1-
30 de maio –
CORPUS CHRISTI
Por Celso Loraschi
O CORPO
DE CRISTO: VIDA PARA O MUNDO
I.
INTRODUÇÃO GERAL
A
festa de Corpus Christi tem origem no século XIII. Santa Juliana de Mont
Cornillon, da Bélgica, incentivou a solenidade em honra ao santíssimo
sacramento e, em 1264, o papa Urbano IV publicou a bula Transiturus, na qual
louva o amor de Jesus manifestado na eucaristia e ordena que seja celebrada a
solenidade de Corpus Christi na quinta-feira seguinte ao domingo dedicado à
Santíssima Trindade. A partir do século XIV, as procissões foram sendo incorporadas
à celebração desta festa. O Concílio de Trento reconhece que, pela piedade
popular, foi sendo introduzido na Igreja de Deus o costume de celebrar
anualmente, em dia festivo, o excelso sacramento e declara que, com honra e
reverência, seja levado em procissão pelas ruas e lugares públicos. Com essa
manifestação pública de fé, os cristãos e cristãs testemunham a sua gratidão
pelo dom da eucaristia, pelo qual se torna presente a vitória sobre a morte e a
ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo. A eucaristia é o memorial da última
ceia de Jesus, em que ele ofereceu seu Corpo e Sangue aos discípulos,
anunciando a sua morte como dom total de sua vida em resgate da vida de todos
(II leitura). Os elementos eucarísticos, pão e vinho, são referências antigas,
usadas já pelo sacerdote Melquisedec como oferta a Deus pelos benefícios
concedidos a Abraão (I leitura). Pão e vinho – Corpo e Sangue: Jesus entregou a
vida em favor da humanidade não apenas na hora de sua morte, mas em todo o seu
ministério. Ele ensina a partilhar os bens e empenhar a própria vida a fim de
que todas as pessoas tenham suas necessidades dignamente satisfeitas. Para
isso, conta também com seus discípulos (evangelho).
II.
COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS 1.
II leitura (1Cor 11,23-26):
Em
memória de Jesus
O
relato que Paulo faz a respeito da Ceia de Jesus é o mais antigo, tendo sido
redigido ao redor do ano 56, anteriormente aos evangelhos. Ele diz que recebeu
“do Senhor” o que está transmitindo à comunidade. Certamente, refere-se à tradição
dos apóstolos. A narrativa está inserida num contexto de divisão da comunidade
cristã de Corinto, manifestada até mesmo na celebração da Ceia. Provavelmente,
nas comunidades primitivas, a Ceia do Senhor era feita em uma cerimônia de ação
de graças (= eucaristia) pela redenção do gênero humano trazida por Jesus. O
momento principal era precedido por uma refeição comum, também chamada de
“ágape”, como expressão de companheirismo entre os membros da comunidade. A
comida, provavelmente, era trazida de casa e partilhada com todos. No caso de
Corinto, Paulo critica com veemência a atitude dos que chegam mais cedo, comem
e bebem à vontade, sem esperar as pessoas pobres que chegam depois. Essa
conduta está em total desacordo com o sentido sagrado e solene da eucaristia.
Ao comer do mesmo pão e do mesmo cálice, do Corpo e do Sangue de Jesus, os
participantes expressam a unidade com o Salvador e com a comunidade. Paulo
enfatiza, então, a íntima relação entre a eucaristia e o amor fraterno. Por
isso, a celebração não é mero simbolismo, mas expressão de comunhão com a
pessoa e a proposta de Jesus, com o seu mesmo amor oblativo. Por isso, é
anúncio de sua morte, é a nova aliança em seu sangue.
2.
Evangelho (Lc 9,11b-17): Ação de graças na partilha Jesus retira-se com
os seus discípulos, recém-chegados da missão que lhes havia confiado. A
multidão segue a Jesus para onde ele vai. Ele lhes anuncia o reino de Deus e
realiza sinais de cura e de libertação. O local em que se encontra é deserto,
despovoado. Teologicamente o deserto revela o espaço de decisões, de caminhada
e de encontro com Deus. Lembra o êxodo como caminho de libertação da escravidão
do Egito; lembra também o profeta Elias, que, fugindo da perseguição do rei
Acab, atravessa o deserto e se encontra com Deus numa gruta no monte Carmelo;
lembra o próprio Jesus, que supera as tentações no deserto com jejum e oração.
Certamente, esse cenário da multidão com Jesus num lugar deserto revela uma
situação de crise. Ela é reforçada pela referência à hora avançada do dia: a
noite vinha chegando. É a mesma hora em que os discípulos de Emaús, após um
longo caminho, pedem que Jesus (o forasteiro, companheiro de caminhada)
permaneça com eles (Lc 24,29). No relato de Lucas, percebe-se nitidamente a
intenção de explicitar duas posturas diferentes diante da situação de crise.
Uma é a dos Doze, que se aproximam de Jesus e lhe pedem que despeça a multidão,
a fim de esta poder comprar alimentos e providenciar pousada. Comportam-se como
um grupo de elite e procuram livrar-se do “incômodo” que as pessoas
necessitadas representam. Mergulhados ainda numa ideologia de poder, apontam
uma saída baseada no individualismo e numa ótica mercantilista. A postura de
Jesus, porém, revela-se em desacordo com o exclusivismo dos Doze. Eles ainda não
haviam assimilado o testemunho do ministério de Jesus, que sempre é de
acolhida, de anúncio do Reino, com sinais em favor da vida digna sem exclusão.
Por isso, Jesus os impele a enfrentar a situação: “Dai-lhes vós mesmos de
comer”. Ensina-lhes o método antigo de organização em pequenos grupos e de
partilha do que as pessoas tinham. É a memória e a aplicação atualizada dos
princípios econômicos e políticos do povo de Israel, segundo os relatos de Ex
16 e 18. Lembra também a ação do profeta Eliseu, que, mesmo diante da dúvida
resistente de seu servo, pede que sejam servidos para cem pessoas os 20 pães
que possuía. Todas ficaram saciadas e ainda sobrou, conforme a palavra do
Senhor (2Rs 4,42-44). Lucas faz questão de precisar a quantidade de alimento
que havia no meio do povo: cinco pães e dois peixes (perfazem o número sete, de
plenitude); representam os bens que a benevolência divina concede aos seus
filhos e filhas. Quando administrados com justiça, segundo a necessidade de
cada pessoa, satisfazem plenamente e ainda sobra em abundância (12 cestos). A
bênção de Jesus sobre os alimentos revela o costume entre os judeus. O Talmude
chega a dizer que “aquele que desfruta de algo sem dar graças é como se tivesse
roubado a Deus”. As palavras usadas por Jesus nessa bênção, juntamente com o
gesto de partilha, faziam parte da Ceia do Senhor, celebrada pelas comunidades
primitivas. Lucas lembra que foi exatamente na hora da bênção e da partilha dos
pães que os olhos dos discípulos de Emaús se abriram e reconheceram a Jesus
ressuscitado (Lc 24,30-31).
3.
I leitura (Gn 14,18-20): Pão e vinho, oferta de gratidão
Este
breve texto de Gênesis é inserido após o relato da vitória de Abraão e sua
família sobre um grupo de guerrilheiros que havia sequestrado seu sobrinho Lot
juntamente com seus bens. Melquisedec é apresentado como rei de Salém (muitos a
identificam com Jerusalém) e sacerdote de Deus altíssimo. O pão e o vinho
trazidos por Melquisedec, junto com a bênção sobre Abraão, indicam um tipo de
cerimônia religiosa de ação de graças entre os judeus. Pode-se constatar aí a
preocupação de Melquisedec, rei e sacerdote, em suprir as necessidades
corporais e espirituais do ser humano. Com base neste texto de Gênesis, a carta
aos Hebreus apresenta Melquisedec como uma figura profética de Jesus Cristo,
sacerdote eterno, livre e autônomo, sem possuir nenhuma ligação dinástica.
Aplica a Jesus o significado etimológico do nome de Melquisedec: “Rei de
justiça” e “Rei de Salém”, o que quer dizer “Rei da paz” (Hb 7,1-3.15-17).
III.
PISTAS PARA REFLEXÃO
A festa de Corpus
Christi oferece a oportunidade de refletir sobre o sentido da eucaristia na
vida dos cristãos e cristãs. Celebrar a memória de Jesus Cristo, morto e
ressuscitado, é atualizar seus gestos de amor oblativo em favor da vida de
todas as pessoas. De modo particular, não podemos esquecer a dimensão social da
eucaristia. “São João Crisóstomo exortava: ‘Querem em verdade honrar o corpo de
Cristo? Não consintam que esteja nu. Não o honrem no templo com mantos de seda
enquanto fora o deixam passar frio e nudez’” (DAp 354). A celebração adquire
seu verdadeiro sentido quando é expressão de relacionamentos justos e
fraternos, vividos no cotidiano da vida familiar, comunitária e social. Não é,
portanto, por meio de manifestações triunfalistas que expressamos a fé e o
louvor a Deus. Para evitar essa tendência e todo tipo de alienação, Paulo
adverte: “Todas as vezes, pois, que comeis desse pão e bebeis desse cálice,
anunciais a morte do Senhor até que ele venha”. O pão e o vinho oferecidos por
Melquisedec – “Rei da justiça” e “Sacerdote da paz” – em louvor às bênçãos de
Deus sobre Abraão apontam para a identidade e a missão de Jesus. Ele é, por
excelência, a bênção do Pai em favor do povo. Toda a sua vida é, na verdade, um
ato eucarístico em louvor a Deus concretizado no amor ao próximo. Sua prática
indica o caminho da paz como fruto da justiça. O seu gesto de bênção sobre os
alimentos com a partilha entre todos nos alerta para o desdobramento da
eucaristia na vida cotidiana de cada um de nós. “A eucaristia é o centro vital
do universo, capaz de saciar a fome de vida e felicidade: ‘Aquele que se
alimenta de mim viverá por mim’ (Jo 6,57)” (DAp 354). “Nossa existência
cotidiana se converte em missa prolongada (...)” (DAp 354). Todas as pessoas,
todas as coisas, todos os momentos e todos os espaços são sagrados porque dons
de Deus. Não se podem admitir situações excludentes, o acúmulo dos bens, a
exploração egoísta do tempo, nem conformar-se com isso. Jesus mostrou o caminho
para uma nova sociedade, organizada a partir da base e com a administração
justa dos bens. Ele conta com a colaboração dos seus seguidores e seguidoras
para continuar a sua obra. ► A celebração da festa de Corpus Christi pode
constituir um bom momento de valorizar a corresponsabilidade de todos no
cuidado e respeito por todas as formas de vida. Em coerência com o que
celebramos na eucaristia, não podemos prescindir do empenho em favor da
superação de toda espécie de violência e exploração, tanto do ser humano como
da natureza...
Celso Loraschi
Mestre em Teologia
Dogmática com Concentração em Estudos Bíblicos, professor de evangelhos
sinóticos e Atos dos Apóstolos no Instituto Teológico de Santa Catarina
(ITESC).
E-mail: loraschi@itesc.org.br
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/30-de-maio-corpus-christi/
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