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REFLETINDO
COM LINDOLIVO SOARES MOURA ( *)
'REBORN DOLLS' E O RECENTE FENÔMENO DOS BEBÊS ULTRARREALISTAS: DE
VOLTA AO ADMIRÁVEL MUNDO NOVO"
[Parte II]
"Respondeu Jesus:em verdade,
em verdade eu te digo que, se
alguém não nascer de
novo, não pode ver o Reino de
Deus" [Jo 3,5]
"Cada um
sabe a dor e a delícia de ser o que é" [Caetano Velo
À primeira vista, pode
parecer estranho e até bizarro: um adulto que embala um boneco inanimado com a
delicadeza de uma mãe. Que troca suas fraldas, coloca para dormir, fala com
carinho, e até sente sua falta quando não estão perto um do outro. Para uns,
tudo não passa de exagero, para outros, uma verdadeira demonstração de loucura.
Mas, por trás de cada gesto desse delicado ritual, há quase sempre uma história
para ser contada, e a angústia de uma dor mal resolvida. Os bonecos reborn
estão longe de ser simples brinquedos ou meras fantasias da imaginação; em
muitos casos, são extensões emocionais, espelhos que denunciam faltas, perdas,
vazios, desejos e expectativas que a vida real não permitiu que fossem
realizados. Mas não são apenas isso. São também verdadeiras pontes entre o
afeto e a ausência, a ternura e o trauma, o que já se foi e aquilo que insiste
em permanecer. Não se trata, antes de tudo, de julgar, e sim de compreender.
"Humanas actiones, non ridere, no lugere, neque detestari, sed
intelligere" - "Das ações humanas não se deve rir [ou zombar], chorar
[ou lamentar], tampouco detestar [ou odiar], e sim, compreender", advertia
Baruch Spinoza. "Ama e faze o que quiseres", ensinava Santo
Agostinho. E por que dizia isso? Porque "sem amor, nada, absolutamente
nada tem valor", nos lembra São Paulo. O reborn pode ser terapêutico, mas
também pode ser patológico, pode acolher a dor, mas também pode ajudar a
ocultá-la, pode promover a aceitação da perda, mas também pode retardar ou até
mesmo impedir a elaboração do luto. Por essas e outras razões precisamos falar
sobre ele com humanidade e sensibilidade, sem romantismo mas também sem ironia,
sem excesso de otimismo mas também sem passionalismo, sem idealização mas
também sem demonização. O que leva alguém a adotar um boneco artificial e sem
vida, como se fosse um filho de carne e osso? Uma simples pergunta como essa
pode ter várias respostas; respostas que podem ser tudo, menos simples e
óbvias.
Bonecos e bebês reborn -
renascidos, ou nascidos de novo - com certeza não se encaixam no pré-requisito
colocado por Jesus em seu diálogo com Nicodemos, de que para se poder entrar no
Reino de Deus é necessário "nascer de novo". Tampouco se encaixam na
interpretação literal de Nicodemos - "como alguém, já sendo velho, poderá
retornar ao ventre de sua mãe?". Jesus, claro, não falava de um
renascimento físico - uma espécie de "ressurreição" ou de
"reencarnação" - e sim de um renascimento interior e espiritual. No
caso das criações e bebês reborn, é preciso reconhecer, não se trata nem de uma
coisa nem de outra, nem de renascimento físico nem de renascimento espiritual.
Mas então por qual razão eles são chamados de "reborn"? Os bonecos e
as criações reborn recebem esse nome em virtude da magnitude e do refinamento
do processo ao qual eles são submetidos: um autêntico "renascimento
artístico", com a finalidade de torná-los o mais realistas possível, como
se de fato “ganhassem uma nova vida". O termo inglês - "reborn"
- surgiu ao final da década de oitenta e início da década de noventa, sobretudo
nos Estados Unidos e na Europa, dentro de uma comunidade de artistas e artesãos
que recolhiam bonecos comerciais com pouca ou nenhuma expressão realista - em
brechós e lojas de brinquedos de segunda mão - e com técnicas artesanais
apuradas e avançadas os transformavam em réplicas extremamente fiéis aos bebês
humanos. Esse processo de transformação - com pintura de camadas da pele,
veias, cabelo implantado fio a fio, peso corporal ajustado, entre outros - era
tão delicado e detalhado, que seus [re]criadores começaram a se referir a ele
como um verdadeiro e autêntico "renascimento". Desse processo
originou-se a denominação "reborn doll", com o significado de
"boneco renascido". Com o tempo, reborn passou a refletir também o
renascimento simbólico, emocional e até mesmo terapêutico que essas criações
tendem a provocar naqueles que com elas interagem.
A seguir - partes dois e
três - você terá oportunidade de entrar em contato com dez situações - número
aleatório e escolha absolutamente pessoal - que revelam usos e finalidades ora
terapêuticos ora patogênicos dos bonecos e bebês reborn. Alguns são tocantes,
outros intrigantes, outros ainda, desconcertantes. Todos eles, entretanto,
mantendo entre si um elo comum: são profundamente humanos.
[01] Preencher um vazio ou
uma carência que gritam por socorro, mas também reprimir e até impedir a
externalização da dor real: para quem perdeu um filho, passou pela experiência
dramática de um aborto, ou mesmo nunca pôde ser mãe, o bebê reborn pode
representar consolo, conforto e reequilíbrio emocional. Mas, tudo aquilo que
porta consigo potencial para o bem, porta também potencial para o mal, como nos
lembra Lou Marinoff. Em razão disso, a utilização de bebês reborn pode ser
também expressão de fuga, recalque, negação e alienação. Pode tanto ser abraço
simbólico que alivia e consola, quanto tentativa desesperada e enganosa de
calar a dor e reprimir a emoção, pode ser tanto instrumento que trata, restaura
e por vezes cura, quanto falso refúgio que apenas adia o enfrentamento da
realidade e aprofunda a ilusão. Em razão dessa ambiguidade, requer-se que sejam
tratados com cautela, prudência e moderação. Por trás dos braços que acolhem e
do colo que embala um bebê ou uma criança reborn, há quase sempre uma alma
agonizante tentando respirar livremente. Nem sempre a escolha pela adoção
reborn é guiada pela lógica da razão, e sim pelo impulso de um coração em busca
de saída e solução. Tal tipo de vínculo não se explica com palavras; revela-se
no silêncio do toque, do cuidado, e das mais diversas formas de manifestação do
afeto. Tudo isso demanda, antes de tudo, respeito e empatia e compreensão, mas
na maioria das vezes requer também acompanhamento e adequada orientação.
[02] Acompanhar o idoso num
mundo cada vez mais líquido e carente de afeto, mas também se transformar em
fetiche gerador de fixação e regressão: num mundo cada vez mais apressado e
automatizado como o nosso, muitos idosos têm tempo demais e companhia de menos.
O reborn pode sim, em situações desse tipo, permitir a "troca"
saudável de afeto como uma alternativa viável; como "substituto" e
equivalente do real, com certeza jamais. Há quem encontre nele sentido e razão
de continuar vivendo, acreditando, mas há também quem dele faça uso como forma
de esquiva, para não ter que enfrentar a carência e o vazio reais ao redor de
si. Nem sempre, portanto, a companhia reborn cumpre uma função reconfortadora e
terapêutica, e mesmo quando isso ocorre, pode estar sendo à custa de efeitos
colaterais indesejáveis e prejudiciais. No presente caso, seu uso é também
sintomático: revela, com inconfundível clareza a falha e a omissão, da parte de
que quem foi cuidado, para com quem tanto se dedicou e tanto cuidou. Muitos
idosos se veem sozinhos em casas grandes e demasiado silenciosas, com dias excessivamente longos e afeto demasiado
curto. Aqui o reborn não é brinquedo ou simples passatempo; é companhia, é
parte de um ritual, é revivescência, possível, de um tempo em que o abraço e o
toque eram reais. A carência afetiva do
idoso, claro, não se resolve adequadamente com bonecos inanimados, sem vida,
mas tampouco deve ser menosprezada e menos ainda ridicularizada quando consegue
encontrar uma alternativa de conforto para a solidão e alívio para o coração.
[03] Amenizar e apaziguar
dores e crises emocionais, mas também aprofundá-las e agravá-las ainda mais: em
crises como ansiedade, pânico e depressão, incluindo traumas psíquicos e
emocionais, criações reborn podem servir de conforto, apoio e âncora, mas
podem também representar desvios, rota
de fuga, regressão e negação. Também aqui a linha fronteiriça entre o saudável
e o patológico costuma ser tênue, razão pela qual é recomendável que esse tipo
de vínculo receba acompanhamento e orientação. Quem se apega em excesso pode
estar clamando por socorro, mesmo quando envolto no mais completo silêncio.
Mais do que simplesmente criticar ou ridicularizar, é preciso observar com
atenção, expressar empatia, e intervir com compaixão. Não raro a companhia
reborn pode estar representando o principal e até mesmo único ponto de apoio e
equilíbrio emocional para determinada pessoa. E embora uma companhia reborn não
tenha vida, ela pode, simbolicamente, sustentar alguém que está por um fio,
quem sabe, prestes ao acometimento de um gesto tresloucado de ameaça à própria
vida. Antes de condenar ou retirar esse suporte, portanto, é preciso que se
esteja seguro de que a alternativa a ser oferecida é melhor e mais funcional do
que aquela pela qual se decide por abrir mão.
[04] Reconectar memórias
onde a lucidez se torna cada vez mais ausente, mas também favorecer regressão
profunda e isolamento afetivo: pessoas com Alzheimer e outras doenças
degenerativas, capazes de comprometer a
memória e a evocação saudável de lembranças e recordações, muitas vezes reagem
positivamente com acolhimento e afeição para com a companhia reborn. Nesse caso
o vinculo pode atuar como uma ferramenta poderosa de suporte e estimulação
emocional. Mas também aqui é preciso cuidado. Se usada de forma inadequada, a
companhia reborn pode mais confundir que contribuir para a clareza mental e o
equilíbrio emocional. O que para uns tem potencial para acalmar e tranquilizar,
para outros pode causar estranhamento, angústia e desconforto. Há pacientes que
ao interagir com o boneco reborn voltam a sorrir, a cantar, e a [re]contar
histórias de um tempo que parecia definitivamente perdido no passado.
Diferentemente da memória racional, a memória emocional responde melhor ao
tato, ao cheiro, à imagem e aos estímulos sensoriais em geral. Entretanto, o excesso de exposição a tais
estímulos, desacompanhado de supervisão e orientação, pode desencadear delírios
e confusões tanto mentais como emocionais, difíceis de ser revertidos. A linha
fronteiriça entre o terapêutico e o patogênico,
nesse caso, é sutil e delicada. A intervenção de um profissional especializado
contribui, e muito, para que a função terapêutica prevaleça sobre a patológica.
[05] Possibilitar a vivência
de um sonho não realizado, mas também sustentar uma ilusão humanamente
impossível: há mulheres que encontram no bebê reborn uma alternativa bem
sucedida de vivenciar o amor materno que, por uma série de razões, não pôde ser
materializado em uma gravidez na vida real. A opção pela adoção reborn decorre
do fato de que nem sempre o casal está mental, emocional e economicamente
capacitado para arcar com a criação de uma criança ou de um bebê humanos, a
primeira alternativa geralmente sugerida nesses casos. Assim, o ideal
inatingível cede lugar ao real possível. Num outro extremo estão aquelas
mulheres que optam pela adoção reborn numa clara postura de negação e recusa em
aceitar a impossibilidade de serem mães biológicas, persistindo obstinadamente
na expectativa por uma gestação reconhecidamente impossível. O fato é que nem
sempre o amor impossibilitado de ser vivido na vida real pode ser direcionado,
com sucesso, para uma réplica humana, por mais perfeita que ela seja. Se a
decisão pela adoção reborn é orientada por simples intuição e improvisação, e
não à luz de acompanhamento e orientação profissional, o risco de insucesso
aumenta consideravelmente. Ainda assim parece correto afirmar que expectativas
e sonhos considerados impossíveis sempre
oferecem alternativas simbólicas e válidas de vivenciação - tais como as criações
reborn - sobretudo quando a empatia e a compreensão entram em cena. É o que
sugere o vídeo anexo com o qual você poderá interagir em seguida, já
finalizando esta segunda e penúltima parte de nossa reflexão.
(
* ) Texto enviado pelo autor, via Whatsapp, de Vitória (ES).
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