sábado, 29 de março de 2025

XII- REFLETINO COM LINDOLIVO SOARES MOURA ( * ) "SERIA O FILHO MAIS VELHO, O PERVERSO? VERSO, REVERSO, E O LADO CONTROVERSO DA PARÁBOLA DO FILHO PRÓDIGO"

 

XII-            REFLETINO COM LINDOLIVO SOARES MOURA ( * )

 

 

"SERIA O FILHO  MAIS VELHO, O PERVERSO? VERSO, REVERSO, E O LADO CONTROVERSO DA PARÁBOLA DO FILHO PRÓDIGO"

                       

"Se é verdade que o corpo  é revelador de nossa idade, não é  menos verdade  que  a mente seja reveladora  de  nossa mentalidade" [L.S.M.]

 

Se nossa "hipótese diagnóstica" faz sentido, mesmo admitindo outras igualmente válidas, os três principais personagens da Parábola do Filho Pródigo - o Pai, o Filho mais Novo e o filho mais Velho - são representativos de três diferentes "mentalidades", e não, como geralmente se pensa e se crê, de três diferentes pessoas ou de três diferentes faixas etárias. Tampouco ignoramos as eventuais razões pelas quais a Parábola não fala e sequer menciona a presença de uma mãe e de uma possível irmã, na estória. Apenas estamos optando por trabalhar com os fatos e os personagens citados, ainda que em forma de "hipótese diagnóstica", como já mencionado, deixando a tarefa de interpretar as possíveis razões dessa lacuna ou "ausência" para quem eventualmente tenha interesse sobre o assunto e se disponha a abordá-lo. Nossa pergunta final, portanto, pode ser assim equacionada: que diferentes mentalidades tanto o autor quanto o redator da Parábola do Filho Pródigo - Jesus e Lucas, respectivamente - parecem pretender retratar com essa paradigmática "estória"? As três "mentalidades" com as quais você estará interagindo a seguir, não representam necessariamente minha interpretação preferida para a Parábola. Antes, representam minha intenção e minha tentativa de identificar a intenção primeira e primordial tanto de seu criador como de seu redator. Apenas e tão somente uma tentativa; nada mais que isso. Feita essa ressalva, podemos prosseguir com nosso objetivo principal já mencionado. Um primeiro ponto parágrafo, com sua permissão, claro, talvez possa ser considerado bem-vindo.

 

A MENTALIDADE DA AUTONOMIA IMPULSIVA, REPRESENTADA PELO FILHO E IRMÃO MAIS JOVEM, O PRÓDIGO.

Essa mentalidade pode ser caracterizada, antes e acima de tudo, pelo desejo intenso de liberdade, independência e autonomia, ancoradas na percepção e na crença de que a felicidade se encontra fora dos limites da casa paterno-materna e para além dos limites das regras e normas estabelecidas. Revela-se com mais nitidez na intenção, na escolha e na atitude de quem pretende "descobrir o mundo e a vida" sem se preocupar minimamente com as consequências de sua decisão resoluta e de sua atitude por vezes um tanto precipitada. Orientada pela impulsividade a pessoa acaba tomando decisões baseadas no sentimento e na emoção do momento, sem considerar, como deveria, as prováveis repercussões e consequências futuras de médio e longo prazo. É bastante comum que pais, cuidadores e educadores, interpretem tal mentalidade como sintoma e expressão de indisciplina, insubordinação e rebeldia, visto que nela está impregnada certa visão das regras e normas como estruturas limitantes e até incapacitantes, e não como recursos resguardadores de cuidado e  ampliadores de proteção. Paralela e complementariamente, tal mentalidade quase sempre se faz acompanhar de certa percepção megalomaníaca e de uma acentuada ilusão de autossuficiência, fazendo com que a pessoa - quase sempre jovens e adolescentes  - esteja convencida de que pode viver sem depender de ninguém para absolutamente nada, confiando apenas em seus próprios recursos e em sua auto suficiência. A herança, no caso específico da Parábola em foco, era vista como nada mais que um direito, e como tal foi reivindicada: "dá-me a parte da herança que me cabe"; nem uma palavra a mais. Na maioria das vezes caberá à experiência, quase sempre pela via da  da provação, da dor e do sofrimento, ser a grande interpeladora e mestra dessa mentalidade, visto que o princípio de realidade mais cedo ou mais tarde acaba se impondo e decretando árduas e inesperadas consequências, decorrentes da decisão precipitada e das escolhas imprudentemente malfeitas.

 

Do ponto de vista psicológico, a mentalidade da "autonomia impulsiva" é comum em pessoas que acreditam que a felicidade está antes de tudo, e sobretudo, em algo externo e distante, uma espécie de "utopia" idealizada, que na juventude e na adolescência é percebida não exatamente como algo irrealizável, e sim como algo inesgotável, de caráter aventureiro e desafiador. Para completar o quadro, a falta de experiência e a imaturidade emocional terminam dificultando e por vezes impedindo uma avaliação mais equilibrada e realista das próprias deficiências, fragilidades e limitações. A dor, o sofrimento e a decepção, assim como o impacto que as inúmeras e inesperadas surpresas acabam portando consigo, acabam funcionando como um "ponto de virada", de tomada de consciência e de "caída em si", visando a reconstrução interna em favor de uma visão menos utópica, menos excessivamente otimista e mais realista, ainda que permeada de esperança, como quer e ensina Ariano Suassuna. Por outro lado, a mentalidade da "autonomia impulsiva" pode refletir também um comportamento de esquiva e de fuga, ora em razão das exigências e responsabilidades inerentes a cada fase específica da vida, ora motivado pelo desconforto inevitável  de uma rotina que cerceia a liberdade e a autonomia dos espíritos mais aventureiros e desbravadores, ou simplesmente porque se vive em um lar ou em um ambiente percebidos como  limitantes e "castradores" para quem se percebe como sendo águia e se vê tratado e constrangido a viver como galinha. Quando finalmente a realidade se impõe com toda sua nudez e sua força, costuma provocar um  choque impactante, decorrente do flagrante contraste entre um mundo utopicamente idealizado e o mundo concreto e real, percebido como insano e brutal. Impõe-se assim a necessidade de um novo "recomeço", alicerçado em percepções e crenças mais verossímeis e mais realistas. O Filho Pródigo não foi com certeza poupado desse confronto, o que pode ter sido determinante tanto para sua tomada de consciência como para sua decisão corajosa em empreender o caminho de volta para casa, com todas as consequências adversas que tal decisão poderia eventualmente acarretar.

 

Do ponto de vista espiritual o personagem retratado pelo filho mais novo da Parábola, o Pródigo, parece representar aqueles que buscam sentido e significado antes de tudo em experiências externas, prazerosas porém passageiras, mas que por fim terminam se dando conta de que a realização maior e mais plena do ser humano não se encontra naquilo que ele conquista, possui ou está em condições de possuir, material e economicamente falando, e sim naquilo que se é e na pessoa na qual  cada um vai se tornando ao longo da vida. Essa nova e mais rica percepção - que os orientais chamariam de "iluminação" - culminando com a decisão coranosa e determinada do Filho Pródigo em retornar à casa paterno-materna, sugere a experiência de um autêntico "despertar espiritual", representado pelo aprendizado da mais importante das lições: a de que o amor e a misericórdia são muitíssimo mais poderosos que qualquer erro ou tomada impulsiva de decisão por parte do ser humano. Dessa forma, a epopéia do Filho Pródigo retrata inequivocamente uma trajetória paradigmática, proposta como advertência e orientação, por um lado, e como referência de amor e misericórdia incondicionais, por outro. Com certeza o filho que   decide partir e deixar a casa paterno-materna não era mais o mesmo que a ela retornava tempos depois. O pai-personagem com certeza sabia disso; já o filho mais velho-personagem, com certeza não. Sua mentalidade era bem outra, como veremos a seguir.

 

A MENTALIDADE DA JUSTIÇA MERITOCRÁTICA REPRESENTADA PELO FILHO E IRMÃO MAIS VELHO.

Tal mentalidade está alicerçada, antes e acima de tudo, na percepção e na crença de que esforço e obediência inevitavelmente atraem e devem resultar em privilégios específicos e reconhecimento diferenciado. Quem a adota vê e percebe a vida e o viver de forma rígida, austera, rigorosa e implacável, esperando que as regras e as normas sejam rigorosamente cumpridas por todos, e que consequências e recompensas  sejam distribuídas proporcionalmente, de acordo com o mérito, o esforço e a abdicação de cada um. Observe como tal mentalidade porta consigo um senso de justiça próprio, reputado como ideal e percebido como inquestionável, segundo o qual tudo deve ser distribuído rigorosa e proporcionalmente de acordo com o espírito de sacrifício e o mérito de cada qual. Quem pensa e age dessa forma acabará  obviamente tendo grande dificuldade em lidar com afetos e sentimentos de gratuidade, compaixão, generosidade, e, claro, perdão. Não consegue entender por quais razões alguém que  "errou", "traiu", "escolheu mal", "fez mal uso da liberdade", "malversou bens e riquezas", deva ser recebido, acolhido e reincluído, celebrado e festejado, como se fosse uma espécie de ovelha perdida ou um "morto-recém-ressuscitado". Paradoxalmente, como não poderia deixar de ser, o sentimento primeiro e mais forte que se apodera de tais pessoas é o de "injustiça". Compara-se de pronto e sem rodeios com o beneficiário da remissão da dívida e do perdão do pecado, concluindo que sua fidelidade permanente e seu árduo trabalho não estão sendo reconhecidos e valorizados como seria justo e esperado que assim acontecesse. Tomada de ressentimento, frustração e decepção, a pessoa que se vê assim injustiçada começa interna e silenciosamente a desenvolver um sentimento de amargura, mágoa, desgosto e ressentimento, que finalmente descambam para uma raiva e um ódio sem limites, tanto para com quem perdoa, acolhe e reintegra, como para com quem é perdoado, acolhido e reintegrado. Ao perceber que o mundo não funciona da forma como ela julga e espera ser tratada, tal pessoa termina desencandeando um processo doentio de autocomiseração, por se sentir injustiçada, insuficientemente reconhecida, e pouco valorizada, sobretudo quando confrontada com aqueles que ela considera não serem merecedores de absolutamente nada.

 

Do ponto de vista psicológico pessoas com mentalidade meritocrática costumam ter um forte senso de responsabilidade e uma grande necessidade de reconhecimento e de validação externa. Tendem a medir e Aquilatar seu valor pelo que fazem e se esforçam por fazer, e não pelo que são e se esforçam por ser, o que quase sempre acaba resultando em desequilíbrio  afetivo e insegurança emocional. Não raro a dificuldade em lidar com a compaixão alheia tem sua origem no medo intenso e irracional de que seu próprio esforço possa ser inútil, e portanto não valer a pena. Isso pode acabar gerando graves conflitos interpessoais, pois quem pensa e se comporta dessa forma espera que os outros vivam de acordo com os mesmos critérios rígidos, austeros e implacáveis adotados por sua pessoa. Quando tais expectativas não se confirmam, a desconfiança e o ressentimento acabam tomando lugar e fazendo com que a pessoa vá se afastando cada vez mais do convívio e da interação saudável com os demais, sejam pessoas do seu círculo de trabalho, de escola, de amizade, e de outros mais.

 

Do ponto de vista da espiritualidade a Parábola parece sugerir que o filho mais velho representa aqueles que seguem rigorosamente as regras e normas e esperam um reconhecimento adequado e uma retribuição proporcional por isso, mas se esquecem que Deus não pauta sua conduta e seu comportamento tomando como base o mérito e a justiça estritamente humana, e sim impulsionado pela força de seu amor infinito e incondicional. A rigor a doutrina ou ideologia do mérito não encontra respaldo nem no ensino e menos ainda na prática pastoral de Jesus. Pelo contrário, inúmeras outras parábolas não deixam dúvidas a esse respeito, e tampouco deixam margem para interpretações diferentes e forçadas. Ele declara abertamente que veio para que todos - sem exceção a essa regra - tenham vida, mas não uma vida qualquer, e sim uma vida  plena e abundante. Isso, a começar pelos mais pobres e miseráveis, os doentes e enfermos, os segregados e excluídos, os pequenos e esquecidos, os que estão nus, famintos, sedentos e aprisionados. É com esses que Ele se identifica e manifesta seu desejo de ser identificado. Dessa forma, o grande desafio para os ideólogos, os defensores e os doutrinadores da assim chamada "justiça meritocrática", passa a ser a imperiosa necessidade de compreender que a graça transcende o mérito, que o amor supera a justiça, e que nosso vínculo e nossa relação -  seja para com Deus, seja entre nós humanos - não se baseia em promessas, trocas e escambos de qualquer tipo. E se o mérito, com certeza, tem seu lugar e seu valor numa eventual "história da salvação", ainda assim não podemos nos esquecer, como faz questão de nos lembrar Santo Agostinho, que "quando Deus coroa nossos méritos, nada mais faz que coroar seus próprios dons". Se o Filho mais Velho continuou do lado de fora recusando-se a entrar, apesar dos insistentes apelos do Pai para que ele entrasse, se alegrasse e se juntasse ao coro dos que se regozijavam e agradeciam pelo retorno do filho e do irmão, com certeza não terá sido por falta de amor, de reconhecimento, e muito menos por um ato de injustiça do Pai para com ele, e sim, única e exclusivamente em razão de sua convicção doentia e de sua ideologia meritocrática vétero-testamentária caduca e ultrapassada. Ainda assim sua atitude está longe de poder ser classificada como torpe, cruel, e muito menos perversa. O que ela de fato denota é uma intenção sincera e reta, porém ainda arraigada numa ideologia religiosa chamada "justiça meritocrática", que até mesmo escritos e livros religiosos vétero-testamentários - como é o caso do Livro de Jó - já haviam questionado, colocado sob suspeita, e trazido à discussão. Com o Novo [Testamento], e em especial com o ensinamento e a prática de Jesus, essa discussão definitivamente se encerra. De uma vez por todas, para ser bem claro. "In perpetuum!".

(* ) Reflexão enviada de Vitória –ES pelo autor, via whatsApp

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