sábado, 8 de junho de 2024

Quem dizem os homens que eu sou? Uma leitura de Marcos 8,27-38 (II) Por Pe. Shigeyuki Nakanose, svd

 

 

 Quem dizem os homens que eu sou? Uma leitura de Marcos 8,27-38 (II)

Por Pe. Shigeyuki Nakanose, svd

 

1.    “Tu és Cristo”

 

Jesus com os seus discípulos estão em viagem para Jerusalém, próximos a Cesareia de Filipe, cidade situada no extremo norte da Palestina, junto às fontes do rio Jordão. O nome anterior dessa cidade era Panion, pois nela havia um local sagrado dedicado ao deus Pã (FREYNE, 2008, p. 53-54). Aí também havia um templo em honra de Augusto, construído por Herodes Magno. Herodes Filipe atribuiu à cidade o nome de Cesareia de Filipe, distinguindo-a de outras Cesareias.

No caminho, o Evangelho de Marcos insere a pergunta sobre a identidade de Jesus: “Quem dizem os homens que eu sou?” (Mc 8,27b). O caminho é o local do discipulado. A questão proposta não tem uma única resposta – até hoje as pessoas continuam tentando responder quem é Jesus. As diferentes respostas representam as várias opiniões existentes na comunidade de Marcos acerca de Jesus.

Alguns acreditavam que Jesus era João Batista que tinha voltado. De acordo com a narrativa de Marcos, o próprio Herodes pensava dessa forma (Mc 6,16). Para outros, era Elias, uma figura do Antigo Testamento muito popular entre os judeus. Ele era considerado o iniciador do movimento profético. A tradição afirmava que esse profeta tinha sido arrebatado aos céus e, segundo a crença, voltaria (2Rs 2,11). Ainda havia uma parcela da comunidade que acreditava que Jesus era um dos profetas.

A questão sobre a identidade de Jesus se desdobra em outra pergunta: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Pedro, representando um grupo que segue Jesus, responde: “Tu és o Cristo!” (Mc 8,29). Desde o início, o Evangelho de Marcos apresenta a verdadeira identidade de Jesus. Na voz do narrador ouvimos a proclamação de “Jesus Cristo, Filho de Deus” (Mc 1,1), em seguida pelo próprio Deus (Mc 1,11) e pelos demônios (Mc 1,25; 3,11; 5,7), somente agora pelos discípulos.

Embora a resposta de Pedro esteja certa, segue-se a ordem de silêncio. De fato, Jesus é o Messias, mas parece que a comunidade ainda não entendeu o seu messianismo, pois espera um Messias glorioso e poderoso. O Evangelho de Marcos apresenta que tipo de Messias é Jesus: “O Filho do homem deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos chefes dos sacerdotes e pelos escribas, ser morto e, depois de três dias, ressuscitar” (Mc 8,31). Esse ensinamento será repetido em outras duas passagens: 9,31 e 10,32-34. O texto evidencia que o seguimento de Jesus implica sofrimento e rejeição.

O título “Filho do homem” ocorre muitas vezes no Antigo Testamento. Enquanto o título em Dn 7,13 é usado para designar “alguém como o rei Davi” que vem nas nuvens com poder e glória, o título no livro de Ezequiel é, de modo geral, aplicado ao ser humano com suas fraquezas e limitações humanas. Nos sinóticos (Mc, Mt e Lc), o título “Filho do homem” é usado somente por Jesus. Quando o título é usado nos textos que mencionam a paixão e morte de Jesus, ele é aplicado para expressar a condição humana de fragilidade, contrapondo-se à figura apocalíptico-escatológica do Messias davídico poderoso.

Anciãos, chefes dos sacerdotes e escribas foram os representantes das autoridades de Jerusalém que tramaram a morte de Jesus: “Enquanto ainda falava, chegou Judas, um dos doze, com uma multidão trazendo espadas e paus, da parte dos chefes dos sacerdotes, escribas e anciãos” (Mc 14,43; cf. Mc 10,33; 11,18.28; 14,1; 15,1.31). A visão de um Messias poderoso e triunfalista é substituída pela compreensão de um messianismo que passa pelo sofrimento e pela cruz. Um Messias solidário com os crucificados da história.

O messianismo de Jesus está relacionado com rejeição, sofrimento e morte, conteúdo essencial de sua identidade messiânica. Havia em Israel a imagem do Servo de Javé (Is 42,1-9; 49,1-6; 50,4-11; 52,13-53,12), porém ela ainda não estava relacionada com o Messias. O essencial desses cânticos é que o servo é chamado para o serviço da justiça, toma consciência do seu chamado e assume a missão. Por causa de sua fidelidade à justiça, é perseguido, resiste até o fim e por isso é morto, mas Deus aceita a sua oferta. As primeiras comunidades cristãs releram os cânticos de Isaías e viram em Jesus o Servo de Javé. Elas entenderam que o sofrimento do Filho do homem não vinha das mãos de Deus, mas “dos anciãos, chefes dos sacerdotes e escribas”.

Pedro representa o grupo que não aceita essa visão e censura Jesus. Para muitos, a morte de Jesus na cruz era inaceitável. Nesse momento, a reação é violenta: “Arreda-te de mim, satanás, porque não pensas as coisas de Deus, mas as dos homens” (8,33). Havia forte contestação a Jesus na comunidade de Marcos. Em 3,22, ele é acusado de estar possuído por Beelzebu. A provocação de Pedro a Jesus lembra também a tentação de Jesus no deserto (Mc 1,12-13). Pedro não age como discípulo de Jesus, ao contrário, torna-se porta-voz de satanás. A palavra satã vem do hebraico e significa “adversário”.

A narrativa de Marcos 8,27-33 tinha os discípulos como destinatários. No v. 34, há uma mudança: o discurso agora é dirigido para a multidão juntamente com os discípulos. O convite para seguir Jesus apresenta três exigências: “negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mc 8,34). Negar-se a si mesmo supõe superar o egoísmo e arriscar a vida por causa de Jesus e do evangelho (Mc 8,35-37). A morte na cruz era extrema humilhação. A cruz era instrumento de crueldade e desumanização e representava a opressão romana. No tempo dos romanos, era castigo aplicado aos escravos e aos rebeldes. Um condenado à cruz tinha de carregar a própria até o lugar da crucifixão.

No caminho do discipulado, Pedro e os demais discípulos seguem Jesus e prometem fidelidade: “‘Mesmo que tenha de morrer contigo, não te negarei’. E todos diziam o mesmo” (Mc 14,31). Porém, diante do perigo, Pedro nega conhecer Jesus para salvar a própria vida (Mc 14,67-72). O mesmo aconteceu com o homem possuidor de muitos bens e incapaz de atender o chamado de Jesus (Mc 10,21-22).

Negar Jesus e seu evangelho pode ser um caminho de preservação da própria vida, mas a vida perde o seu sentido. De que adiantam riquezas e seguranças se a pessoa se fecha à solidariedade humana, distanciando-se da fonte da vida? “Envergonhar-se de mim e de minhas palavras” significa distanciar-se de Jesus e do seu evangelho e assumir a ideologia do império. O questionamento de Jesus a seus discípulos e à multidão continua a exigir uma resposta: até que ponto assumimos o seguimento de Jesus hoje?

 

2.    Catecismo sobre o seguimento de Jesus

 

            “Tome a sua cruz e siga-me.” O seguimento de Jesus é o caminho da cruz, na contramão da sociedade dominada pelo império romano e seus colaboradores. É sociedade organizada pelas relações humanas baseadas no levar vantagem, no poder e em privilégios. A comunidade cristã de Marcos, que professa Jesus de Nazaré como “Cristo”, não deve reproduzir as relações de poder na vida cotidiana, mas estabelecer relações de serviço e de comunhão.

Após o primeiro anúncio da paixão, a comunidade de Marcos descreve, em seu evangelho, as instruções sobre as relações internas da comunidade, introduzidas pelo segundo (Mc 9,30-32) e terceiro anúncios (Mc 10,32-34):

1)      “E chegaram a Cafarnaum. Em casa, ele lhes perguntou: ‘Sobre que discutíeis no caminho?’ Ficaram em silêncio, porque pelo caminho vinham discutindo sobre qual era o maior. Então ele sentou, chamou os Doze e disse: ‘Se alguém quiser ser o primeiro, seja o último de todos e o servo de todos’” (Mc 9,33-35). Quem é o maior? Os discípulos ainda idealizam uma sociedade de poder, de riqueza e de privilégio que produz a segregação social. O caminho da cruz deve ser reproduzido nas relações humanas da comunidade, baseada na vida de serviço sem interesse.

2)      “Disse-lhe João: ‘Mestre, vimos alguém que não nos segue expulsando demônios em teu nome, e o impedimos porque não nos seguia’. Jesus, porém, disse: ‘Não o impeçais, pois não há ninguém que faça milagre em meu nome e logo depois possa falar mal de mim. Porque quem não é contra nós é por nós’” (Mc 9,38-40). Mais uma vez, deparamos com a concepção dos discípulos de uma sociedade segregacionista de poder. Eles não estão dispostos a partilhar o poder e o privilégio. Querem o monopólio e a exclusividade no mistério da salvação. Hoje se compreende que a prática missionária não é condenatória nem marcada por sectarismo. O cerne da missão é a promoção da justiça, da liberdade e da vida em todos os povos.

3)      “Traziam-lhe crianças para que as tocasse, mas os discípulos as repreendiam. Vendo isso, Jesus ficou indignado e disse: ‘Deixai as crianças virem a mim. Não as impeçais, pois delas é o reino de Deus. Em verdade vos digo: aquele que não receber o reino de Deus como uma criança não entrará nele’. Então, abraçando-as, abençoou-as, impondo as mãos sobre elas” (Mc 10,13-16). No mundo greco-romano de produção e de ganho, a criança e o ancião são considerados inúteis (cf. Sb 2,5-11) e representam o grupo marginalizado. Mas o reino, do ponto de vista de Jesus de Nazaré, é gratuidade de Deus, e nele as pessoas marginalizadas, que não são consideradas, são acolhidas.

4)      “Então Jesus, olhando em torno, disse a seus discípulos: ‘Como é difícil a quem tem riquezas entrar no reino de Deus!’ Os discípulos ficaram admirados com essas palavras. Jesus, porém, continuou a dizer: ‘Filhos, como é difícil entrar no reino de Deus! É mais fácil um camelo passar pelo fundo da agulha do que um rico entrar no reino de Deus!’” (Mc 10,23-25). A riqueza no império romano é fruto da acumulação de bens por meio da injustiça: fraudação, espoliação e violência (Ap 13; 18). Ao entrar no reino de Deus, na comunhão com o Deus da vida, é preciso sair e combater esta sociedade de ambição e injustiça, que explora o próximo e a natureza. É necessário entrar no caminho da cruz, de serviço e de partilha da vida.

5)      “Tiago e João, filhos de Zebedeu, foram até ele e disseram-lhe: ‘Mestre, queremos que nos faças o que te pedimos’. Ele perguntou: ‘Que quereis que vos faça?’ Disseram: ‘Concede-nos, na tua glória, sentarmo-nos, um à tua direita, outro à tua esquerda’. […] Ouvindo isso, os dez começaram a indignar-se contra Tiago e João. Chamando-os, Jesus lhes disse: ‘Sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam, e os seus grandes as tiranizam. Entre vós não será assim: ao contrário, aquele que dentre vós quiser ser grande, seja o vosso servidor, e aquele que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o servo de todos’” (Mc 10,35-44). O projeto de Jesus não é ser servido, mas servir o próximo. Assim, é rejeitada, definitivamente, a aspiração dos discípulos ao reino messiânico davídico no qual Jesus seria ungido como rei e assumiria o poder em Jerusalém. Essa rejeição é também da comunidade de Marcos por volta do ano 70 d.C. Ela rejeita juntar-se às revoltas armadas dos vários líderes messiânicos e suas lutas por poder e privilégios.

O Evangelho de Marcos registra três anúncios da paixão com o catecismo sobre o seguimento de Jesus na vida cotidiana da comunidade. Ao anunciar o catecismo do “caminho da cruz”, Jesus combate e corrige os discípulos que aspiram a poder e privilégios. É corrigida a aspiração messiânico-davídica ao poder de alguns membros da comunidade de Marcos. No caminho do seguimento de Jesus, ela deve empenhar-se em examinar sempre a natureza de sua missão no mundo.

A comunidade, como o cego Bartimeu (Mc 10,46-52), deve abrir os olhos, deixar o manto do “Filho de Davi” – Messias como rei poderoso – e seguir o caminho da cruz do Jesus servo sofredor. Deve despojar-se de tudo o que prega e busca o mundo de ambição pelo poder, riqueza e fama: “Pois o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10,45).

3.    Uma palavra final

 

Ontem e hoje persiste a pergunta: “Quem dizem os homens que eu sou?” As respostas são várias, e na comunidade de Marcos havia a imagem de uma figura messiânico-davídica gloriosa já esperada pelo povo judeu. Quem é Jesus? Onde ele está? Como podemos segui-lo? Uma das respostas para os nossos dias está na nossa realidade, em fatos como este do relato abaixo, feito por uma jornalista:

Minha filha caçula, orientadora pedagógica e psicóloga de crianças e adolescentes, chorou emocionada ao ouvir pelo rádio a entrevista que o estudante Vítor Soares Cunha deu ao sair do hospital, depois de ser agredido covardemente por jovens como ele. Vítor, 21, aluno de desenho industrial, passeava com um colega na Ilha do Governador, no Rio, quando viu cinco rapazes bem alimentados espancando um mendigo. Filho de um assistente social, não pensou duas vezes ao tentar impedi-los. A violência irracional voltou-se contra ele. Foram socos e pontapés violentos e ininterruptos, atingindo, sobretudo, a cabeça e rosto de Vítor, mesmo quando ele já estava caído no chão, totalmente indefeso. Depois de horas de cirurgias, placas de titânio na testa e no céu da boca, 63 pinos para recompor os ossos da face e ainda com o risco de perder os movimentos do olho esquerdo, Vítor saiu com sua mãe do hospital e disse, com uma simplicidade atordoante, que não se sentia heroico e que faria tudo novamente.[2]

 

Quem confessa Jesus de Nazaré como um dos caminhos para construir o reino de Deus é chamado a segui-lo nas atividades cotidianas, sendo solidário com os mais desprezados e rejeitados pelos poderes do mundo, seduzidos pela ambição das riquezas e honras que promovem a morte. Pois o reino de Deus se constrói nos movimentos de solidariedade entre as pessoas no dia a dia da vida: conscientizar e promover a dignidade humana; defender a vida e a natureza. A jornalista termina seu relato com esta reflexão: “A comparação entre Vítor e seus agressores nos faz refletir. O Brasil e o mundo serão muito melhores quando pais e escolas educarem as crianças não para se arvorarem fortes e machos ao trucidar um ser humano – ou um animal – jogado na rua, no abandono e na dor”.

* Pertence à Congregação do Verbo Divino, é doutor em Teologia Bíblica. Há vários anos atua no Centro Bíblico Verbo como diretor e assessor. É professor no Itesp – Instituto de Teologia São Paulo – e membro da equipe bíblica da CRB Nacional, colaborando também na assessoria de cursos populares em várias regiões do Brasil e da América Latina. E-mailcbiblicoverbo@uol.com.br

 

 



[1] As referências bibliográficas completas encontram-se ao final do último artigo, “Jesus de Nazaré, crucificado e ressuscitado”.

[2] CANTANHEDE, Eliane. Pequenas grandes coisas. Folha de S. Paulo, São Paulo, 12 fev. 2012. Opinião, A2.

 

Pe. Shigeyuki Nakanose, svd

 

https://www.vidapastoral.com.br/ano/2012/quem-dizem-os-homens-que-eu-sou-uma-leitura-de-marcos-827-38/

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