X-
VOCAÇAO
À LIBERDADE II
Na concepção cristã, a vocação para a liberdade
dirige-se aos escravos. O cristianismo é uma religião de escravos. Nisso é diferente
de todas as outras religiões. À medida que se afasta dessa característica,
torna-se semelhante às outras religiões.
O filósofo pagão já o tinha observado: o cristianismo era uma religião
de escravos. E acrescentava: e de mulheres, porque, de alguma maneira, as
mulheres se assemelham aos escravos em tantas situações.
Alguns já perguntaram: como evangelizar depois de Auschwitz? Ora, o
evangelho é justamente feito para vir “depois de Auschwitz”: o Auschwitz do
Egito, da Babilônia e de todas as perseguições do povo de Deus, até o Auschwitz
do século XX.
Qualquer mensagem de liberdade corre o risco de desvio se não parte da
situação fundamental da vocação para a liberdade. O evangelho dirige-se aos
humilhados, perseguidos, excluídos. Uma vez que se afasta desses destinatários
autênticos, perde o seu sabor, perde a sua originalidade, perde a sua
autenticidade.
Hoje, existem milhões e dezenas de milhões de cristãos perseguidos não
somente na China e na Coreia do Norte, mas em numerosos países muçulmanos (no
Sudão e na Nigéria, por exemplo). A teologia cristã é feita para eles e a
partir deles, não a partir dos restos das velhas cristandades da Europa ou
mesmo da América.
Há milhões e até bilhões de excluídos, necessitados, humilhados. O
evangelho é feito para eles como apelo para a liberdade. Se queremos fazer uma
teologia para o homem abstrato, é preciso afastar-nos do evangelho — e então
não saberemos mais o que seja liberdade.
Foi o que aconteceu, sobretudo a partir do século XIV, quando João XXII
declarou que Jesus não era pobre e rejeitou dessa maneira toda a tradição
anterior de opção pelos pobres. Doravante a Igreja falou para os homens
abstratos e nem a reforma protestante mudou esta situação.
Uma das consequências desse ocultamento do evangelho foi a maneira pela
qual se legitimou a conquista e se realizou a suposta evangelização da América
e das outras partes do mundo conquistadas pelas nações da antiga cristandade.
Para os habitantes da América, o cristianismo apareceu como a religião
dos senhores, dos amos, dos vencedores e opressores, e como a legitimação da
conquista e da dominação.
Os pobres reapareceram oficialmente com João XXIII. Antes dele, tiveram
vida clandestina na Igreja: a clandestinidade de Canudos, de Pe. Cícero Romão
Batista de Juazeiro do Norte, de Pe. Ibiapina. O evangelho foi anunciado, porém
clandestinamente. Os que o anunciaram publicamente foram expulsos — por
exemplo, os que se negavam a aceitar a escravidão como sistema social.
A mensagem de liberdade dirige-se aos pobres, porque eles têm condições
de lutar pela liberdade. Eles têm uma longa caminhada para percorrer. Porém
podem, porque estão mergulhados na opressão.
Claro que — a experiência o confirma tantas vezes — quando os pobres se
promovem, muitas vezes adotam o mesmo modo de sentir e de agir dos poderosos. O
que se lhes pede é algo heroico: lutar pela nova sociedade em que as relações
são vividas na liberdade.
Os ricos não podem ser chamados à liberdade? Os ricos não recebem esse
apelo também? O evangelho mostra que os ricos podem ser chamados também. Há,
todavia, uma condição: romper com o seu mundo, os seus valores e o seu modo de
viver, e então seguir Jesus. Não pode haver evangelho de conciliação, como se
fez na Igreja durante 15 séculos: apagar de tal modo o conteúdo do evangelho,
que o cristianismo se torna exatamente igual às religiões pagãs.
O Vaticano II abriu as portas para a liberdade.
Teve a ousadia de se deixar conduzir pelos textos do Novo Testamento. A
Constituição, Gaudium et Spes reabilitou a liberdade.
Imediatamente criou-se toda uma literatura teológica sobre cristianismo e
liberdade.
Infelizmente isso não durou mais do que dez anos. O medo voltou a tomar
conta da maior parte da hierarquia, do Papa e da Cúria romana. Trata-se do
velho medo da liberdade, que prevalece desde o século XIV — quando foram
condenados, queimados e torturados os espirituais franciscanos e muitas pessoas
suspeitas de ter afinidades com eles.
O medo da liberdade voltou a tomar conta da Igreja católica. No entanto,
o próprio Papa chega à conclusão de que o sistema deixou de funcionar. Pois a
forma pela qual se exerce o ministério petrino é a pedra angular sobre a qual
se sustenta toda a Igreja imperial. Se muda o ministério do Papa, muda o resto.
Neste final de pontificado, a questão da liberdade na Igreja volta a ocupar o
centro da atenção. O novo Papa já tem a sua função preparada — o Papa atual
assinalou-lhe a tarefa de modificar a maneira pela qual se exerce o ministério
petrino, quer dizer, a maneira pela qual se vive a liberdade na Igreja.
Na América Latina, as massas têm consciência da liberdade. Sentem-se
livres porque aceitam o sistema em que estão. Aceitam-no porque acreditam nas
mensagens que lhes são dirigidas. Vão para a praia e sentem-se livres. Hoje,
liberdade é sinônimo de estar na praia, tomando sol e bebendo cerveja gelada.
As pessoas convenceram-se de que essa é a liberdade. Por isso a compreensão da
vocação será tarefa prolongada, porém, não impossível.
“Onde está o Espírito, aí está a liberdade”. Não foi sem consequência
que o Espírito Santo desapareceu quase completamente da teologia católica e da
consciência tanto da hierarquia como do povo durante quase 700 anos — desde a
condenação dos espirituais franciscanos e de todos os discípulos do abade
Joaquim de Fiori. A simples referência ao Espírito Santo já era suspeita por si
própria. A mística da obediência substituiu o Espírito Santo.
Acabo de ouvir um bispo chileno dizer numa entrevista à imprensa: “Quem
obedece nunca erra”. Essa foi a espiritualidade praticada durante séculos.
Assim pensava também Eichmann, que exterminou os judeus por obediência. Assim
pensaram os oficiais e soldados que torturaram os presos e os jogaram no mar,
utilizando-se de aviões da marinha (na Argentina). Assim pensam e dizem os
inúmeros funcionários públicos que dão cobertura a todas as malversações das
autoridades, e assim dão a entender também os que ficam calados diante das
injustiças que se cometem dentro da Igreja. Será verdade que “quem obedece
nunca erra”? Infelizmente devemos reconhecer que inúmeras gerações católicas
foram educadas nesse espírito, que, certamente, não procede do Espírito Santo.
Porque este proclama que é melhor obedecer a Deus do que aos homens, mesmo quando
pretendem falar em nome de Deus — como fizeram as autoridades de Israel que
prenderam os apóstolos.
Recentemente o Espírito Santo fez uma nova entrada na Igreja, de modo
totalmente imprevisto: o vento sopra e não se sabe por onde entra. Entrou pelo
pentecostalismo e pelos movimentos carismáticos. É uma entrada que muitos na
Igreja não desejavam. Porém, doravante não se poderá negar a presença do
Espírito e fazer uma teologia sem falar do Espírito Santo.
Com o Espírito Santo todo o sistema tem de mudar. Em lugar da ordem
estabelecida, o que prevalece é a desordem, o imprevisto, a improvisação, a
novidade e o abalo daquilo que parecia estabelecido. A missão do Espírito
consiste justamente em suscitar a liberdade.
Se o objeto do evangelho é a vocação para a liberdade, como haverá de
ser a evangelização? Quem é que deve ser evangelizado? Durante 15 séculos
predominou a persuasão de que a evangelização começa pelos grandes. A conversão
de Constantino provocou uma inversão radical. A Igreja, que era dos escravos,
tornou-se a Igreja dos senhores. Os missionários que foram ao encontro dos
povos germânicos procuraram batizar os chefes, e estes davam a todos os súditos
a ordem de se batizar também. Os primeiros missionários que foram para o
Oriente buscaram o diálogo com os reis e imperadores, e os jesuítas que foram
para a China conseguiram entrar na corte do imperador. Porém, não converteram
ninguém. Na América a ordem era: cristianizar os filhos dos caciques. Na
África, converter os chefes ou os filhos dos chefes. A evangelização devia
proceder das classes altas e descer para todos.
Esta foi a doutrina oficial no Brasil até o Vaticano II: antes os
dirigentes, primeiro recuperar os dirigentes. Foi e ainda é a doutrina romana
oficial. Por isso a hierarquia deu apoio aos regimes fascistas e aos regimes
militares da América Latina. Todos davam apoio à Igreja.
Então, diante de tais fatos, surgem as perguntas: O
que do evangelho era anunciado a esses dirigentes? Por que adotaram o
cristianismo com tanta facilidade? O que era que os encantava no cristianismo?
Teria sido a vocação à liberdade?
Podemos ter a certeza de que a palavra liberdade pouquíssimas vezes foi
pronunciada pelos missionários ao longo de 15 séculos. Qual era então o
evangelho que foi aceito pelos imperadores romanos, pelos reis e chefes
germânicos e eslavos, pelos chefes das tribos africanas e pelos caciques
indígenas?
Não é preciso fazer um longo estudo. É evidente que o evangelho que
receberam era bem diferente daquele que está no Novo Testamento.
Hoje a Igreja coloca-se diante do desafio de evangelizar. Porém, qual
será o evangelho? A quem será destinado o evangelho? Eis a questão crucial. Se
queremos converter as classes privilegiadas, nada de liberdade, nem de
libertação. Anunciaremos um Deus muito compreensivo, que compreende muito bem o
modo de viver dos privilegiados e, de antemão, os absolve, consola-os no meio
dos problemas, conflitos e dissabores que vêm da própria abundância em que
vivem.
O missionário fica totalmente condicionado pelo
público que escolhe. Ele tem uma liberdade: a liberdade de escolher o seu
público — pode evangelizar os pobres ou os ricos. Uma vez feita a escolha perde
a liberdade, porque, doravante, o evangelho que anunciará lhe será ditado pelo
seu público. O missionário que pretende evangelizar os privilegiados é prisioneiro
deles. Não tem nenhuma liberdade de dizer ou fazer o que quer — deve dizer e
fazer o que quer o seu público. Somente pode anunciar um evangelho de liberdade
se fala para pessoas sem riqueza, sem propriedade, sem privilégios para
defender. Será mais acolhido pelas mulheres do que pelos homens, porque são
mais pobres; pelos jovens do que pelos velhos, porque são mais pobres; pelas
pessoas de cor do que pelos brancos, porque são mais pobres…
Por isso mesmo — devido à escolha malfeita — o evangelho fica tantas
vezes desvitalizado, perde sua força de repercussão, torna-se refúgio nas
frustrações da vida.
Na América Latina, o evangelho da liberdade estava de tal modo
desconhecido, que a teologia da libertação provocou um escândalo em todo o
mundo católico conservador. De repente foi-lhes dito que o evangelho era o
contrário de tudo o que eles achavam ser o cristianismo. Para eles, o
cristianismo significava ordem, tranquilidade, paz social, resignação diante
das situações de injustiça, cada um conformado com a sua sorte, respeito às
autoridades constituídas quaisquer que fossem, respeito à propriedade, respeito
aos costumes e normas tradicionais. Tinham paganizado o cristianismo e
sentiram-se agredidos. Quem teve a culpa? Todos e ninguém. A evangelização
começou pelo lado errado.
Pois bem. Passaram-se 500 anos. Agora começou novo século. Qual será o
evangelho para o século XXI?
Ao longo dos séculos o cristianismo passou por tantos desvios,
assemelhou-se de tal maneira às outras religiões, identificou-se tanto com
outras culturas — sobretudo a cultura bizantina e a cultura ocidental —, que se
tem a impressão de que a evangelização ainda está para começar. De alguma
maneira mal começou, e começou de modo tão fragmentário que quase tudo está
para ser feito.
Os 2.000 anos de história deixaram magníficos monumentos de “civilização
cristã”, deram espaço para milhares de “santos”, cristãos imitadores autênticos
de Jesus Cristo. Mas, o mundo ouviu o evangelho? Os pobres, os excluídos do
mundo — os 4 bilhões de pobres — ouviram o evangelho e o apelo para a
liberdade? A Igreja dedica-se a isso? Dedica-se a anunciar-lhes a liberdade de
Cristo? Parece que estamos no início do primeiro século da evangelização.
De onde parte a evangelização? Com certeza, dos países em que os
cristãos são pobres e perseguidos, na África e na Ásia. Não constam no anuário
pontifício, mas a força do Espírito Santo está com eles.
Nas bibliotecas de teologia há milhões de livros que quase ninguém lê.
Para a evangelização, poucas coisas dessas toneladas de papel é recuperável.
Quase nada disso serve para iniciarmos a entrada no mundo de hoje. Além da
Bíblia, pouca coisa será realmente de grande utilidade. O mundo de hoje é muito
diferente: tudo deve começar de novo. A metade, pelo menos, dos livros foram
escritos para apagar a palavra liberdade do linguajar cristão e procurar
justificar um evangelho sem liberdade. A outra metade desconhece a mensagem de
liberdade. Um entre mil entrou no assunto. Os que viveram a liberdade não
escreveram e morreram. É preciso começar tudo de novo. Como entrar na
liberdade? Escolhendo-a e começando tudo de novo.
Claro que é humanamente impossível. Humanamente Nicodemos tinha razão:
um ser humano não pode apagar sua vida inteira. Não pode livrar-se dela
inteiramente. No entanto, o Espírito faz renascer de novo, começar tudo de
novo. Em cada um de nós agirá à medida dos limites do nosso apego ao passado,
ao que somos. Todavia, o Espírito levar-nos-á para além daquilo que somos, a sermos
outros, e assim começará a evangelização.
** Texto proveniente da conclusão do livro Vocação
para a liberdade, Paulus, São Paulo, 3ª ed., 2001.
Pe. José Comblin
https://www.vidapastoral.com.br/artigos/antropologia-teologica/vocacao-a-liberdade/
Nenhum comentário:
Postar um comentário