XIV SANTO AGOSTINHO E A PALAVRA DE DEUS
O
mês de setembro, para a Igreja do Brasil, é muito especial para todas as
comunidades eclesiais missionárias. Já é uma tradição que este mês seja
lembrado como o “Mês da Bíblia”. Setembro foi escolhido pelos Bispos do Brasil
como o Mês da Bíblia em razão da festa de São Jerônimo, celebrada no dia 30. A
cada ano, um livro é meditado, rezado e estudado, auxiliando cada cristão a se
aproximar da palavra de Deus, “que
é viva, eficaz e mais penetrante que qualquer espada de dois gumes. Penetra até
dividir alma e espírito, articulações e medulas. Julga os pensamentos e as intenções
do coração. Não há criatura que possa ocultar-se diante dela”
(Hebreus 4, 12-13).
Santo
Agostinho, em sua vida, foi um daqueles que experimentou a força e o sustento
da palavra de Deus. Em seu processo de conversão, ele relata em suas Confissões: “O que sei, Senhor, sem sombra de
dúvida, é que te amo. Feriste meu coração com tua palavra, e te amei”
(Confissões X, 7, 8). Os primeiros encontros de Agostinho com a Escritura em sua
infância deram-se pelas leituras ouvidas certamente na igreja ou nas proximidades.
Foi após o despertar provocado pelo Hortensius,
de Cícero, quando estava com 18 anos, que leu, pela primeira vez, o texto
da Escritura,
como narra nas Confissões (cf.
Confissões III, 5, 9). “Essa
leitura, que se reduziu, evidentemente, a uma parte dessa biblioteca que é a
Bíblia, não teve resultado positivo, por motivos estilísticos: versado na
eloquência clássica, considerou inconveniente o estilo bíblico”
(O’Donnell, 2019, p.184). Porém, lendo novamente ao menos alguns textos
bíblicos, pouco depois caiu na seita dos maniqueus, com os quais precisou ler e
ouvir vários textos conhecidos das Escrituras,
mas inseridos num contexto diferente, ao lado dos escritos dos maniqueus.
Entre as leituras que esses faziam da Escritura,
o que mais afetou Agostinho foi o ataque dos maniqueus ao antropomorfismo e à
suposta imoralidade dos patriarcas do Primeiro
Testamento.
A
partir desse ponto, o relato da conversão de Agostinho é uma narração de sua
aproximação progressiva e de sua apreciação cristã sucessiva da Escritura. O estudo
da Escritura e
de outros textos tornou indefensáveis as posições maniqueias. O ouvir a
pregação de Ambrósio e o exemplo de sua leitura silenciosa e atenta da Escritura tornaram
possível para Agostinho compreender como uma interpretação plausível da Escritura pudesse
estar de acordo com suas raízes socioculturais e as relativas expectativas.
Assim, Agostinho apresenta o momento decisivo de sua conversão como um ato de
leitura da Escritura e
de aplicação literal daquela prescrição moral a si mesmo. Retirou-se em
Cassicíaco naquele mesmo inverno, a fim de ler a Escritura (levando em
consideração a recomendação de Ambrósio de ler o profeta Isaías), mas os
registros daquele inverno são mais de natureza filosófica do que
escriturística. Entretanto, nos anos seguintes, antes de sua ordenação em
Hipona, sua atenção voltou-se a textos específicos da Escritura -
particularmente o Gênesis -
para refutar os maniqueus.
Antes
de sua ordenação presbiteral, em Hipona, em 391, “escreveu a seu bispo, Valério, a fim de pedir-lhe tempo
para dedicar-se ao estudo da Escritura” (O’Donnell, 2019,
p.185). Essa referência remete a um processo de formação como autodidata
em Escritura,
que para nós, enquanto processo, é oculto, mas, enquanto resultado, é
ineludível. A partir de seus primeiros escritos como presbítero, sua obra está
cheia de referências, ecos e citações da Escritura. Agostinho começa a mostrar
fascínio pelos Salmos,
que o acompanharão pelo resto de sua vida. Enquanto presbítero, começou a
confrontar-se com problemas de interpretação paulina, e é sabido que, “em meados dos anos 90 do IV século,
chegou a um ponto em que tal estudo o levou a uma visão completamente nova de
Paulo, que influenciará sua teologia pelo resto de sua vida”
(O’Donnell, 2019, p.185). Isso não quer dizer que seu interesse pelo Gênesis e pelos Salmos diminuirá. Nos
anos seguintes, seu interesse exegético principal direcionar-se-á para a obra
de São João, tanto para o Evangelho como
para a primeira epístola, que se tornaram objeto de longas discussões,
resultando em obras e escritos.
Santo
Agostinho é tido até hoje como referência para o estudo da teologia bíblica.
Esse talento para a interpretação da Bíblia e
para sua sistematização pode ser nitidamente observado em suas diversas obras de
comentários bíblicos e em seus numerosos sermões. Uma dessas obras de
comentários bíblicos, que também serviu de inspiração para a atuação política
de pessoas como Dietrich Bonhoeffer[1] e Martin Luther King
Jr.,[2] é
a obra Sobre o Sermão
do Senhor na Montanha. Nessa obra, Santo Agostinho faz uma
explanação do famoso sermão de Jesus Cristo no monte (Evangelho de São Mateus,
capítulos 5 a 7), que é considerado por muitos o lugar onde se concentra a
primeira exposição da ética cristã. Agostinho considera a Bíblia como a
expressão imediata da vontade e da inteligência de Deus. A Escritura não é um
livro de história, e sim uma oferta divina que é proporcionada ao homem de fé
para revelar-lhe o que Deus lhe pede em cada momento e o que é que tem de fazer
para agradá-Lo. É a carta que Deus escreveu aos homens: “Daquela cidade, de onde estamos
ausentes como peregrinos, chegaram-nos cartas. São as Escrituras, que nos exortam a viver bem”
(Comentários aos salmos 90,2,1). O que faz ao enviar suas cartas é fazer
crescer em nós o desejo da pátria, de voltar ao nosso autêntico lar.
A Bíblia nasceu da
vontade de o povo ser fiel a Deus e a si mesmo. Nasceu da preocupação de transmitir
aos outros e a nós essa fidelidade. A Bíblia é,
portanto, humana e divina tanto por sua origem como por seu conteúdo: “É um homem que fala de Deus, Deus o
inspira, é verdade, mas não deixava de ser um homem. A inspiração o fez dizer
algo. Sem ela, teria emudecido inteiramente. Porque um homem recebeu a
inspiração, não disse tudo o que o mistério é, mas o homem pode dizer”
(Tratado sobre o Evangelho de São João 1,1).
Ler
a Escritura é
entrar na intimidade da relação de Deus com um povo que nos deixou por escrito
o que temos de fazer para que nossa vida seja continuamente conectada com Ele.
“Agostinho fez da Escritura o alimento de sua vida
cotidiana, e foi capaz de distribuí-la também como pão ao seu povo”
(SIERRA RUBIO, 2003, p.8). Como nos ensina o Concílio Vaticano II, “[...] é tão grande a força e a
virtude da palavra de Deus que se torna o apoio vigoroso da Igreja, solidez da
fé para os filhos da Igreja, alimento da alma, fonte pura e perene de vida
espiritual” (DV 21).
Frei
Caio Filipe de Lima Pereira, OSA
-Texto
publicado na coluna Theos do Jornal Inquietude On-line, de
setembro de 2023.
REFERÊNCIAS
[1] Cf. BONHOEFFER,
Dietrich. Ética. 7 ed. São Leopoldo: Ed. Sinodal,
2005.
[2] Clayborne
Carson (org.). A autobiografia de Martin Luther King. Rio
de Janeiro: Ed. Zahar, 2014, p. 88-89. Tradução: Carlos Alberto Medeiros.
AGOSTINHO,
Santo. Comentário ao Evangelho e ao Apocalipse de São João.
Tomo 1. São Paulo: Cultor de Livros, 2017.
AGOSTINHO,
Santo. Comentário aos Salmos: salmos 51-100. Vol. 9/2. São
Paulo: Paulus, 2014.
AGOSTINHO,
Santo. Confissões. 17.ed. Tradução de Maria Luiza Jardim
Amarante. São Paulo: Paulus, 2004.
BÍBLIA
SAGRADA. Tradução oficial da CNBB. 3.ed. Brasília: Edições CNBB, 2019.
BONHOEFFER,
Dietrich. Ética. 7 ed. São Leopoldo: Ed. Sinodal,
2005.
CLAYBORNE,
Carson (org.). A Autobiografia de Martin Luther King. Rio
de Janeiro: Ed. Zahar, 2014, p. 88-89. Tradução: Carlos Alberto Medeiros.
CONCÍLIO
VATICANO II. Constituição Dogmática Dei Verbum. In: Documentos do Concílio
Vaticano II: constituições, decretos, declarações. Petrópolis: Vozes, 1966.
O’DONNELL,
James J. Bíblia. In:
FITZGERALD, Allan D, OSA (org.). Agostinho através dos tempos: uma
enciclopédia. São Paulo: Paulus, 2018. p.183-186.
SIERRA
RUBIO, Santiago, OSA. A Bíblia: O Manjar de Deus. Col. Cadernos
de Espiritualidade Agostiniana (7), FABRA. São Paulo, 2003.
https://agostinianos.org.br/artigo/santo-agostinho-e-a-palavra-de-deus/
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