VIII-REFLEXÃO DOMINICAL II- Toda árvore é
reconhecida pelos seus frutos
2 de
março – 8º DOMINGO DO TEMPO COMUM
Por Junior Vasconcelos do Amaral*
I. INTRODUÇÃO GERAL
“A ressurreição é o
poderoso ‘Sim’ de Deus, o seu ‘Amém’ pronunciado sobre a vida do seu Filho,
Jesus.” Com essas palavras inspiradoras do frei Raniero Cantalemessa, podemos
traduzir a grandiosa força e experiência que os vindouros tempos de Quaresma e
Páscoa nos possibilitarão vivenciar: mergulharmos na experiência da conversão e
no epicentro da nossa fé, no mysterium paschale de Cristo. No Evangelho, Jesus
ensina seus discípulos e a nós, hoje, a viver com sabedoria em todos os
instantes da vida, pois nossas atitudes são como frutos de uma árvore, à qual
somos comparados. Na primeira leitura, o sábio de Israel, autor do
Eclesiástico, recomenda que nossa língua sirva para edificar e construir, e que
não sejamos insensatos ao falar, pois a boca fala o que tem o coração. Na
segunda leitura, o apóstolo Paulo lembra que a ressurreição de Cristo é o
evento máximo da história da humanidade: é por Cristo e em Cristo que vivemos
nossa vida, nele morremos e nele também ressuscitamos.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS 1. I leitura (Eclo 27,5-8)
O livro sapiencial do
Eclesiástico, que não está contido nas edições bíblicas
protestantes/evangélicas, mas está presente nas bíblias de edições católicas, é
considerado um escrito deuterocanônico, ou seja, canonizado posteriormente,
contendo inúmeros ensinamentos para o ser humano que se encontra aberto ao
aprendizado. Este livro, da mesma forma que outros, conhecidos como
sapienciais, oferece práticas e reflexões ao ser humano para o bem viver. Na
passagem deste domingo, o sábio tem como tema a palavra que sai da boca, a
conversação. É pela palavra que uma pessoa revela o que traz no coração. As
palavras saem do interior da consciência, mas, em alguns momentos, também do
próprio inconsciente, como bem compreendeu a ciência conhecida como
psicanálise.
O primeiro versículo
compara o falar do ser humano com a ação de peneirar. Quando se sacode a
peneira, fica nela apenas o refugo. Assim, quando alguém abre a boca, muitas
palavras saem; algumas nem sempre são boas, e outras podem edificar. O falar de
uma pessoa é provado como o vaso de barro do oleiro, que ao forno é levado. No
caso do ser humano, é sobretudo nos momentos difíceis que pode dizer coisas que
o autodestruam ou rompam suas relações, gerando trincas e sofrimentos, como um vaso
que não foi bem cozido. O v. 7 se refere ao fruto que revela como a árvore foi
cultivada. Assim, a palavra de uma pessoa revela como ela foi educada ou não,
como foi o cuidado que recebeu desde a tenra infância, as dores que traz em seu
coração ou as levezas que marcam sua psique. Por fim, o v. 8 aconselha a não
elogiar uma pessoa antes de ouvir suas palavras, aquilo que ela tem a oferecer
de seu coração por meio de sua boca. Em outros termos, “a boca fala do que o
coração está cheio”.
2. II leitura (1Cor 15,54-58)
A primeira carta aos
Coríntios é uma fonte teológica acerca da ressurreição, da vida incorruptível e
imortal que, em Cristo, nos será concedida pela fé após nossa vida mortal.
Cristo venceu a morte e desfez seu aguilhão. A morte não tem vitória e primazia
sobre aquele que crê em Cristo. É Cristo que nos concede a vitória sobre a
morte. Para Paulo, esta vida mortal e a vida imortal devem ser vividas em
Cristo. “Em Cristo” é a categoria, a forma, o modo como somos convidados pelo
apóstolo a viver nossa vida. Trata-se de condição nova de viver na e pela fé
nele, o Ressuscitado. No v. 56, Paulo acena para o aguilhão da morte, o pecado.
A Lei é a força do pecado.
Para o apóstolo dos
gentios, nossa Eucaristia, nossa ação de graças é ao Pai, que nos dá em Cristo
sua vitória. Foi o Pai quem ressuscitou o Filho pela força restauradora do
Espírito Santo, por isso toda vida cristã está alicerçada na vida trinitária de
Deus. O v. 58 é uma exortação do apóstolo para que o cristão fique firme e
inabalável, pois é Deus quem o sustenta. É preciso, de igual modo, empenhar-nos
cada vez mais na obra do Senhor, que é a soteriologia, a salvação, pois Deus
nos criou a todos para a salvação eterna. As fadigas, os desafios, as
dificuldades que um cristão enfrenta não são sem sentido: estão ligadas à vida
de Cristo, que por nós sofreu e morreu e também nos ressuscita por sua
ressurreição. O que essa leitura tem em comum com a liturgia deste domingo é a
sabedoria, mesmo que implícita, de Deus: ele nos criou para a salvação e nos
ajuda a chegar ao bom termo por seu amor doado a nós em Cristo, seu amado
Filho.
3. Evangelho (Lc 6,39-45)
Este Evangelho nos
apresenta uma característica importante da identidade de Jesus: a sabedoria.
Ser sábio, para a tradição judaica, significa saber oferecer o bom senso aos
outros, e é exatamente isso que encontramos nessa narrativa lucana. Essa seção
do Evangelho de Lucas está localizada após o discurso inaugural e as
bem-aventuranças, no início do capítulo 6. Jesus, para Lucas, é um mestre (didaskaloi)
que vai gradativamente ensinando seus discípulos. A cristologia dos Evangelhos
sinóticos (Mt, Mc e Lc) apresenta, sempre em partes distintas dos Evangelhos,
Jesus ensinando, como mestre, a seus discípulos. Essa é uma matéria muito
importante para a cristologia do Novo Testamento.
No fim dessa seção,
encontramos uma passagem parabólica com pequenos ensinamentos, uma espécie de
coletânea sapiencial: o cego que não pode guiar a outro cego (v. 39); o
discípulo que não é maior que seu mestre (v. 40); o cisco do olho do outro e a
trave no olho daquele que, hipocritamente, busca tirar o cisco do olho do irmão
(v. 41-42); a árvore boa que só gera bons frutos (43-44); a árvore reconhecida
por seus frutos (v. 43); figos que não nascem em espinheiros, nem uvas de
plantas espinhosas; por fim, o homem bom, que tira coisas boas do tesouro de
seu coração, e o mau, que tira coisas ruins, pois sua boca fala do que seu
coração está cheio (v. 44-45). Esse último versículo está em relação estreita
com a primeira leitura, que refletiu sobre o que sai da boca de uma pessoa.
O Evangelho, portanto,
convida-nos a viver a sabedoria em todos os momentos da existência. Essa
coletânea sapiencial evidencia, no ordinário do dia a dia, coisas possíveis e
impossíveis de acontecer; e quando as que parecem impossíveis acontecem, podem
trazer um malefício, como um cego que guia outro cego, sob o risco de os dois
juntos caírem em alguma cilada do caminho, ou como a árvore boa que pode gerar
fruto ruim ou permitir que seu fruto, depois de colhido, adoeça e se torne
ruim, por já não ter poder sobre o fruto que dela foi destacado. No Evangelho
de Lucas, há uma caracterização cristológica ímpar, a qual nos revela um Jesus
sábio que vem para cumprir a justiça (dikaiosyne) de Deus, desde o início até o
fim do Evangelho.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO Somos chamados a avaliar o efeito de nossas palavras e
refletir sobre elas, sobre aquilo que sai de nossa boca: é bom? Faz bem? Ajuda
o outro? O que falamos é justo e necessário? Ou estamos vivendo em comunidades
tóxicas, repletas de fofocas e palavras vazias, que não constroem a
sinodalidade? O apóstolo Paulo nos convida a edificar nossa fé na ressurreição,
vivendo em Cristo como novas criaturas e superando as dificuldades que vivemos
no tempo presente em vista da vida salva que nos aguarda. Por último, o
Evangelho enriquece nosso modo de agir: somo comparados a “árvores”, plantadas
temporária e transitoriamente neste mundo, no qual somos convidados a gerar
vida, frutificar e alimentar as pessoas com as quais convivemos, dentro e fora
de nossas comunidades de fé.
Junior Vasconcelos do Amaral*
*é presbítero da arquidiocese de Belo Horizonte-MG e vigário
episcopal da Região Episcopal Nossa Senhora da Esperança (Rense). Doutor em
Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje),
realizou parte de seu doutorado na modalidade “sanduíche”, estudando
Narratologia Bíblica na Université Catholique de Louvain (Louvain-la-Neuve,
Bélgica). Atualmente, é professor do Departamento de Teologia e do Programa de
Pós-Graduação “Mestrado Profissional em Teologia Prática” na PUC-Minas, em Belo
Horizonte, e desenvolve pesquisas sobre análise narrativa, sobre Bíblia e
psicanálise e sobre teologia pastoral. E-mail: jvsamaral@yahoo.com.br
https://www.vidapastoral.com.br/roteiros/2-de-marco-8o-domingo-do-tempo-comum/
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