X- BÍBLIA
ESPIRITUALIDADE EM NOSSOS TEMPOS
Por Pedro A. Ribeiro de Oliveira via Portal das CEBs*
Assumir a espiritualidade como “o eixo que perpassa a totalidade de
nossa existência e no qual se estabelece a síntese de nossas relações com o
mundo, as pessoas, a natureza e com Deus”.
“Espiritualidade é a força interior,
cultivada na oração ou na meditação, que nos mantém vivos”, diz Frei Betto em seu
livro Fé e afeto (Vozes, 2019). Nesses tempos em que a força sufocante do
capitalismo ameaça transferir nossa vida pessoal para o mundo virtual,
precisamos respirar novos ares e oxigenar aquela força interior que nos liga à
Divindade Amorosa, a seus filhos e filhas e à comunidade de vida da Terra.
Novos ares para a espiritualidade é o que nos
oferece Frei Betto em textos que brotaram de sua vivência e foram lapidados com
esmero. Comento aqui alguns desses textos (pp. 96-125) para estimular quem me
lê a buscar nessa mesma fonte o alimento para sua vida interior e para a práxis
político-libertadora. Eles tratam principalmente a espiritualidade cristã,
ou seja, a espiritualidade que animou a vida de Jesus de Nazaré e tem inspirado
seus seguidores e seguidoras ao longo da história.
Frei Betto segue o método dos primeiros
teólogos do cristianismo, que fundamentavam sua teologia na “sistematização de
uma experiência à luz da Palavra. Baseada na meditação sobre a Bíblia.
É sabedoria antes de aparecer como saber racional. Não se ensinava nas escolas,
mas pela vida, pelo testemunho cristão.” Sem desconhecer nem menosprezar outras
linhas de vida espiritual, temos aí proveitosas reflexões teológicas para os
tempos de hoje.
O ponto de partida é assumir a
espiritualidade como “o eixo que perpassa a totalidade de nossa existência e no
qual se estabelece a síntese de nossas relações com o mundo, as pessoas, a
natureza e com Deus”. A dificuldade, minha e de muita gente, é que as antigas
receitas para alimentar esse eixo de vida – retiros, mortificações, orações
recitativas e tantas outras formas rituais – separam o seguimento de Jesus da
participação nas lutas por Justiça,
Paz e Cuidado com a Terra.
Sabemos que a espiritualidade é alimentada pela oração, mas
como se pode manter a vida de oração no meio das turbulências da vida e das
lutas sócio-políticas?
Diante dessa dificuldade, Frei Betto
apresenta diferentes formas de oração e transmite sua experiência nas práticas
meditativa, comunitária e contemplativa. Apresento aqui minha reflexão sobre
cada uma delas com o propósito de ajudar mais gente que quer viver a
espiritualidade político-libertadora, mas tem dificuldades para orar.
Ao escrever sobre a meditação, ensinando maneiras
de evitar a dispersão do espírito e entrar em comunhão com o Mistério, Frei
Betto aponta um caminho fascinante para esse encontro direto e pessoal com Deus
no mais profundo de si mesmo, de maneira que esse encontro tenha consequências
reais para a vida prática. Ele deixa claro que a experiência mística não só não
afasta, mas confirma quem está nas lutas que Jesus assumiria no mundo de hoje.
Devo, porém, confessar que não consigo embarcar nesse caminho espiritual. Já
tentei praticar a meditação, mas minha concentração dura pouco: não consigo
impedir que a atenção se volte para a realidade externa e isso causa um
sentimento de frustração. Não é este meu caminho de vida espiritual… Mas ainda
bem que existem outros caminhos!
Outro caminho, muito importante, é a oração
comunitária, excelente oportunidade de encontro com Cristo, que prometeu estar
onde dois ou mais estivessem reunidos em Seu nome. Nessa forma de oração eu
embarco sem dificuldade e com todo gosto. O problema é que com muita frequência
a liturgia em vigor tende a ritualizar de tal modo a ação do Espírito, que
acaba por encapsulá-lo. A missa dominical, momento privilegiado de congregar a
comunidade cristã, pode perder sua força espiritual quando celebrada por padres
que não favorecem a participação
da comunidade.
Relegada à condição de assistente, ela se
limita a cantar e acompanhar a movimentação do celebrante e seus acólitos junto
ao altar, enquanto aguarda o esperado momento da comunhão. Embora eu procure me
deixar levar pelo entusiasmo da comunidade, que parece sair renovada após cada
celebração, devo dizer que ao terminar certas missas me vem o sentimento de
frustração. Se fosse esse tipo de missa dominical o principal alimento para
minha vida espiritual, certamente ela já teria definhado…
Felizmente, existe mais um caminho, que é
a oração
contemplativa. Vida contemplativa não é algo de uma “elite
espiritual”, separada da massa dos fiéis que deveriam se contentar com a oração
recitativa e suas fórmulas estabelecidas, ensina Frei Betto, que conclui
dizendo que “a contemplação está ao alcance de toda pessoa de fé”. Abandonada a
ideia de que a contemplação exige um espaço de reclusão, como conventos e
mosteiros, ela pode ser feita em qualquer tempo e lugar onde esteja sendo posto
em prática o Evangelho. Por ser esta minha forma preferida para alimentar a
espiritualidade político-libertadora, a leitura veio confirmar essa caminhada
explicando que seu segredo está no modo de fazer a oração contemplativa.
A contemplação consiste em perceber nos
acontecimentos do nosso tempo a presença real de Jesus ressuscitado atuando
junto de nós. Isso supõe dois momentos distintos e complementares. O primeiro é
a contemplação propriamente dita: o dom de perceber a presença de Jesus como
alguém que está no meio de nós. Porque esse momento corre sempre o risco de
subjetivismo – cada pessoa vendo Jesus à sua própria imagem e semelhança – ele
precisa ser contrabalançado pelo segundo momento: de interpelação pela Palavra de Deus. Esse
Jesus que está no meio de nós não é somente uma presença amiga e consoladora:
ele traz uma mensagem que nos interpela e uma missão que nos convoca, e a
Bíblia é a fonte onde a encontramos.
Os textos da liturgia diária –
acessíveis até por internet – que são lidos pela manhã devem retornar ao longo
do dia como interpelação à realidade que está sendo vivida. Isso faz encontrar
Jesus – e, por meio dele, o Pai-Mãe e o Espírito Santo – em qualquer ocasião
em que o Evangelho é colocado em prática. É um encontro prazeroso, mas ao mesmo
tempo interpelador: qual é minha missão nesta situação?
Ao perceber a missão e minha pequenez diante
dela, sou levado a outra forma de oração: pedir a Deus que envie seu Espírito
para me conduzir na missão. Nem sempre me deixo conduzir por ele, mas quando
deixo que Ele atue em mim, consigo realizar coisas que pareciam ser além da
minha capacidade. Acredito ser este um fruto maduro da oração contemplativa. Só
posso agradecer ao Frei
Betto por me/nos ajudar a avançar na espiritualidade político-libertadora.
Ao escrever, me dei conta de que há 60 anos
conheci o Betto num encontro da JEC – Juventude Estudantil Católica – e que aí
nasceu nossa amizade. Bendita amizade!
Por
Pedro A. Ribeiro de Oliveira, membro da Coordenação Nacional – Juiz de Fora MG
– Pentecostes, 2019. Publicado originalmente pelo Portal das CEBs.
https://cebi.org.br/biblia/espiritualidade-em-nossos-tempos/
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