sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

XII- - REFLETINDO COM LINDOLIVO SOARES MOURA ( * ) "VIVÊNCIA, CONVIVÊNCIA E SOBREVIVÊNCIA: OU SE REPENSA COM URGÊNCIA, OU CONTINUAMOS MARCHANDO RUMO À FALÊNCIA"

 

 

XII-           - REFLETINDO COM LINDOLIVO SOARES MOURA ( * )

"VIVÊNCIA, CONVIVÊNCIA E SOBREVIVÊNCIA: OU SE REPENSA COM URGÊNCIA, OU CONTINUAMOS MARCHANDO RUMO À FALÊNCIA"

 "Continuo me perguntando,  se  que  chamamos de  'razão',  está  mais  a  serviço do bicho homem, ou do homem bicho"[L.S.M.]

 

"Eu queria poder afagar uma fera terrível..."; "eu queria poder abraçar meu maior inimigo"; "eu não posso aceitar certas coisas que eu não entendo"; "o comércio das armas de guerra da morte vivendo"; "eu queria ser civilizado como os animais", e por aí segue o andar da carruagem das queixas e lamentos, do Erasmo e do Roberto Carlos. E não é para menos! Entram e saem décadas, séculos e milênios, e o mundo dos chamados "humanos" continua se tornando cada vez mais complicado e cada vez menos humano. "Complexo" também seria um bom termo, tendo incluive sido mais usado, porém a "complicação", agrega um quê a mais, de estupidez, tragicidade e incompreensibilidade, que a simples complexidade - o idioma permite certas expressões, no mínimo curiosas - ignora ou simplesmente deixa para trás. Vamos admitir : a humanidade, essa gloriosa "arca de Noé" ambulante, que há milênios segue a navegar pelos mares e oceanos da vida, como se fosse um carro com dois volantes, que horas é arrastado ora para uma, ora para a outra direção, sempre se viu dividida entre a fantástica capacidade de realização de atos portentoso e magníficos, e o acometimento das maiores barbáries e atrocidades de todo tipo, de que se tem notícia. Somos criadores da mais pura arte, da mais refinada filosofia, da divina música que nos faz elevar aos céus, o espírito, enquanto paralela e simultaneamente inventamos a mais emperrada burocracia, os meios mais hediondos de se subir na vida, e os meios e recursos mais absurdos de se driblar a justiça. Com a mesma potencialidade criativa que construímos catedrais, arranha- céus e naves espaciais, construímos  também guilhotinas, bombas atômicas e mísseis, que a cada dia dobram de alcance e continuam cortando os ares. Concebemos e damos à luz a mais requintada Declaração Universal dos Direitos Humanos, e logo em seguida  fazemos uso da razão para justificar genocídios absurdos, massacres bestiais, holocaustos e extermínios fratricidas, e na calada das noites sabe-se lá Deus o que mais.

Ah, a nossa incomparável racionalidade! Essa dádiva evolutiva que alguns não hesitam em atribuir à genialidade e à generosidade dos deuses, e que a princípio deveria nos diferenciar qualitativamente de todos os demais seres e animais, mas que com frequência tem sido usada - melhor dizendo, "abusada" - para sofisticar e ampliar ainda mais nossa insensatez, nossa estupidez e nossa "ir"-racionalidade doentia. Se perguntássemos a Rousseau qual seria a razão de tudo isso, ele certamente nos responderia que o homem nasce bom, generoso e compassivo, honesto e íntegro, mas a sociedade, ao invés de assimilar e ampliar tudo isso, termina fazendo exatamente o contrário, desviando-o de sua rota inicial, pervertendo-o ao mais alto grau, e corrompendo-o sem dó nem piedade, sem sequer pedir licença para isso. Do outro lado lado da linha, se fizéssemos essa mesmíssima pergunta a Thomas Hobbes, amante do trágico e profeta do apocalipse, com certeza ele nos lembraria e advertiria de que, sem um controle ferrenho e rígido a bloquear e condicionar nossa conduta - marcação "homem a homem", como se diz no mundo desportivo - seríamos nada mais, nada menos, que lobos vorazes devorando-nos uns aos outros por bebida e comida. No fundo, no fundo, tudo indica que ambos, Rousseau e Hobbes, tenham lá suas razões, ainda que, individualmente, pouca razão ou nenhuma. Porque se há algo que mais adequadamente caracteriza e identifica o ser humano, é essa ambiguidade e essa ambivalência ambulantes, que ora faz dele um visionário e altruísta semelhante a um deus, ora o torna capaz de cometer a mais ignominiosa e mesquinha patifaria contra outro homem, seu próximo, que querendo ele ou não, é sua melhor imagem e sua mais fiel semelhança. O mesmo cérebro que inventa a penicilina e a cura, inventa também a bomba atômica e a destruição em massa; o mesmo impulso que leva um ser humano a fazer com que um jato atinja a velocidade supersônica, nas alturas, também o inspira e orienta a patentear os mais incríveis instrumentos de tortura de que se tem notícia.

Se eu lhe disser que algumas religiões das mais respeitadas e fielmente seguidas, são historicamente aquelas que quase sempre estiveram na linha de frente dessa barbárie absurda, talvez você não consiga acreditar e conclua que só pode ser "fake", só pode ser mentira. Oxalá fosse! Mas não é! E isso também é por demais incompreensível e triste, um autêntico tributo à "ir"-racionalidade humana. Dito de forma bem direta, nosso dilema, cuja característica principal é a "complicatoriedade" da razão - se não existe o termo, pronto, acabou de ser criado, e a partir de agora existe -  é bastante simples: quando fazemos uso da racionalidade para o bem e a bondade, conseguimos criar coisas maravilhosamente belas e fantásticas, como vacinas, viagens espaciais, curas milagrosas e até verdadeiras "ressurreições", tais como aquelas que operou um tal Jesus Cristo. Mas quando usamos essa mesma razão para o mal e a maldade, tudo se torna possível: nasce a inflação absurda e estratosférica, as "fake news" mais sórdidas e destrutivas, e os planos de saúde acolhedores da morte e negadores da vida, sem nos esquecer daquelas propagandas com letrinhas praticamente invisíveis a olho nu - expressão

interessante, essa; essa nudez também castigada? - que não permitem que ninguém consiga ler nada, e acabe sendo enganado como se fosse um estúpido. Se a razão fosse um recurso ou uma ferramenta puramente benéfica e favorável, com certeza ninguém jamais teria pensado em praticar juros sobre juros absurdamente abusivos, mordidas de leão "à la dinossauro", maciços investimentos em destruição e morte, e outras barbáries que só o ser humano, e nenhum outro, é capaz de perpetrar, dos quais até Deus duvida.

Certas religiões, sempre com a melhor das intenções - supõe-se - buscam explicar essa ambiguidade, mas se tanto se perdem em seus próprios paradoxos, que as emendas acabam, todas elas, ficando pior que o soneto: Deus é amor supremo, absoluto e incondicional, mas também - se não criou, "lavou as mãos" - aprovou o purgatório, o inferno, a condenação e a tortura; e tudo, veja bem, pela mais absoluta eternidade, e sem direito a apelação e reversão de sentença. A ciência, por sua vez, mais esperta que serpente no paraíso, se esquiva da questão, fica e foca no pragmatismo: diz que somos e não passamos de um amontoado de átomos e células tentando perpetuar genes e DNAs de todo tipo, o tempo todo. Mas, se de fato não passássemos disso, por qua razão, perguntariamos, sentimos carinho e amor, saudade e afeto, cuidado e ternura? Por que razão escrevemos poesia, e acima de tudo, por que inventamos a necessidade de apertar o botão "aceitar os termos", sem nunca ler e ter ciência do que se estamos aceitando ou convalidando com nossa ingenuidade mais pura? As filosofias orientais sugerem que o equilíbrio é a chave: yin e yang, luz e sombra, bem e mal, convivendo em sintonia e na mais virginal harmonia. No entanto, se a humanidade tem um talento para alguma coisa em especial, sem dúvida é sua capacidade para transformar equilíbrio em caos, e não  o contrário, como seria de se esperar, posto que se supõe termos sidos pelos deuses criados. Basta observar o trânsito de uma grande cidade na hora do rush, uma reunião Parlamento ou uma audiência do Supremo, ou, para ficar no básico, uma simples reunião de condomínio, para que rapidamente possamos entender que nossa capacidade de diálogo e de convivência mais parece Câmara e Senado em audiência. "Vi"-vemos, "sobre"-vivemos e "con"-vivemos, mas raramente paramos para pensar e refletir no que essas diferentes modalidades de se passar pela existência, realmente significam. Se você tem tempo, e está disposto a descer na próxima estação, talvez possamos conversar um pouco melhor sobre isso.

Muito bem! Agora sentados, você tomando um cafezinho, e eu uma água de côco, para me hidratar melhor nesse calor danado, que nós seres humanos temos contribuído para aumentar a cada ano, podemos aprofundar melhor o assunto, sobre o qual vínhamos anteriormente conversando. Falávamos de vivência, sobrevivência, e convivência, você  se lembra? Pois bem; de forma bem simplificada podemos dizer que "vi"-vência" é simplesmente o estar aqui e agora, respirar, caminhar,sorrir, brincar, aguardar o passar dos dias, seguir naturalmente o fluxo da vida e da existência. Todo ser vivo, de uma bactéria a um filósofo existencialista, seja ele um humanista idealista, seja ele um nihilista deprimido, fazemos isso naturalmente. Para isso, não é exigido esforço, reflexão, e muito menos moralidade ou acordo de princípios. A con-vivência, no entanto, já é outro nível qualitativamente diferenciado de desafios. Requer que seres humanos com suas vontades conflitantes, em razão de suas neuroses, perversões e até psicoses, aprendam a compartilhar um mesmo espaço e um mesmo cenário sem se agredirem ou se matarem, ao menos não com tanta frequência e por razões absolutamente banais, como aconteceu no holocausto e tem acontecido entre nós com razoável frequência. A "con-vivência" pressupõe um ato de equilíbrio e de harmonia entre o instinto que nos empurra para o individualismo e a mera sobrevivência, e a razão que nos lembra e adverte  que precisamos uns dos outros, para não sucumbirmos à loucura e à solidão, que muitas vezes se impõem e nos possuem, sem sequer pedir licença. Ultimamente, porém, parece que estamos ficando, cada vez mais, aprisionados no círculo vicioso da "sobre-vivência". Não propriamente no sentido biológico do termo, isto é, de termos que lutar contra predadores, intempéries e certas loucuras e travessuras da mãe natureza, mas na versão mais na sua versão mais moderna: correr contra o tempo o tempo todo, competir como bastardos e loucos, como se bichos fôssemos, desconfiar do outro o tempo todo, como se ele fosse um alienígena, e nos trancafiarmos em "bolhas" de todo tipo, em especial, reformas afetivas e emocionais, enquanto nossos problemas concretos e reais continuam se acumulando sempre mais, como uma montanha de lixo não reciclado que a cada dia cresce sempre mais. E o que é ainda mais terrivelmente incompreensível: insistimos em aplicar a esse esdrúxulo e esquizofrênico tipo de vida, o título de "vida normal", uma espécie de inferno travestido de paraíso.

Xeque-mate: ou repensamos esse modelo de "modus vivendi"  com urgência, já  nos encaminhando para o regime de emergência, ou daqui a pouco nosso trajeto será literalmente rumo à falência – não apenas financeira, política ou ambiental, para com algumas das quais já nos encontramos na "sala de espera", mas falência do próprio conceito de pessoa e ideal de humanidade. No ritmo atual em que seguimos vivendi, corremos o sério risco de um dia olhar para trás, e percebermos que fomos capazes de dominar átomos, decifrar códigos de genes e DNAs, enviar robôs para Marte e empreendermos viagens para outras galáxias, mas falhamos terrível e miseravelmente na única coisa que realmente importava: aprender a conviver como gente e não como bicho, sem  transformar o mundo em um espetáculo trágico de catástrofe e destruição apocalíptica. Se a razão realmente nos diferencia - ainda - dos outros seres e animais não humanos, talvez já esteja passando da hora hora de prová-lo e demonstrá-lo, antes que o nosso instinto animalesco, cansado de tanto esperar e tendo que a todo momento entrar em cena, decida que já tentou de tudo, e sem mais esperança e expectativa alguma de que a razão entre em cena e cumpra o seu papel, decida assumir os dois volantes do carro, de uma vez por todas.

 

( * ) Reflexão enviada pelo auor via whatsapp, de Vitória-ES

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