Quem
dizem os homens que eu sou? Uma leitura de Marcos 8,27-38 (II)
Por Pe. Shigeyuki Nakanose, svd
1.
“Tu és Cristo”
Jesus
com os seus discípulos estão em viagem para Jerusalém, próximos a Cesareia de
Filipe, cidade situada no extremo norte da Palestina, junto às fontes do rio
Jordão. O nome anterior dessa cidade era Panion, pois nela havia um local
sagrado dedicado ao deus Pã (FREYNE, 2008, p. 53-54). Aí também havia um templo
em honra de Augusto, construído por Herodes Magno. Herodes Filipe atribuiu à
cidade o nome de Cesareia de Filipe, distinguindo-a de outras Cesareias.
No
caminho, o Evangelho de Marcos insere a pergunta sobre a identidade de Jesus:
“Quem dizem os homens que eu sou?” (Mc 8,27b). O caminho é o local do
discipulado. A questão proposta não tem uma única resposta – até hoje as
pessoas continuam tentando responder quem é Jesus. As diferentes respostas
representam as várias opiniões existentes na comunidade de Marcos acerca de Jesus.
Alguns
acreditavam que Jesus era João Batista que tinha voltado. De acordo com a
narrativa de Marcos, o próprio Herodes pensava dessa forma (Mc 6,16). Para
outros, era Elias, uma figura do Antigo Testamento muito popular entre os
judeus. Ele era considerado o iniciador do movimento profético. A tradição
afirmava que esse profeta tinha sido arrebatado aos céus e, segundo a crença,
voltaria (2Rs 2,11). Ainda havia uma parcela da comunidade que acreditava que
Jesus era um dos profetas.
A
questão sobre a identidade de Jesus se desdobra em outra pergunta: “E vós, quem
dizeis que eu sou?” Pedro, representando um grupo que segue Jesus, responde:
“Tu és o Cristo!” (Mc 8,29). Desde o início, o Evangelho de Marcos apresenta a
verdadeira identidade de Jesus. Na voz do narrador ouvimos a proclamação de
“Jesus Cristo, Filho de Deus” (Mc 1,1), em seguida pelo próprio Deus (Mc 1,11)
e pelos demônios (Mc 1,25; 3,11; 5,7), somente agora pelos discípulos.
Embora
a resposta de Pedro esteja certa, segue-se a ordem de silêncio. De fato, Jesus
é o Messias, mas parece que a comunidade ainda não entendeu o seu messianismo,
pois espera um Messias glorioso e poderoso. O Evangelho de Marcos apresenta que
tipo de Messias é Jesus: “O Filho do homem deve sofrer muito, ser rejeitado pelos
anciãos, pelos chefes dos sacerdotes e pelos escribas, ser morto e, depois de
três dias, ressuscitar” (Mc 8,31). Esse ensinamento será repetido em outras
duas passagens: 9,31 e 10,32-34. O texto evidencia que o seguimento de Jesus
implica sofrimento e rejeição.
O
título “Filho do homem” ocorre muitas vezes no Antigo Testamento. Enquanto o
título em Dn 7,13 é usado para designar “alguém como o rei Davi” que vem nas
nuvens com poder e glória, o título no livro de Ezequiel é, de modo geral,
aplicado ao ser humano com suas fraquezas e limitações humanas. Nos sinóticos
(Mc, Mt e Lc), o título “Filho do homem” é usado somente por Jesus. Quando o
título é usado nos textos que mencionam a paixão e morte de Jesus, ele é
aplicado para expressar a condição humana de fragilidade, contrapondo-se à
figura apocalíptico-escatológica do Messias davídico poderoso.
Anciãos,
chefes dos sacerdotes e escribas foram os representantes das autoridades de
Jerusalém que tramaram a morte de Jesus: “Enquanto ainda falava, chegou Judas,
um dos doze, com uma multidão trazendo espadas e paus, da parte dos chefes dos
sacerdotes, escribas e anciãos” (Mc 14,43; cf. Mc 10,33; 11,18.28; 14,1;
15,1.31). A visão de um Messias poderoso e triunfalista é substituída pela
compreensão de um messianismo que passa pelo sofrimento e pela cruz. Um Messias
solidário com os crucificados da história.
O
messianismo de Jesus está relacionado com rejeição, sofrimento e morte,
conteúdo essencial de sua identidade messiânica. Havia em Israel a imagem do
Servo de Javé (Is 42,1-9; 49,1-6; 50,4-11; 52,13-53,12), porém ela ainda não
estava relacionada com o Messias. O essencial desses cânticos é que o servo é
chamado para o serviço da justiça, toma consciência do seu chamado e assume a
missão. Por causa de sua fidelidade à justiça, é perseguido, resiste até o fim
e por isso é morto, mas Deus aceita a sua oferta. As primeiras comunidades
cristãs releram os cânticos de Isaías e viram em Jesus o Servo de Javé. Elas
entenderam que o sofrimento do Filho do homem não vinha das mãos de Deus, mas
“dos anciãos, chefes dos sacerdotes e escribas”.
Pedro
representa o grupo que não aceita essa visão e censura Jesus. Para muitos, a
morte de Jesus na cruz era inaceitável. Nesse momento, a reação é violenta:
“Arreda-te de mim, satanás, porque não pensas as coisas de Deus, mas as dos
homens” (8,33). Havia forte contestação a Jesus na comunidade de Marcos. Em
3,22, ele é acusado de estar possuído por Beelzebu. A provocação de Pedro a
Jesus lembra também a tentação de Jesus no deserto (Mc 1,12-13). Pedro não age
como discípulo de Jesus, ao contrário, torna-se porta-voz de satanás. A palavra
satã vem do hebraico e significa “adversário”.
A
narrativa de Marcos 8,27-33 tinha os discípulos como destinatários. No v. 34,
há uma mudança: o discurso agora é dirigido para a multidão juntamente com os
discípulos. O convite para seguir Jesus apresenta três exigências: “negue-se a
si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mc 8,34). Negar-se a si mesmo supõe
superar o egoísmo e arriscar a vida por causa de Jesus e do evangelho (Mc
8,35-37). A morte na cruz era extrema humilhação. A cruz era instrumento de
crueldade e desumanização e representava a opressão romana. No tempo dos
romanos, era castigo aplicado aos escravos e aos rebeldes. Um condenado à cruz
tinha de carregar a própria até o lugar da crucifixão.
No
caminho do discipulado, Pedro e os demais discípulos seguem Jesus e prometem
fidelidade: “‘Mesmo que tenha de morrer contigo, não te negarei’. E todos
diziam o mesmo” (Mc 14,31). Porém, diante do perigo, Pedro nega conhecer Jesus
para salvar a própria vida (Mc 14,67-72). O mesmo aconteceu com o homem
possuidor de muitos bens e incapaz de atender o chamado de Jesus (Mc 10,21-22).
Negar
Jesus e seu evangelho pode ser um caminho de preservação da própria vida, mas a
vida perde o seu sentido. De que adiantam riquezas e seguranças se a pessoa se
fecha à solidariedade humana, distanciando-se da fonte da vida? “Envergonhar-se
de mim e de minhas palavras” significa distanciar-se de Jesus e do seu
evangelho e assumir a ideologia do império. O questionamento de Jesus a seus
discípulos e à multidão continua a exigir uma resposta: até que ponto assumimos
o seguimento de Jesus hoje?
2.
Catecismo sobre o
seguimento de Jesus
“Tome a
sua cruz e siga-me.” O seguimento de Jesus é o caminho da cruz, na contramão da
sociedade dominada pelo império romano e seus colaboradores. É sociedade
organizada pelas relações humanas baseadas no levar vantagem, no poder e em
privilégios. A comunidade cristã de Marcos, que professa Jesus de Nazaré como
“Cristo”, não deve reproduzir as relações de poder na vida cotidiana, mas
estabelecer relações de serviço e de comunhão.
Após o
primeiro anúncio da paixão, a comunidade de Marcos descreve, em seu evangelho,
as instruções sobre as relações internas da comunidade, introduzidas pelo
segundo (Mc 9,30-32) e terceiro anúncios (Mc 10,32-34):
1)
“E chegaram a Cafarnaum. Em casa, ele lhes perguntou: ‘Sobre que discutíeis no
caminho?’ Ficaram em silêncio, porque pelo caminho vinham discutindo sobre qual
era o maior. Então ele sentou, chamou os Doze e disse: ‘Se alguém quiser ser o
primeiro, seja o último de todos e o servo de todos’” (Mc 9,33-35). Quem é o
maior? Os discípulos ainda idealizam uma sociedade de poder, de riqueza e de
privilégio que produz a segregação social. O caminho da cruz deve ser
reproduzido nas relações humanas da comunidade, baseada na vida de serviço sem
interesse.
2)
“Disse-lhe João: ‘Mestre, vimos alguém que não nos segue expulsando demônios em
teu nome, e o impedimos porque não nos seguia’. Jesus, porém, disse: ‘Não o
impeçais, pois não há ninguém que faça milagre em meu nome e logo depois possa
falar mal de mim. Porque quem não é contra nós é por nós’” (Mc 9,38-40). Mais
uma vez, deparamos com a concepção dos discípulos de uma sociedade
segregacionista de poder. Eles não estão dispostos a partilhar o poder e o
privilégio. Querem o monopólio e a exclusividade no mistério da salvação. Hoje
se compreende que a prática missionária não é condenatória nem marcada por
sectarismo. O cerne da missão é a promoção da justiça, da liberdade e da vida
em todos os povos.
3)
“Traziam-lhe crianças para que as tocasse, mas os discípulos as repreendiam.
Vendo isso, Jesus ficou indignado e disse: ‘Deixai as crianças virem a mim. Não
as impeçais, pois delas é o reino de Deus. Em verdade vos digo: aquele que não
receber o reino de Deus como uma criança não entrará nele’. Então,
abraçando-as, abençoou-as, impondo as mãos sobre elas” (Mc 10,13-16). No mundo
greco-romano de produção e de ganho, a criança e o ancião são considerados
inúteis (cf. Sb 2,5-11) e representam o grupo marginalizado. Mas o reino, do
ponto de vista de Jesus de Nazaré, é gratuidade de Deus, e nele as pessoas
marginalizadas, que não são consideradas, são acolhidas.
4)
“Então Jesus, olhando em torno, disse a seus discípulos: ‘Como é difícil a quem
tem riquezas entrar no reino de Deus!’ Os discípulos ficaram admirados com
essas palavras. Jesus, porém, continuou a dizer: ‘Filhos, como é difícil entrar
no reino de Deus! É mais fácil um camelo passar pelo fundo da agulha do que um
rico entrar no reino de Deus!’” (Mc 10,23-25). A riqueza no império romano é
fruto da acumulação de bens por meio da injustiça: fraudação, espoliação e
violência (Ap 13; 18). Ao entrar no reino de Deus, na comunhão com o Deus da
vida, é preciso sair e combater esta sociedade de ambição e injustiça, que
explora o próximo e a natureza. É necessário entrar no caminho da cruz, de
serviço e de partilha da vida.
5)
“Tiago e João, filhos de Zebedeu, foram até ele e disseram-lhe: ‘Mestre,
queremos que nos faças o que te pedimos’. Ele perguntou: ‘Que quereis que vos
faça?’ Disseram: ‘Concede-nos, na tua glória, sentarmo-nos, um à tua direita,
outro à tua esquerda’. […] Ouvindo isso, os dez começaram a indignar-se contra
Tiago e João. Chamando-os, Jesus lhes disse: ‘Sabeis que aqueles que vemos
governar as nações as dominam, e os seus grandes as tiranizam. Entre vós não
será assim: ao contrário, aquele que dentre vós quiser ser grande, seja o vosso
servidor, e aquele que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o servo de
todos’” (Mc 10,35-44). O projeto de Jesus não é ser servido, mas servir o
próximo. Assim, é rejeitada, definitivamente, a aspiração dos discípulos ao
reino messiânico davídico no qual Jesus seria ungido como rei e assumiria o
poder em Jerusalém. Essa rejeição é também da comunidade de Marcos por volta do
ano 70 d.C. Ela rejeita juntar-se às revoltas armadas dos vários líderes
messiânicos e suas lutas por poder e privilégios.
O Evangelho
de Marcos registra três anúncios da paixão com o catecismo sobre o seguimento
de Jesus na vida cotidiana da comunidade. Ao anunciar o catecismo do “caminho
da cruz”, Jesus combate e corrige os discípulos que aspiram a poder e
privilégios. É corrigida a aspiração messiânico-davídica ao poder de alguns
membros da comunidade de Marcos. No caminho do seguimento de Jesus, ela deve
empenhar-se em examinar sempre a natureza de sua missão no mundo.
A
comunidade, como o cego Bartimeu (Mc 10,46-52), deve abrir os olhos, deixar o
manto do “Filho de Davi” – Messias como rei poderoso – e seguir o caminho da
cruz do Jesus servo sofredor. Deve despojar-se de tudo o que prega e busca o
mundo de ambição pelo poder, riqueza e fama: “Pois o Filho do homem não veio para
ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc
10,45).
3.
Uma palavra final
Ontem e
hoje persiste a pergunta: “Quem dizem os homens que eu sou?” As respostas são
várias, e na comunidade de Marcos havia a imagem de uma figura messiânico-davídica
gloriosa já esperada pelo povo judeu. Quem é Jesus? Onde ele está? Como podemos
segui-lo? Uma das respostas para os nossos dias está na nossa realidade, em
fatos como este do relato abaixo, feito por uma jornalista:
Minha filha caçula, orientadora pedagógica e psicóloga de
crianças e adolescentes, chorou emocionada ao ouvir pelo rádio a entrevista que
o estudante Vítor Soares Cunha deu ao sair do hospital, depois de ser agredido
covardemente por jovens como ele. Vítor, 21, aluno de desenho industrial,
passeava com um colega na Ilha do Governador, no Rio, quando viu cinco rapazes
bem alimentados espancando um mendigo. Filho de um assistente social, não
pensou duas vezes ao tentar impedi-los. A violência irracional voltou-se contra
ele. Foram socos e pontapés violentos e ininterruptos, atingindo, sobretudo, a
cabeça e rosto de Vítor, mesmo quando ele já estava caído no chão, totalmente
indefeso. Depois de horas de cirurgias, placas de titânio na testa e no céu da
boca, 63 pinos para recompor os ossos da face e ainda com o risco de perder os
movimentos do olho esquerdo, Vítor saiu com sua mãe do hospital e disse, com
uma simplicidade atordoante, que não se sentia heroico e que faria tudo
novamente.[2]
Quem confessa Jesus de Nazaré como um dos
caminhos para construir o reino de Deus é chamado a segui-lo nas atividades
cotidianas, sendo solidário com os mais desprezados e rejeitados pelos poderes
do mundo, seduzidos pela ambição das riquezas e honras que promovem a morte.
Pois o reino de Deus se constrói nos movimentos de solidariedade entre as
pessoas no dia a dia da vida: conscientizar e promover a dignidade humana; defender
a vida e a natureza. A jornalista termina seu relato com esta reflexão: “A
comparação entre Vítor e seus agressores nos faz refletir. O Brasil e o mundo serão muito melhores quando pais e escolas educarem
as crianças não para se arvorarem fortes e machos ao trucidar um ser humano –
ou um animal – jogado na rua, no abandono e na dor”.
*
Pertence à Congregação do Verbo Divino, é doutor em Teologia Bíblica. Há vários
anos atua no Centro Bíblico Verbo como diretor e assessor. É professor no Itesp
– Instituto de Teologia São Paulo – e membro da equipe bíblica da CRB Nacional,
colaborando também na assessoria de cursos populares em várias regiões do
Brasil e da América Latina. E-mail: cbiblicoverbo@uol.com.br
[1] As
referências bibliográficas completas encontram-se ao final do último artigo,
“Jesus de Nazaré, crucificado e ressuscitado”.
[2] CANTANHEDE,
Eliane. Pequenas grandes coisas. Folha de
S. Paulo, São Paulo, 12 fev. 2012. Opinião, A2.
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