V- REFLEXÃO DOMINICAL I: 25º DOMINGO DO TEMPO COMUM
O
primado do serviço no seguimento de Jesus
Por Francisco Cornélio Freire
Rodrigues*
I.
INTRODUÇÃO GERAL
A liturgia da Palavra deste domingo é marcada pela contraposição
entre duas maneiras de conceber e conduzir a existência humana. A primeira
leitura, tirada do livro da Sabedoria, expõe a oposição entre a maneira de
viver e pensar dos ímpios e a dos justos, funcionando como preparação ao
Evangelho, uma vez que a perseguição ao justo é vista como prefiguração da
paixão de Jesus, o Justo por excelência. A segunda leitura chama a atenção para
o contraste entre a sabedoria terrena e a sabedoria do alto, evidenciando as
consequências práticas de cada uma no dia a dia da comunidade cristã. No
Evangelho, Jesus faz o segundo anúncio da paixão e, em seguida, propõe o
serviço e a humildade como condições para seu discipulado, contrapondo-se à
mentalidade ambiciosa e triunfalista dos discípulos. O salmo confirma a unidade
entre as três leituras e reforça a certeza de que o Senhor permanece do lado
dos justos e humildes, mostrando que vale a pena confiar nele e viver segundo
sua justiça.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1.
I leitura (Sb 2,12.17-20)
O livro da Sabedoria, do qual é tirada a primeira leitura, é
obra de um sábio judeu, exímio conhecedor da cultura grega e das tradições
judaicas, que viveu na cidade de Alexandria do Egito. Foi o último livro do
Antigo Testamento a ser escrito, já no final do século I a.C., quando a cultura
grega exercia grande influência sobre as novas gerações de judeus. Com isso, os
valores e tradições de Israel, como a fé monoteísta, estavam ameaçados, havendo
até perseguição contra quem permanecia fiel. O livro foi escrito, portanto,
para reforçar a fé e encorajar os judeus que se sentiam perseguidos por causa
da fidelidade a Deus. Para garantir prestígio e autoridade à obra, a autoria
foi atribuída a Salomão, expoente máximo da sabedoria de Israel, mediante o
fenômeno literário da pseudonímia.
O texto lido nesta liturgia
pertence à primeira parte do livro (Sb 1-5), precisamente à seção conhecida
como discurso dos ímpios ou injustos (Sb 2,1-20). Nesse discurso, o autor
reproduz a mentalidade dos que se opõem à maneira de viver dos justos. Os
ímpios ou injustos são os pagãos adeptos de escolas filosóficas materialistas,
os governantes corrompidos que, sentindo-se superiores, menosprezavam a fé
monoteísta e os judeus que, atraídos pela cultura grega, tinham abandonado a
fé. Os justos, por sua vez, são os judeus fiéis que vivem de modo coerente com
a fé em Deus, observando os mandamentos.
A maneira de viver da pessoa
justa revela a incoerência de vida dos injustos, tornando-se verdadeira
denúncia (v. 12). Isso porque a genuína fé no Deus de Israel é, acima de tudo,
testemunhal, e não mera abstração teórica. Logo, os justos incomodam porque
vivem em conformidade com a vontade de Deus, como filhos, não compactuando com
nenhum tipo de injustiça, ganância, corrupção e violência. As características
da pessoa justa – confiança em Deus, mansidão, paciência e humildade – são
insuportáveis para os injustos. Como consequência, vem a perseguição com humilhações,
ofensas e tortura até a morte (v. 17-20).
A figura do justo perseguido
prefigura a paixão de Jesus e serve de advertência aos cristãos e cristãs de
todos os tempos: o jeito de viver dos filhos e filhas de Deus é sinônimo de
contestação a todos os sistemas injustos que excluem e matam. E isso gera
perseguição, em vez de prestígio e poder.
2-
II leitura (Tg 3,16-4,3)
A segunda leitura ainda é tirada da carta de Tiago. Embora
agrupado entre as cartas católicas, esse livro quase não possui características
epistolares, aproximando-se mais do estilo dos escritos sapienciais e
proféticos. O trecho lido neste domingo é tipicamente sapiencial; nele o autor
contrapõe os frutos da sabedoria terrena àqueles da sabedoria do alto. A
expressão “sabedoria terrena” não aparece no texto, mas no versículo que o
antecede (3,15); já “sabedoria do alto” aparece explicitamente (3,17), o que
deixa clara a oposição entre as duas. Para cada uma delas compreende-se um
projeto de vida, quer dizer, uma forma de conduzir a existência.
O primeiro sinal da ausência da
sabedoria do alto é a presença de inveja e rivalidade, das quais decorrem
tantas outras desordens e males (3,16), como guerras, brigas e divisões (4,1).
Esses são os frutos da sabedoria terrena. São coisas inadmissíveis na
comunidade cristã; se encontradas, precisam ser eliminadas. Já a sabedoria do
alto se caracteriza por sete qualidades ou virtudes (3,17), o que evoca
perfeição e equilíbrio; quem vive dessa maneira é uma pessoa realizada e
coerente com a vontade de Deus, tornando-se promotora da justiça e da paz
(3,18).
A insistência sobre os frutos
da sabedoria terrena denuncia o quanto ela estava enraizada nas comunidades
destinatárias, comprometendo a relação com Deus e, por consequência, tornando
ineficaz a oração (4,1-3). A verdadeira oração é comunhão com Deus e
conformação à sua vontade. Quem não vive essa comunhão, obviamente, não sabe
pedir, pois não conhece sua vontade.
3-Evangelho
(Mc 9,30-37)
Conforme a divisão clássica da obra de Marcos (1ª parte: cap.
1-8; 2ª parte: cap. 9-16), o Evangelho desta liturgia já pertence à segunda
parte, marcada pelo aprofundamento da catequese de Jesus sobre sua identidade
de Filho de Deus e as exigências que seu seguimento comporta. É um texto também
dividido em duas partes, delimitadas pela dimensão espacial: a primeira (v.
30-32) transcorre no caminho, enquanto o cenário da segunda é a casa (v.
33-37). Na perspectiva de Marcos, caminho e casa são os lugares privilegiados
da experiência cristã. O caminho significa instabilidade, dinamismo, denotando
a natureza missionária da Igreja e a necessidade de estar sempre em saída. A
casa significa a necessidade das relações fraternas e sinceras que devem marcar
a vida da comunidade; é o lugar da acolhida, da compreensão e da vivência do
amor.
A incompreensão de Pedro após o
primeiro anúncio da paixão (Mc 8,31-35) foi um alerta para Jesus: os discípulos
ainda não tinham compreendido quase nada da sua identidade e do seu projeto, o
Reino de Deus. Logo, era necessário estar sozinho com eles, isolados das
multidões, para reforçar o ensinamento (v. 30). É nesse contexto que Jesus faz
o segundo dos três anúncios da paixão (v. 31). Os discípulos não aceitavam um
Messias sofredor, porque esperavam um que fosse poderoso e guerreiro. A
repetição de um ensinamento é sinal da sua importância e, ao mesmo tempo, da
dificuldade de compreensão dos destinatários, como se verificava nos discípulos
(v. 32). Eles não compreendiam nem tinham coragem de perguntar, preferindo,
covardemente, conversar entre si sobre as próprias aspirações. Jesus, todavia,
conhecia-os bem e sabia o que pensavam. Por isso, ao chegar a casa,
perguntou-lhes – apenas por protocolo e como forma de denúncia irônica – o que
tinham discutido (v. 33). A discussão sobre quem é o maior revela ambição e
sede de poder, alimenta rivalidades, coisas incompatíveis com a lógica
igualitária do Reino de Deus. O próprio silêncio deles diante de Jesus denuncia
a incoerência (v. 34).
Para contornar a situação,
Jesus senta e chama os doze para perto de si (v. 35a), gestos que recordam sua
condição de Mestre, o único que poderia reivindicar grandeza naquele grupo. Com
isso, convida os discípulos a renovar a vocação originária, corrompida pelas
pretensões de poder e ambição que estavam alimentando. Assim, ele mostra um
caminho oposto, ensinando que só há um modo de ser o primeiro na comunidade:
fazendo-se o último, sendo o servidor de todos (v. 35b). Jesus deixa claro,
portanto, que o serviço é o primeiro sinal distintivo do seu discipulado.
Trata-se de um serviço motivado pelo amor, desinteressado e universal.
Com o gesto de pegar a criança,
abraçá-la e colocá-la no meio (v. 36-37), Jesus recorda que as pessoas mais
vulneráveis e necessitadas devem ser as primeiras destinatárias da atenção e
dos cuidados dos seus discípulos servidores. Na época, a criança era sinônimo
de incapacidade e inutilidade, tanto na cultura semita quanto na greco-romana.
Jesus, no entanto, vê com outros olhos: a criança é sinal de pequenez, imagem
de todas as pessoas necessitadas, mas também simboliza a capacidade de
aprendizagem, tão necessária para o discipulado. Com esse exemplo concreto, ele
aponta para os discípulos de todos os tempos quem tem prioridade no Reino de
Deus: todas as pessoas vulneráveis e marginalizadas, representadas pela
criança. Acolher essas pessoas é acolher a ele mesmo e ao Pai, que o enviou.
4- PISTAS PARA REFLEXÃO
Relacionar as três leituras, mostrando a coerência temática
entre elas. Recordar a incoerência entre o seguimento de Jesus e as rivalidades
muitas vezes alimentadas na própria comunidade, comprometendo o anúncio e a
eficácia dos serviços pastorais. Questionar a maneira de acolher as crianças e
as demais pessoas vulneráveis na comunidade. Continuar a motivar a vivência do
Mês da Bíblia.
Francisco Cornélio Freire Rodrigues*
*é presbítero da diocese de Mossoró-RN. Possui mestrado em
Teologia Bíblica pela Pontificia Università San Tommaso D’Aquino – Angelicum
(Roma). É licenciado em Filosofia pelo Instituto Salesiano de Filosofia (Insaf),
no Recife, e bacharel em Teologia pelo Ateneo Pontificio Regina Apostolorum
(Roma). É professor de Antigo e Novo Testamentos na Faculdade Católica do Rio
Grande do Norte (Mossoró-RN). E-mail: francornelio@gmail.com
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/25o-domingo-do-tempo-comum-19-de-setembro/
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