si, numa
vida de doação e serviço amoroso. Somente ama aquele que entrega a própria
vida. E entregar-se vai muito além de simples serviço, é dom daquilo que se é e
do amor que se tem, dom de si para o outro.
2.
I leitura (Ex 12,1-8.11-14): Este será para
vós um memorial perpétuo
A Páscoa e o êxodo,
momentos fundadores de Israel como povo, são inseparáveis. Nesse texto
proclamado hoje na liturgia explicita-se o propósito da primeira Páscoa: a
esperança de salvação dos primogênitos e a expectativa de libertação da
escravidão. A salvação dos primogênitos significa que a vida das futuras
gerações do povo estará assegurada, contrariando os desejos do faraó (Ex 1,16).
Naquela época, era o primogênito quem levava adiante o nome do clã ou da tribo.
Sem primogênitos não há futuro para o povo. Somada à salvação dos primogênitos
estava a libertação da escravidão, garantia de vida livre e digna para as
futuras gerações.
Para representar essa
dupla ação de Deus, cada família deveria escolher um cordeiro ou cabrito sem
defeito, simbolizando a integridade da oferta ao Deus uno e perfeito. Em
contraste com outras festas de Israel, a Páscoa era uma festa familiar, pois da
família dependia a existência de gerações futuras e livres.
O sangue simbolizava
a vida (cf. Gn 9,4; Lv 17,11), e a última praga, que será narrada após o relato
da celebração da primeira Páscoa, consistirá na morte, que ameaçava hebreus e
egípcios. Por meio do sangue do cordeiro, símbolo da vida dos ofertantes,
marcando a entrada das casas, Deus proibiu a ação da morte contra os hebreus
(Ex 12,22-23).
O restante do
cordeiro era assado e consumido pela família. A carne do animal não era cozida
porque isso tomaria muito tempo, e esse alimento deveria ser preparado o mais
rapidamente possível. A família teria de comê-lo apressadamente, para sair sem
perda de tempo. Todos deveriam assimilar a urgência da libertação a ser
realizada por Deus. Sandálias nos pés, cajado nas mãos e rins cingidos (v. 11)
são aspectos de quem tem pressa para sair em longa viagem. Cingir os rins
significa que a túnica estava levantada, com a orla presa no cinto, deixando as
pernas livres para correr, trabalhar, lutar numa batalha ou fazer grande
viagem.
Todos esses
simbolismos da celebração da Páscoa dos hebreus visam mostrar que Deus saiu
vitorioso contra todos os deuses do Egito (Ex 12,12) e sobre os maiores
inimigos da humanidade representados por esses deuses: a morte e a escravidão.
3.
II leitura (1Cor 11,23-26): Fazei isto em
memória de mim
O texto de Paulo quer
enfatizar a recepção de uma tradição viva que teve origem no próprio Cristo.
Para o pensamento bíblico do primeiro século da era cristã, os verbos “receber”
e “transmitir” refletiam a transmissão de tradições sagradas que procediam de
fontes fidedignas. Assim, falando da última ceia de Jesus, Paulo quer deixar os
cristãos de sua época cientes de que ele recebeu de fontes seguras as
informações sobre esse evento tão importante para a vida cristã.
O
texto ressalta que Jesus “deu graças”: essa expressão, no idioma em que foi
escrita, é eukaristein, de onde deriva o
termo “eucaristia”.
A afirmação de que
partiu o pão indica a participação de todos os comensais em um mesmo pão
partilhado, significando a comunhão entre Cristo e a Igreja. “Isto é meu
corpo”, no idioma nativo de Jesus, significa “isto sou eu mesmo”. Quer dizer
que o pão fracionado e entregue aos comensais representa a totalidade da vida
de Jesus, integralmente oferecida a Deus e à humanidade. Essa oferta de Jesus é
que alimenta a Igreja e dá vida a ela enquanto caminha rumo ao reino
definitivo.
III.
PISTAS PARA REFLEXÃO
Que nesta noite de
vigília possamos meditar sobre nosso serviço ao outro. Nosso fazer na Igreja
está fundamentado na acolhida amorosa do irmão em nossa vida? Deus nos acolheu
em Jesus Cristo como Igreja, corpo de Cristo: será que estamos acolhendo a
humanidade com o mesmo empenho?
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