2.11- SANTO AGOSTINHO E A SANTÍSSIMA TRINDADE
ASPECTOS DA DOUTRINA
TRINITÁRIA DE SANTO AGOSTINHO.[1]
No domingo após a Solenidade de
Pentecostes, a Igreja nos convida a celebrar a Solenidade da Santíssima
Trindade. Na ocasião muitos fazem referência a Santo Agostinho, seja pelo seu
Tratado sobre a Trindade, seja pela conhecida estória do diálogo com a criança
na praia. Neste texto propomos, a partir da Introdução Geral às obras de Santo
Agostinho escrita pelo Padre Agostino Trapè, uma exposição clara e simples
sobre aspectos fundamentais da doutrina trinitária de Santo Agostinho.
Esperamos, com isso, ampliar o acesso à profundidade de seu pensamento e
favorecer, cada vez mais, uma reta compreensão da fé cristã. Eis o texto:
Agostinho empenhou-se no estudo do
mistério trinitário por três motivos: filosófico, teológico-pastoral e místico.
Estudou a Trindade em si (Trindade imanente) e a Trindade na história da
salvação (Trindade econômica), estabelecendo entre uma e outra consideração uma
profunda causalidade circular: da Trindade econômica à Trindade imanente, e
desta àquela.
Para
entender o estudo bíblico que Santo Agostinho empreende nos primeiros quatro
livros do Tratado sobre a Trindade (De
Trinitate), precisamos recordar seu ponto de partida que é aquele
da profissão de fé inicial. Esta profissão de fé não é composta sob o esquema
tripartido do símbolo batismal, que Santo Agostinho comentou diversas vezes,
como por exemplo na obra De
fide et symbolo, mas sob o esquema do símbolo Quicumque[2], do
qual recorda ou antecipa algumas expressões.
Antes
de tudo, Agostinho enuncia a unidade e a igualdade da Trindade; afirma, depois,
a distinção das Pessoas divinas; recorda que não a Trindade, mas somente o
Filho se encarnou, como somente o Pai fez ouvir sua voz no Tabor e somente o
Espírito Santo desceu sobre os discípulos no dia de Pentecostes; e confessa, por
fim, que as operações da Trindade são inseparáveis como também é são
inseparáveis as Pessoas divinas. Evidentemente, nessa profissão de fé, são dois
os pontos de partida: a unidade e igualdade de natureza da Trindade, e a
inseparabilidade das ações ad
extra.
- Unidade
e Igualdade do Deus Trindade.
Ao
expor e defender a unidade e igualdade da Trindade, Agostinho se opõe ao
subordinacionismo e, da mesma forma, evita a absurda imaginação que supõe uma
quarternidade em Deus (heresias comuns em sua época). Ao contrário, ele afirma
a consubstancialidade, a coeternidade, e a perfeita igualdade entre as três
Pessoas divinas. Mas esta unidade e igualdade, que está sempre em primeiro
plano na perspectiva agostiniana, parece ser contradita em alguns textos da
Escritura, os quais dizem que o Filho é inferior ao Pai, ou atribuem ao Pai
prerrogativas superiores ao Filho e ao Espírito Santo. Para responder a esta
dificuldade o Bispo de Hipona estuda os textos da Escritura e formula algumas regras
para entendê-los no contexto da Escritura em si.
1) A
primeira regra pode-se formular assim: em si, o texto bíblico se refere ao
único e verdadeiro Deus, que é Trindade, mesmo que ela não seja mencionada;
portanto, eles devem ser entendidos não como falando de uma só Pessoa, mas de
todas. Como por exemplo em 1Tm 6, 16 (“Aquele
que tem, ele só, a imortalidade, e habita na luz inacessível; a quem nenhum dos
homens viu nem pode ver, ao qual seja honra e poder sempiterno. Amém”);
e em Rm 11, 33-36 (“Ó
profundidade das riquezas, tanto da sabedoria, como da ciência de Deus! Quão
insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis os seus caminhos! Por que
quem compreendeu a mente do Senhor? ou quem foi seu conselheiro? Ou quem lhe
deu primeiro a ele, para que lhe seja recompensado? Porque dele e por ele, e
para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente. Amém”).
2) A
segunda, resguarda a “economia” divina na manifestação da Trindade. A Escritura
diz algumas coisas da singularidade de uma das Pessoas divinas separadamente
das outras para indicar e para recordar que Deus é Trindade. Como por exemplo
em Jo 14, 15-24 (“Se me
amais, guardai os meus mandamentos. E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro
Consolador, para que fique convosco para sempre; o Espírito da verdade, que o
mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece; mas vós o conheceis,
porque habita convosco, e estará em vós. Não vos deixarei órfãos; voltarei para
vós. Ainda um pouco, e o mundo não me verá mais, mas vós me vereis; porque eu
vivo, e vós vivereis. Naquele dia conhecereis que estou em meu Pai, e vós em
mim, e eu em vós...”).
3) A
terceira regra é a mais importante, porque tem frequente aplicação. Diz
respeito à Pessoa de Cristo. É chamada “canônica” porque é proposta comumente
pelos intérpretes da Escritura. Ei-la: o testemunho bíblico que diz respeito a
Cristo se deve entender alguns sobre o Cristo homem e outros sobre o Cristo
Deus, ou, para usar a expressão paulina, alguns sobre Cristo segundo a forma e
servo e outros sobre Cristo segundo a forma de Deus.
- A
Trindade age inseparavelmente.
O segundo princípio que determina a perspectiva segundo a qual
Santo Agostinho considera o mistério trinitário, é constituído pela inseparável
ação ad extra da
Trindade. A unidade do ser deve comportar a unidade de ação. Mas
como o primeiro princípio, anteriormente mencionado, também este parece ser
contradito por alguns textos da Escritura. Não obstante isto, Santo Agostinho o
defende, o explica e o aplica. Segundo ele, a Trindade operou inseparavelmente:
na criação, nas teofanias do Antigo Testamento e nas teofanias do Novo
Testamento.
Na
criação “o Pai, o Filho e o Espírito Santo são um só princípio, como são um só
criador e um só Senhor” (De
Trinitate 5, 14,15). Isso é tão verdadeiro que à formula do
símbolo batismal que diz: Cremos em Deus Pai onipotente criador do céu e da
terra, Santo Agostinho propõe esta outra: Cremos no Pai, e no Filho e no
Espírito Santo um só Deus... Pai e Filho e Espírito Santo unidos na mesma
substância, Deus criador, Trindade onipotente (cf. De Trinitate 9, 1,1.
4, 21, 30).
Desta
mesma forma, Santo Agostinho explicita as teofanias do Novo Testamento,
especialmente aquela manifesta no batismo no Jordão (cf. Mc 1, 9-11). “Toda
Trindade operou: a voz do Pai, o corpo do Filho e a pomba do Espírito Santo,
apesar dessas três coisas referirem-se a cada uma das Pessoas distintas” (De Trinitate 4, 21,
30).
Esta
afirmação, a ação inseparável da Trindade, suscita uma séria dificuldade. Por
exemplo: como podemos dizer que só o Filho se encarnou se a Encarnação é obra
da toda Trindade? Agostinho responde: a natureza humana de Cristo é obra da
Trindade, mas pertence só à Pessoa do Filho. Portanto, só o Filho se encarnou.
O mesmo vale para a voz do Pai e para a pomba ou as línguas de fogo do Espírito
Santo, com a diferença que a natureza humana do Filho ascendeu ao céu e está,
para sempre, na unidade da Pessoa do Verbo, enquanto que a voz e a pomba e as
línguas de fogo não formam unidade com a Pessoa do Pai e do Espírito Santo. Não
estão unidas, mas são usadas, provisoriamente, por um particular serviço: a
ação do Pai e do Espírito Santo na história da salvação.
Não
termina aqui a reflexão de Santo Agostinho sobre este princípio fundamental da
teologia Trinitária. Ele trata de estudá-lo e ilustrá-lo comparando o modo como
opera em nós a memória, a inteligência e a vontade (cf. De Trinitate 4, 21,
30; Sermo 52; Epístola 169, 5-6).
São três faculdades que nomeamos separadamente, mas que operam
inseparavelmente. As referências apresentadas neste texto, contudo, são
perfeitamente adequadas para ilustrar e instigar o aprofundamento da teologia
trinitária de Santo Agostinho.
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[1] Tradução de parte (p. 161-162; 166-167) da
Introdução Geral às Obras de Santo Agostinho, escrita por Agostino Trapè,
publicada pela Città Nuova Editrice em 2006. Tradutor: Fr. Jeferson Felipe da Cruz,
OSA.
[2] Denziger-Hünermann, em Compêndio dos Símbolos,
Definições e Declarações de Fé e Moral, Paulinas, Edições Loyola, São Paulo
2007, na página 40, chama este símbolo de “pseudo-atanasiano“, e esclarece que
“entre os estudiosos predomina a convicção de que o autor deste Símbolo não é
Atanásio de Alexandria, mas deve ser procurado entre os teólogos do Ocidente. A
maioria dos manuscritos mais antigos alega como autor Atanásio, outros, o Papa
Atanásio I. Entre os possíveis compositores deste Símbolo são mencionados
particularmente: Hilário de Poitiers, 367; Ambrósio de Milão, 397; Nicetas de
Remesiana, 414; Honorato de Arles., 429; Vicente de Lérins, antes de 450;
Fulgêncio Ruspe, 532; Cesário de Arles, 543; Venâncio Fortunato, 601. Prevalece
a opinião de que este Símbolo tenha surgido, entre 430 e 500, no sul da Gália,
possivelmente na região de Arles, por obra de autor desconhecido. No decorrer
do tempo este Símbolo adquiriu tal autoridade, no Ocidente como no Oriente, que
na Idade Média chegou a ser equiparado aos Símbolos apostólico e niceno a ser
usado na liturgia”. Apesar da polêmica sobre a autoria, as verdades expostas no
símbolo era conhecidas e aceitas pela Igreja por se tratar de “um majestoso e único
monumento da fé imutável de toda a igreja quanto aos grandes mistérios da
divindade, da Trindade de pessoas em um só Deus e da dualidade de naturezas de
um único Cristo.”
https://agostinianos.org.br/artigo/a-acao-inseparavel-do-deus-uno-e-trino/
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