XIII- SER CATÓLICOS HOJE
Por Thomas Halik
Luisa Rabolini(Tradutora)
O que significa "católico"
hoje? Para responder, devemos primeiro nos perguntar: o que queremos dizer com
"hoje"? “Hoje”, isto é, o tempo do cristianismo dividido.
A divisão não diz respeito principalmente à separação entre as Igrejas,
mas dentro delas. Hoje, ou seja, um tempo em que a credibilidade da Igreja está
passando por uma das maiores crises.
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Os escândalos de abuso sexual, psicológico e
eclesiástico recentemente descobertos desempenham em nosso tempo um papel
semelhante ao das indulgências que provocaram a Reforma - Tomáš Halík
Os escândalos de abuso sexual, psicológico e eclesiástico recentemente descobertos desempenham em
nosso tempo um papel semelhante ao das indulgências que provocaram a Reforma.
O que inicialmente parecia um fenômeno marginal mostra hoje - como então -
problemas muito mais profundos, ou seja, as disfunções do sistema:
as relações entre Igreja e poder, clero e leigos e muitos
outros. A situação da Igreja Católica hoje é muito
semelhante àquela de pouco antes da Reforma.
“Hoje”, isto é, num momento em
que a Igreja se depara com uma grande tarefa: a passagem da
forma atual à futura, rumo ao caminho sinodal. O caminho sinodal não é apenas um caminho rumo
à reforma, mas um caminho de reforma. Aqui
também o caminho coincide com o destino. Os cristãos de hoje, como no início da sua
história, devem ser "pessoas em caminho".
Jesus disse de si mesmo: eu sou o
caminho. A existência cristã é um seguimento, isto é, um movimento. Pelos
tortuosos caminhos do mundo de hoje procuramos os passos de Jesus,
na polifonia do nosso tempo a voz de Jesus. Precisamos da arte
do discernimento espiritual.
Contra
uma ideologização do cristianismo
Todos nós cristãos acreditamos em
uma Igreja una, santa, apostólica e universal.
O que significa "católico"? É uma das notas características
da Igreja. Uma comunidade de crentes que deixasse de tender para
a catolicidade, para a abertura universal, perderia sua identidade
e autenticidade cristãs.
Uma comunidade de crentes que deixasse de tender
para a catolicidade, para a abertura universal, perderia sua identidade e
autenticidade cristãs - Tomáš Halík
Entre unidade, santidade, apostolicidade e catolicidade há
uma conexão interna e uma interpenetração, uma pericorese. O
enfraquecimento de um desses quatro pilares da identidade da Igreja significa
o enfraquecimento dos demais.
Unidade: unidade orgânica na
diversidade. Santidade: consagração a Deus e
pertença a Deus Apostolicidade: fidelidade à missão e
à Tradição apostólica. E Catolicidade: universalidade, visão
de conjunto, abertura: essas são as principais características
da Igreja.
São carismas que a Igreja recebeu
do Senhor da história e da Igreja como dom e
tarefa para o seu caminho na história. São carismas, sementes de graça que,
para crescer, precisam de um solo favorável. São - juntamente com outros
carismas importantes - sementes da vida de Deus; neles e por meio
deles atua e cresce a dynamis de Deus, o movimento do
Espírito vivificante de Deus, que molda, une, guia, cura e
transforma a comunidade dos crentes.
Esse movimento de crescimento e
amadurecimento ocorre na história e visa a culminação escatológica do
processo histórico. Somente nesse ponto ômega, no eschaton,
aparecerão em toda a sua plenitude a unidade, a santidade,
a apostolicidade e catolicidade da Igreja.
No cerne da história, a Igreja é communio
viatorum, um povo em caminho, que ainda não chegou ao seu destino. O
desenvolvimento da Igreja não é uma via de mão única, a teologia cristã da história difere das escatologias intramundanas.
Compreender e descrever plenamente o "futuro
absoluto", a meta escatológica da história está além de nossas capacidades
- Tomáš Halík
Nossa experiência em relação
àqueles que prometeram o paraíso na terra e fizeram da terra um inferno nos
obriga a manter uma distância crítica em relação às ideologias e às utopias
políticas. É tarefa profética da Igreja relativizar toda forma
de idolatria, de relativizar a absolutização do
que é relativo.
Para tomar as distâncias da escatologia intramundana das
ideologias seculares e das promessas do paraíso na terra, precisamos de uma
certa "escatologia negativa", análoga à
"teologia negativa". Compreender e descrever plenamente o "futuro absoluto",
a meta escatológica da história está além de nossas
capacidades.
Portanto, nenhuma situação
da sociedade e do Estado, nenhuma forma de Igreja,
nenhuma forma de nosso conhecimento teológico pode ser considerada perfeita e
definitiva, como o fim da história; em nenhum momento da nossa jornada podemos
dizer: Pare, você é tão lindo! A Igreja tem a obrigação de
exercer esse serviço profético de "dessacralização" não apenas em
relação às ideologias seculares como o comunismo ou o nacionalismo,
mas também contra as tentativas de ideologizar o cristianismo e assim
desfigurar a sua vida.
Precisamos de uma "distinção
escatológica": uma distinção constante entre a ecclesia
militans, a Igreja aqui na terra, e a ecclesia
triunfal, a Igreja glorificada no céu. Se a ecclesia
militans terrestre começa a se considerar como ecclesia
triunfal, como a forma perfeita da Igreja, comete o pecado
do triunfalismo.
Uma das manifestações do triunfalismo é o
clericalismo: aqueles que estavam destinados ao humilde serviço da comunidade
tornam-se uma "classe dominante" - Tomáš Halík
Se a ecclesia militans,
a Igreja militante, deixa de lutar contra a tentação
do triunfalismo, torna-se um instrumento da religião militante;
luta contra os outros e os não-conformistas presentes em suas fileiras. Algo
semelhante aconteceu no Islã com o conceito de jihad.
Uma das manifestações do triunfalismo é o clericalismo:
aqueles que estavam destinados ao humilde serviço da comunidade tornam-se uma
"classe dominante", um governo sagrado (hierarquia) que reivindica
o monopólio da verdade.
Especialmente nos nossos dias nos
encontramos diante das consequências do abuso de poder e de autoridade na Igreja.
O Papa Francisco corretamente diagnosticou o clericalismo como uma
das principais causas dos crimes de abuso, um clima de relações doentias em que
coisas desse tipo eram possíveis. Nossa eclesiologia, a autocompreensão da Igreja,
precisa do princípio da "kenosis", do
dom de si; o caminho sinodal deve ser um caminho
de humildade curadora.
Como já foi dito, o caminho
da Igreja através da história não é uma via de mão única, mas
um drama de luta contínua entre graça e pecado. O drama da Páscoa continua
na história da Igreja. Compartilhamos não apenas a luz da manhã de
Páscoa, mas também as trevas do Getsêmani e do Calvário.
Na vida da Igreja, nas suas crises e sofrimentos, nas suas feridas,
continua também o sofrimento de Cristo, é uma passio
contínua. Não só no caminho espiritual de cada crente, mas também na
história da Igreja há sempre "noites escuras de fé".
Nossa eclesiologia,
a autocompreensão da Igreja, precisa do princípio da
"kenosis", do dom de si; o caminho sinodal deve ser um
caminho de humildade curadora - Tomáš Halík
Nas noites escuras coletivas da
história do mundo e da Igreja, precisamos da paciência da esperança
para vencer a tentação do desespero, esta "doença que conduz à
morte". Muitas coisas - incluindo muitas formas de Igreja e
formas imaturas de fé - devem morrer. A ressurreição não é um
retorno ao que era antes, mas uma mudança radical. O Cristo ressuscitado
se aproxima de seus amigos como um peregrino desconhecido.
Não só os sacramentos e os
sermões da Igreja, mas também e sobretudo as expressões quotidianas
da fé, esperança e caridade dos fiéis constituem o espaço da ressurreição em
que se realiza a resurrectio contínua. Do mesmo modo são lugares de
teofania: Deus está presente no mundo na fé, na esperança e no
amor dos crentes. Eles também exprimem o caráter sacramental da Igreja,
também eles fazem parte da liturgia em sentido mais amplo, também eles são o
lugar onde Cristo ressuscitado vive e atua.
O que significa a catolicidade da
Igreja? É a sua abertura à vinda do Cristo ressuscitado,
desconhecido, surpreendente. O Cristo ressuscitado é semper maior,
sempre maior do que imaginamos até agora. Entre pelas portas fechadas dos
nossos medos, das nossas ideias estreitas, das definições dogmáticas, dos conceitos
e das categorias.
Catolicismo hoje significa universalidade e
ecumenismo em um sentido mais amplo e profundo - Tomáš Halík
Catolicismo hoje significa
universalidade e ecumenismo em um sentido mais amplo e profundo. O convite
do Concílio Vaticano II ao diálogo ecumênico com as outras Igrejas cristãs,
com os crentes de outras religiões e com os defensores do humanismo ateu foi o
primeiro passo neste caminho. Contribuiu para libertar a catolicidade da
Igreja do beco sem saída do "catolicismo", do
particularismo confessional, da redução a uma das "visões de mundo".
Para esta deformação da Igreja contribuiu
a sua estratégia defensiva e apologética após os dois grandes cismas, a
estratégia de defesa contra o protestantismo e depois a defesa
contra a cultura moderna na sequência da cisão entre a teologia
neoescolástica e o pensamento científico, filosófico e político do XIX
século.
A Igreja
deve distanciar-se de um catolicismo de guerras culturais
No caminho sinodal rumo
a uma catolicidade credível, devemos libertar-nos de
"um catolicismo" entendido como uma contracultura convulsiva e
um instrumento de guerras culturais. Além disso, a Igreja deve
resistir constantemente à tentação do narcisismo coletivo,
do egoísmo e da autorreferencialidade.
Deveríamos estender o princípio
da sinodalidade, o caminho da busca empreendido junto às nossas
relações com as pessoas de outras religiões e com quem é sem credo religioso.
Para o cristianismo, essa autotranscendência não é uma perda
de identidade, mas o cumprimento do mistério central do cristianismo, da mudança pascal.
Em vez de fazer proselitismo,
deveríamos cultivar uma cultura de acompanhamento e diálogo,
na qual poder compreender não apenas a fé dos outros, mas também a nossa de uma
maneira nova. A religião de amanhã deveria ser uma re-legere,
uma releitura, uma nova leitura, um novo repensamento,
uma nova hermenêutica.
Catolicismo ecumênico hoje significa a coragem da
autotranscendência da Igreja, a autotranscendência do cristianismo - Tomáš
Halík
Catolicismo ecumênico hoje
significa a coragem da autotranscendência da Igreja,
a autotranscendência do cristianismo. Esta autotranscendência -
superação das próprias fronteiras institucionais e mentais em relação aos
outros - não é uma perda da identidade do cristianismo, mas sim uma
implementação do mistério central do cristianismo, a mudança pascal.
Na véspera de sua eleição como
pontífice, o cardeal Jorge Mario Bergoglio citou as palavras de Jesus:
"Estou à porta e bato"; mas acrescentou que hoje Jesus bate
de dentro da Igreja e quer sair, em especial em direção a
todos os pobres, os marginalizados e os feridos do nosso
mundo, e nós
devemos segui-lo. Mas devemos também nos aproximar de todos aqueles que estão
em uma busca espiritual, não como possuidores de toda a verdade, mas como
aqueles que desejam caminhar junto com eles no respeito mútuo.
Um passo importante no caminho
da catolicidade ecumênica foi a decisão do Concílio Vaticano II de
utilizar o conceito de “subsistit in” para indicar a relação
entre a Igreja de Cristo em sua plenitude escatológica e
a Igreja Católica em seu caminho na história.
Segundo o Cardeal Walter Kasper, isso implica duas garantias importantes.
Primeiro: nesta Igreja Católica experimentável,
existente aqui e agora, subsiste a Igreja de Cristo,
aquela misteriosa Esposa de Cristo, cuja glória plena e
beleza só se revelarão no horizonte escatológico da
eternidade.
Segundo: que esta Igreja Católica Romana não
"ocupa todo o espaço" da Igreja de Cristo, de
forma que há um lugar legítimo para as outras Igrejas cristãs
e para os carismas que Deus gratuitamente doa para além dos
confins visíveis da Igreja.
Ainda há espaço para a livre efusão do Espírito que
gradualmente guia os discípulos de Cristo à plenitude da verdade até o fim da
história - Tomáš Halík
Da mesma forma, talvez se poderia
dizer que a verdade, que é o próprio Deus, existe na doutrina
do Magistério, sem contudo esgotar em nenhum momento da história a
plenitude do mistério de Deus. A afirmação de que a doutrina
oficial da Igreja apresenta a revelação de Deus de
modo autêntico e em medida suficiente para a salvação e que nenhuma outra
revelação é para ser esperada, certamente não significa que a Igreja pronuncie
uma proibição de uma ação ulterior do Espírito Santo.
Ainda há espaço para a livre
efusão do Espírito que gradualmente guia os discípulos
de Cristo à plenitude da verdade até o fim da história. A
questão, porém, é que a abertura a novos dons do Espírito não
significa perder de maneira desagradável e frívola o respeito pela importância
e irrevogabilidade do tesouro dos dons anteriores do mesmo Espírito; Jesus elogiou
a sabedoria do dono de casa que tira coisas novas e velhas do seu tesouro.
Também na fé de um único cristão
ou naquela de um de um determinado grupo de cristãos (por exemplo, uma escola
teológica) vive a fé toda a Igreja, a plenitude do ensinamento
cristão; mas a fé e o conhecimento de um único cristão ou de um determinado
grupo de cristãos têm sempre os seus limites humanos (históricos, culturais,
linguísticos e psicológicos) que o tornam incapaz de compreender toda a fé
da Igreja na sua plenitude. Por essa razão, também os crentes
individualmente e as escolas de fé e espiritualidade individuais precisam da Igreja em
seu conjunto e, naturalmente, de seu Magistério, para se completar
e eventualmente se corrigir.
O crente individual participa da
fé da Igreja na medida em que suas limitadas capacidades
pessoais lhe permitem encarnar o tesouro da fé em sua compreensão, em seu
pensamento e em sua ação. Já São Tomás de
Aquino ensinava a respeito da fé implícita que nenhum crente pode
compreender tudo o que a Igreja crê, mas que apenas uma
parte dela é "explicitamente" compreendida e acolhida.
Aquele que acredita possui uma
“participação implícita” no que está além de sua compreensão e conhecimento
através do ato de confiança em Deus e em sua revelação e,
naturalmente, também na Igreja que apresenta tal revelação.
Esta consciência deveria levar à humildade e ao reconhecimento da necessidade
da comunicação e do diálogo na Igreja.
Além disso, a fé cristã nunca
preenche completamente (provavelmente nem mesmo nos santos e místicos) todo o
espaço da alma humana, a parte consciente e inconsciente da psique. Nesse
sentido, entendo a afirmação do Cardeal Jean Daniélou de que "um cristão é sempre parcialmente
um pagão batizado".
Certamente, o batismo tem
o caráter de sinal indelével (signum indelible) e de participação real
no corpo místico de Cristo, mas a graça do batismo opera
dinamicamente no homem e lhe confere um crescimento e um amadurecimento na fé,
na medida em que o homem abre a ela o espaço de sua liberdade em todos os
níveis de sua existência. Se a fé da Igreja subsiste (subsistit
in) na vida espiritual do crente, a ciência religiosa recebida não
preenche, no entanto, todo o espaço de sua vida espiritual e assim permanece em
seu espírito e em seu coração um lugar legítimo de investigação sobre
questionamentos críticos e de dúvidas sinceras.
É saudável que ele se pergunte
humildemente se o seu caminho de fé é autêntico, se é fiel à
tradição, mas também como Deus o guia em sua consciência.
Portanto, o destinatário final de seus questionamentos não pode ser apenas a
autoridade eclesiástica, mas o próprio Deus, presente no santuário
de sua consciência, Deus que lhe fala não só nos ensinamentos
da Igreja, mas também nos sinais dos tempos e na os eventos de sua
própria vida.
O dom da fé, quer lhe seja
transmitido pela educação ou pela influência do ambiente, ou obtido como
resultado de uma busca pessoal, é sempre um dom incomensuravelmente precioso da
graça de Deus, mas igualmente preciosa é aquela "inquietude do
coração humano” de que fala Santo Agostinho. Essa
inquietude não permite se acomodar em uma determinada forma de fé aceita ou
alcançada, mas é sempre busca e desejo de ir além. Também os questionamos
críticos, as dúvidas e as crises de fé podem propiciar impulsos valiosos nesse
caminho.
O diálogo da fé da Igreja com esta "fé
intuitiva" de pessoas distantes da Igreja pode ser útil para ambas as
partes - Tomáš Halík
Também eles podem ser
considerados como um dom de Deus, como uma "graça
adjuvante". O Espírito de Deus não só ilumina
a razão do homem, mas também atua como uma "intuição" nas profundezas
de seu inconsciente e essa consciência é preciosa para refletir sobre a
"fé dos não crentes"; mesmo as pessoas que não foram alcançadas pela
anunciação da Igreja, ou não a receberam de forma tal a poder
aceitá-la honestamente podem ter uma certa intuição da fé. O diálogo da fé
da Igreja com esta "fé intuitiva" de pessoas
distantes da Igreja pode ser útil para ambas as partes.
Não se
deter nas formas habituais
"Deus é maior do
que os nossos corações", afirma São Paulo. Mas
"nosso coração" é maior do que nossa razão, nossas "convicções
religiosas", nossos atos de fé conscientes e refletidos, nossas
"profissões de fé" sabem de Deus. Na tradição
agostiniana, Blaise Pascal conhecia em especial aquela "razão do coração" (raison),
da qual a razão ("razão pura") nada sabe. Mas
devemos ter cuidado para não limitar o conceito bíblico, agostiniano e
pascaliano do coração apenas à "emotividade".
C.G. Jung afirmava que o componente
consciente e racional de nossa psique é como uma minúscula parte de um iceberg
que emerge do mar; a parte maior e mais importante está no inconsciente, não
apenas pessoal, mas também no "inconsciente coletivo". É aí que
nascem as ideias, as inspirações, as razões ocultas de nossas ações.
Quando Deus, que é "maior do que o nosso
coração", entra na nossa vida, estende ao infinito a profundidade e a
abertura do nosso ser, que chamamos simbolicamente de coração - Tomáš Halík
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