XVII--SANTO AGOSTINHO - Sobrevivência e atualidade de Santo Agostinho
“Santo Agostinho foi um sedento
de Deus e ajuda-nos a buscá-lo, conhecê-lo e amá-lo; foi um apaixonado por
Cristo, e ajuda-nos a perscrutar os tesouros da ciência e da sabedoria oculta
nele; foi um amante da Igreja, e ensina-nos a servi-la com generosidade, sacrifício,
inteligência; foi um grande místico, e ensina-nos a subir ao alto, muito alto,
na ascensão interior; amou, estudou, meditou incessantemente a Escritura, e
ajuda-nos a compreendê-la, amá-la e nutrir-se dela. Foi um amante da sabedoria.
Para ele, a sabedoria não é apenas uma verdade a conhecer, mas um bem a se
possuir, o sumo bem; é uma luz que é amor, amor que é bem, bem que é alegria
maior do que qualquer doçura.
Agostinho é, pois, filósofo, teólogo, místico e
poeta, ao mesmo tempo; e tudo isso em grau eminente. Essas altíssimas
qualidades completam-se reciprocamente e criam um fascínio ao qual é difícil
resistir. É um filósofo, mas não um frio pensador; é um teólogo, mas também um
mestre de vida espiritual; é um místico, mas também um pastor; é um poeta, mas
também um polemista. Cada um, por isso, encontra nele algo que o atraia e cause
admiração: ou a altura das intuições metafísicas, ou a riqueza e a abundância
das demonstrações teológicas, ou a força e a eficácia da síntese, ou a
profundidade psicológica das ascensões espirituais, ou a riqueza da fantasia,
da sensibilidade, do ardor místico.
A doutrina agostiniana tem por mérito
principalmente a multiplicidade dos aspectos e a força da síntese. Lembro
alguns pares de termos, aparentemente opostos, mas necessariamente unidos, que
servem à construção daquelas grandes sínteses: razão e fé; Deus e o homem;
liberdade e graça; Cristo e a Igreja; verdade e amor; amor privado e amor
social... Esses binômios são os grandes trilhos sobre os quais se move a cultura
ocidental. E para melhor compreender isso basta evocar breves acenos que
atestam a presença e a influência do pensamento agostiniano na história e
cultura do Ocidente: desde os tempos de Tomás e Boaventura – dois grandes
intérpretes, mesmo se em medida diversa, do agostinismo – até nossos dias. Para
referir ao pensamento contemporâneo, ainda que se quisesse prescindir dos
influxos de Pascal e Kierkegaard, não se pode deixar de constatar a influência
agostiniana no existencialismo e espiritualismo de Bergson, Le Senne, Lavelle,
Blondel, Sciacca, Guzzo, Carlini, Stefanini; no personalismo de Mounier; no
problema dos valores de Scheler; no ser e a verdade de Heidegger...
Sem dúvida, contudo, também em Agostinho, como em
todo homem, há limites. O leitor os encontrará provavelmente na erudição que,
embora não sendo vulgar, não se movia livremente no mundo da literatura grega;
no ardor da polêmica, que não lhe permitia burilar sempre a linguagem; nas
diversas maneiras com que se move no mundo das ideias e no dos fatos; na força
inexorável da dialética, que, ilustrando uma verdade, parece fazer-lhe esquecer
de outra. Esses limites nascem seja da personalidade de Agostinho, que conheceu
o tormento e a radicalidade do convertido, seja de sua formação filosófico-teológica,
seja também, aliás principalmente, pelo tempo que lhe coube viver.
Agostinho é interessante como homem por seus erros
e suas conquistas, seu vagar distante da fé católica e seu retorno a esta fé,
sua conversão e as decisões que a acompanharam, seu serviço à verdade
reencontrada, à justiça – que está no fundamento da paz social –, à paz, ao bem
de todos os homens que almejam aquela cidade, como ele explica, ‘onde a vitória
é verdade, onde a dignidade é santidade, onde a paz é felicidade, onde a vida é
eternidade’ (Cidade de Deus, II, 29, 2): quatro estupendas equações que revelam
o homem Agostinho e o ânimo de todos aqueles que refletem sobre si mesmos. Ele
tem, portanto, ainda algo a ensinar: na confusão do geral ceticismo, o método
de buscar a verdade; entre as névoas do materialismo dilacerante, a força
purificadora da espiritualidade; nas pretensões vazias do racionalismo, a luz
da fé; no orgulho do naturalismo, o papel salvífico da graça. A quem defende só
a fé recorda a exigência da razão, a quem apela só à razão recorda a
necessidade da fé; a quem nega a liberdade recorda sua existência e seu valor,
a quem a exalta como único elemento da salvação recorda a necessidade da graça.
Interpretando a história a partir da meta-história, colocou as bases para uma
civilização do amor.
Esta figura singular de pensador, de pastor, de
teólogo, de místico, de poeta - Agostinho é também isso –, descobre-se em seus
escritos, nos quais, como diz o primeiro biógrafo, o amigo e discípulo
Possídio, ‘os pósteros encontram-no sempre vivo’ (Vida de Santo Agostinho 31,
8).”
Frei
Jeferson Felipe Cruz, OSA
Texto recolhido por Frei Jeferson
Felipe da Cruz, OSA, da obra: TRAPÈ, Agostino. Agostinho: o homem, o
pastor, o místico. São Paulo: Cultor de Livros, 2017, pp. 483-507).
- Publicação: na coluna Theos, do Jornal Inquietude On-line, de agosto de 2022.
Sobre o livro:
Agostinho: o homem, o pastor, o místico, do
Pe. Agostino Trapè é considerada a mais completa biografia do Bispo de Hipona.
Obra que apresenta Santo Agostinho sob três aspectos da sua rica personalidade:
homem, pastor e místico.
https://agostinianos.org.br/artigo/sobrevivencia-e-atualidade-de-santo-agostinho/
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