XIV-SANTO AGOSTINHO E SUAS RELAÇÕES ENTRE A FÉ E A RAZÃO
Suas
concepções sobre as relações entre a fé e a razão, entre a Igreja e o Estado,
dominaram toda a Idade Média.
Santo
Agostinho, conhecido também como Agostinho de Hipona, nasceu em Tagaste, na
cidade da Numídia (hoje Argélia), no norte da África, região dominada pelo
Império Romano, no dia 13 de novembro de 354. Sua infância e adolescência
transcorreram principalmente em sua cidade natal, em um ambiente limitado por
um povoado perdido entre montanhas. Seu pai era pagão e sua mãe uma cristã
devota que exerceu grande influência sobre a conversão do filho.
Aurélio
Agostinho destaca-se entre os Padres como Tomás de Aquino se destaca entre os
Escolásticos. E como Tomás de Aquino se inspira na filosofia de Aristóteles, e
será o maior vulto da filosofia metafísica cristã, Agostinho inspira-se em
Platão, ou melhor, no neoplatonismo. Agostinho, pela profundidade do seu sentir
e pelo seu gênio compreensivo, fundiu em si mesmo o caráter especulativo da
patrística grega com o caráter prático da patrística latina, ainda que os
problemas que fundamentalmente o preocupam sejam sempre os problemas práticos e
morais: o mal, a liberdade, a graça, a predestinação.
Aurélio
Agostinho nasceu em Tagasta, cidade da Numídia, de uma família burguesa, a 13
de novembro do ano 354. Seu pai, Patrício, era pagão, recebido o batismo pouco
antes de morrer; sua mãe, Mônica, pelo contrário, era uma cristã fervorosa, e
exercia sobre o filho uma notável influência religiosa. Indo para Cartago, a
fim de aperfeiçoar seus estudos, começados na pátria, desviou-se moralmente.
Caiu em uma profunda sensualidade, que, segundo ele, é uma das maiores
conseqüências do pecado original; dominou-o longamente, moral e
intelectualmente, fazendo com que aderisse ao maniqueísmo, que atribuía
realidade substancial tanto ao bem como ao mal, julgando achar neste dualismo
maniqueu a solução do problema do mal e, por conseqüência, uma justificação da
sua vida. Tendo terminado os estudos, abriu uma escola em Cartago, donde partiu
para Roma e, em seguida, para Milão. Afastou-se definitivamente do ensino em
386, aos trinta e dois anos, por razões de saúde e, mais ainda, por razões de
ordem espiritual.
Entrementes
– depois de maduro exame crítico – abandonara o maniqueísmo, abraçando a
filosofia neoplatônica que lhe ensinou a espiritualidade de Deus e a
negatividade do mal. Destarte chegara a uma concepção cristã da vida – no
começo do ano 386. Entretanto a conversão moral demorou ainda, por razões de
luxúria. Finalmente, como por uma fulguração do céu, sobreveio a conversão
moral e absoluta, no mês de setembro do ano 386. Agostinho renuncia
inteiramente ao mundo, à carreira, ao matrimônio; retira-se, durante alguns
meses, para a solidão e o recolhimento, em companhia da mãe, do filho e dalguns
discípulos, perto de Milão. Aí escreveu seus diálogos filosóficos, e, na Páscoa
do ano 387, juntamente com o filho Adeodato e o amigo Alípio, recebeu o batismo
em Milão das mãos de Santo Ambrósio, cuja doutrina e eloqüência muito
contribuíram para a sua conversão. Tinha trinta e três anos de idade.
Depois
da conversão, Agostinho abandona Milão, e, falecida a mãe em Óstia, volta para
Tagasta. Aí vendeu todos os haveres e, distribuído o dinheiro entre os pobres,
funda um mosteiro numa das suas propriedades alienadas. Ordenado padre em 391,
e consagrado bispo em 395, governou a igreja de Hipona até à morte, que se deu
durante o assédio da cidade pelos vândalos, a 28 de agosto do ano 430. Tinha
setenta e cinco anos de idade.
Após
a sua conversão, Agostinho dedicou-se inteiramente ao estudo da Sagrada
Escritura, da teologia revelada, e à redação de suas obras, entre as quais têm
lugar de destaque as filosóficas. As obras de Agostinho que apresentam
interesse filosófico são, sobretudo, os diálogos filosóficos: Contra os
acadêmicos, Da vida beata, Os solilóquios, Sobre a imortalidade da alma, Sobre
a quantidade da alma, Sobre o mestre, Sobre a música . Interessam também à
filosofia os escritos contra os maniqueus: Sobre os costumes, Do livre
arbítrio, Sobre as duas almas, Da natureza do bem .
Dada,
porém, a mentalidade agostiniana, em que a filosofia e a teologia andam juntas,
compreende-se que interessam à filosofia também as obras teológicas e
religiosas, especialmente: Da Verdadeira Religião, As Confissões, A Cidade de
Deus, Da Trindade, Da Mentira.
O Pensamento: A Gnosiologia
Agostinho
considera a filosofia praticamente, platonicamente, como solucionadora do
problema da vida, ao qual só o cristianismo pode dar uma solução integral. Todo
o seu interesse central está portanto, circunscrito aos problemas de Deus e da
alma, visto serem os mais importantes e os mais imediatos para a solução
integral do problema da vida.
O
problema gnosiológico é profundamente sentido por Agostinho, que o resolve,
superando o ceticismo acadêmico mediante o iluminismo platônico. Inicialmente,
ele conquista uma certeza: a certeza da própria existência espiritual; daí tira
uma verdade superior, imutável, condição e origem de toda verdade particular.
Embora desvalorizando, platonicamente, o conhecimento sensível em relação ao
conhecimento intelectual, admite Agostinho que os sentidos, como o intelecto,
são fontes de conhecimento. E como para a visão sensível além do olho e da
coisa, é necessária a luz física, do mesmo modo, para o conhecimento
intelectual, seria necessária uma luz espiritual. Esta vem de Deus, é a Verdade
de Deus, o Verbo de Deus, para o qual são transferidas as idéias platônicas.
No
Verbo de Deus existem as verdades eternas, as idéias, as espécies, os
princípios formais das coisas, e são os modelos dos seres criados; e conhecemos
as verdades eternas e as idéias das coisas reais por meio da luz intelectual a
nós participada pelo Verbo de Deus. Como se vê, é a transformação do inatismo,
da reminiscência platônica, em sentido teísta e cristão. Permanece, porém, a
característica fundamental, que distingue a gnosiologia platônica da
aristotélica e tomista, pois, segundo a gnosiologia platônica-agostiniana, não
bastam, para que se realize o conhecimento intelectual humano, as forças
naturais do espírito, mas é mister uma particular e direta iluminação de Deus.
A Metafísica
Em
relação com esta gnosiologia, e dependente dela, a existência de Deus é
provada, fundamentalmente, a priori , enquanto no espírito humano haveria uma
presença particular de Deus. Ao lado desta prova a priori , não nega Agostinho
as provas a posteriori da existência de Deus, em especial a que se afirma sobre
a mudança e a imperfeição de todas as coisas. Quanto à natureza de Deus,
Agostinho possui uma noção exata, ortodoxa, cristã: Deus é poder racional
infinito, eterno, imutável, simples, espírito, pessoa, consciência, o que era excluído
pelo platonismo. Deus é ainda ser, saber, amor. Quanto, enfim, às relações com
o mundo, Deus é concebido exatamente como livre criador.
No
pensamento clássico grego, tínhamos um dualismo metafísico; no pensamento
cristão – agostiniano – temos ainda um dualismo, porém moral, pelo pecado dos
espíritos livres, insurgidos orgulhosamente contra Deus e, portanto, preferindo
o mundo a Deus. No cristianismo, o mal é, metafisicamente, negação, privação;
moralmente, porém, tem uma realidade na vontade má, aberrante de Deus. O
problema que Agostinho tratou, em especial, é o das relações entre Deus e o
tempo. Deus não é no tempo, o qual é uma criatura de Deus: o tempo começa com a
criação. Antes da criação não há tempo, dependendo o tempo da existência de
coisas que vem-a-ser e são, portanto, criadas.
Também
a psicologia agostiniana harmonizou-se com o seu platonismo cristão. Por certo,
o corpo não é mau por natureza, porquanto a matéria não pode ser essencialmente
má, sendo criada por Deus, que fez boas todas as coisas. Mas a união do corpo
com a alma é, de certo modo, extrínseca, acidental: alma e corpo não formam
aquela unidade metafísica, substancial, como na concepção aristotélico-tomista,
em virtude da doutrina da forma e da matéria. A alma nasce com o indivíduo
humano e, absolutamente, é uma específica criatura divina, como todas as
demais. Entretanto, Agostinho fica indeciso entre o criacionismo e o
traducionismo, isto é, se a alma é criada diretamente por Deus, ou provém da
alma dos pais. Certo é que a alma é imortal, pela sua simplicidade. Agostinho,
pois, distingue, platonicamente, a alma em vegetativa, sensitiva e intelectiva,
mas afirma que elas são fundidas em uma substância humana. A inteligência é
divina em intelecto intuitivo e razão discursiva; e é atribuída a primazia à
vontade. No homem a vontade é amor, no animal é instinto, nos seres inferiores
cego apetite.
Quanto
à cosmologia, pouco temos a dizer. Como já mais acima se salientou, a natureza
não entra nos interesses filosóficos de Agostinho, preso pelos problemas
éticos, religiosos, Deus e a alma. Mencionaremos a sua famosa doutrina dos
germes específicos dos seres – rationes seminales . Deus, a princípio, criou
alguns seres já completamente realizados; de outros criou as causas que, mais
tarde, desenvolvendo-se, deram origem às existências dos seres específicos.
Esta concepção nada tem que ver com o moderno evolucionismo , como alguns
erroneamente pensaram, porquanto Agostinho admite a imutabilidade das espécies,
negada pelo moderno evolucionismo.
A Moral
Evidentemente,
a moral agostiniana é teísta e cristã e, logo, transcendente e ascética. Nota
característica da sua moral é o voluntarismo, a saber, a primazia do prático,
da ação – própria do pensamento latino – , contrariamente ao primado do teorético,
do conhecimento – próprio do pensamento grego. A vontade não é determinada pelo
intelecto, mas precede-o. Não obstante, Agostinho tem também atitudes
teoréticas como, por exemplo, quando afirma que Deus, fim último das criaturas,
é possuído por um ato de inteligência. A virtude não é uma ordem de razão,
hábito conforme à razão, como dizia Aristóteles, mas uma ordem do amor.
Entretanto
a vontade é livre, e pode querer o mal, pois é um ser limitado, podendo agir
desordenadamente, imoralmente, contra a vontade de Deus. E deve-se considerar
não causa eficiente, mas deficiente da sua ação viciosa, porquanto o mal não
tem realidade metafísica. O pecado, pois, tem em si mesmo imanente a pena da
sua desordem, porquanto a criatura, não podendo lesar a Deus, prejudica a si
mesma, determinando a dilaceração da sua natureza. A fórmula agostiniana em
torno da liberdade em Adão – antes do pecado original – é: poder não pecar ;
depois do pecado original é: não poder não pecar ; nos bem-aventurados será:
não poder pecar . A vontade humana, portanto, já é impotente sem a graça. O
problema da graça – que tanto preocupa Agostinho – tem, além de um interesse
teológico, também um interesse filosófico, porquanto se trata de conciliar a
causalidade absoluta de Deus com o livre arbítrio do homem. Como é sabido,
Agostinho, para salvar o primeiro elemento, tende a descurar o segundo.
Quanto
à família , Agostinho, como Paulo apóstolo, considera o celibato superior ao
matrimônio; se o mundo terminasse por causa do celibato, ele alegrar-se-ia,
como da passagem do tempo para a eternidade. Quanto à política , ele tem uma
concepção negativa da função estatal; se não houvesse pecado e os homens fossem
todos justos, o Estado seria inútil. Consoante Agostinho, a propriedade seria
de direito positivo, e não natural. Nem a escravidão é de direito natural, mas
conseqüência do pecado original, que perturbou a natureza humana, individual e
social. Ela não pode ser superada naturalmente, racionalmente, porquanto a
natureza humana já é corrompida; pode ser superada sobrenaturalmente,
asceticamente, mediante a conformação cristã de quem é escravo e a caridade de
quem é amo.
O Mal
Agostinho
foi profundamente impressionado pelo problema do mal – de que dá uma vasta e
viva fenomenologia. Foi também longamente desviado pela solução dualista dos
maniqueus, que lhe impediu o conhecimento do justo conceito de Deus e da
possibilidade da vida moral. A solução deste problema por ele achada foi a sua
libertação e a sua grande descoberta filosófico-teológica, e marca uma
diferença fundamental entre o pensamento grego e o pensamento cristão.
Antes
de tudo, nega a realidade metafísica do mal. O mal não é ser, mas privação de
ser, como a obscuridade é ausência de luz. Tal privação é imprescindível em
todo ser que não seja Deus, enquanto criado, limitado. Destarte é explicado o
assim chamado mal metafísico , que não é verdadeiro mal, porquanto não tira aos
seres o lhes é devido por natureza.
Quanto
ao mal físico , que atinge também a perfeição natural dos seres, Agostinho
procura justificá-lo mediante um velho argumento, digamos assim, estético: o
contraste dos seres contribuiria para a harmonia do conjunto. Mas é esta a
parte menos afortunada da doutrina agostiniana do mal.
Quanto
ao mal moral, finalmente existe realmente a má vontade que livremente faz o
mal; ela, porém, não é causa eficiente, mas deficiente, sendo o mal não-ser.
Este não-ser pode unicamente provir do homem, livre e limitado, e não de Deus,
que é puro ser e produz unicamente o ser. O mal moral entrou no mundo humano
pelo pecado original e atual; por isso, a humanidade foi punida com o
sofrimento, físico e moral, além de o ter sido com a perda dos dons gratuitos
de Deus. Como se vê, o mal físico tem, deste modo, uma outra explicação mais
profunda.
Remediou
este mal moral a redenção de Cristo, Homem-Deus, que restituiu à humanidade os
dons sobrenaturais e a possibilidade do bem moral; mas deixou permanecer o
sofrimento, conseqüência do pecado, como meio de purificação e expiação. E a
explicação última de tudo isso – do mal moral e de suas conseqüências – estaria
no fato de que é mais glorioso para Deus tirar o bem do mal, do que não
permitir o mal. Resumindo a doutrina agostiniana a respeito do mal, diremos: o
mal é, fundamentalmente, privação de bem (de ser); este bem pode ser não devido
(mal metafísico) ou devido (mal físico e moral) a uma determinada natureza; se
o bem é devido nasce o verdadeiro problema do mal; a solução deste problema é
estética para o mal físico, moral (pecado original e Redenção) para o mal moral
(e físico).
A História
Como
é notório, Agostinho trata do problema da história na Cidade de Deus , e
resolve-o ainda com os conceitos de criação, de pecado original e de Redenção.
A Cidade de Deus representa, talvez, o maior monumento da antigüidade cristã e,
certamente, a obra prima de Agostinho. Nesta obra é contida a metafísica
original do cristianismo, que é uma visão orgânica e inteligível da história
humana. O conceito de criação é indispensável para o conceito de providência,
que é o governo divino do mundo; este conceito de providência é, por sua vez,
necessário, a fim de que a história seja suscetível de racionalidade. O
conceito de providência era impossível no pensamento clássico, por causa do
basilar dualismo metafísico. Entretanto, para entender realmente, plenamente, o
plano da história, é mister a Redenção, graças aos quais é explicado o enigma
da existência do mal no mundo e a sua função. Cristo tornara-se o centro
sobrenatural da história: o seu reino, a cidade de Deus , é representada pelo
povo de Israel antes da sua vinda sobre a terra, e pela Igreja depois de seu
advento. Contra este cidade se ergue a cidade terrena , mundana, satânica, que
será absolutamente separada e eternamente punida nos fins dos tempos.
Agostinho
distingue em três grandes seções a história antes de Cristo. A primeira
concerne à história das duas cidades , após o pecado original, até que ficaram
confundidas em um único caos humano, e chega até a Abraão, época em que começou
a separação. Na Segunda descreve Agostinho a história da cidade de Deus ,
recolhida e configurada em Israel, de Abraão até Cristo. A terceira retoma, em
separado, a narrativa do ponto em que começa a história da Cidade de Deus
separada, isto é, desde Abraão, para tratar paralela e separadamente da Cidade
do mundo, que culmina no império romano.
Esta
história, pois, fragmentária e dividida, onde parece que Satanás e o mal têm o
seu reino, representa, no fundo, uma unidade e um progresso. É o progresso para
Cristo, sempre mais claramente, conscientemente e divinamente esperado e
profetizado em Israel; e profetizado também, a seu modo, pelos povos pagãos,
que, consciente ou inconscientemente, lhe preparavam diretamente o caminho.
Depois de Cristo cessa a divisão política entre as duas cidades ; elas se
confundem como nos primeiros tempos da humanidade, com a diferença, porém, de
que já não é mais união caótica, mas configurada na unidade da Igreja.
Esta
não é limitada por nenhuma divisão política, mas supera todas as sociedades
políticas na universal unidade dos homens e na unidade dos homens com Deus. A
Igreja, pois, é acessível, invisivelmente, também às almas de boa vontade que,
exteriormente, dela não podem participar. A Igreja transcende, ainda, os
confins do mundo terreno, além do qual está a pátria verdadeira. Entretanto,
visto que todos, predestinados e ímpios, se encontram empiricamente confundidos
na Igreja – ainda que só na unidade dialética das duas cidades , para o triunfo
da Cidade de Deus – a divisão definitiva, eterna, absoluta, justíssima,
realizar-se-á nos fins dos tempos, depois da morte, depois do juízo universal,
no paraíso e no inferno. É uma grande visão unitária da história, não é uma
visão filosófica, mas teológica: é uma teologia, não uma filosofia da história.
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