sábado, 21 de junho de 2025

X- REFLETINDO COM LINDOLIVO SOARES MOURA ( *) 'REBORN DOLLS' E O RECENTE FENÔMENO DOS BEBÊS ULTRARREALISTAS: DE VOLTA AO ADMIRÁVEL MUNDO NOVO" [Parte II]

 

 

X-      REFLETINDO COM LINDOLIVO SOARES MOURA ( *)

 

'REBORN DOLLS' E O RECENTE FENÔMENO DOS BEBÊS ULTRARREALISTAS: DE VOLTA AO ADMIRÁVEL MUNDO NOVO"

 

                         [Parte II]

 "Respondeu Jesus:em  verdade,  em verdade eu te digo  que, se alguém não  nascer  de  novo,  não pode ver o Reino de Deus" [Jo 3,5]

 "Cada um  sabe a dor e a delícia de ser o que é"  [Caetano Velo

  

À primeira vista, pode parecer estranho e até bizarro: um adulto que embala um boneco inanimado com a delicadeza de uma mãe. Que troca suas fraldas, coloca para dormir, fala com carinho, e até sente sua falta quando não estão perto um do outro. Para uns, tudo não passa de exagero, para outros, uma verdadeira demonstração de loucura. Mas, por trás de cada gesto desse delicado ritual, há quase sempre uma história para ser contada, e a angústia de uma dor mal resolvida. Os bonecos reborn estão longe de ser simples brinquedos ou meras fantasias da imaginação; em muitos casos, são extensões emocionais, espelhos que denunciam faltas, perdas, vazios, desejos e expectativas que a vida real não permitiu que fossem realizados. Mas não são apenas isso. São também verdadeiras pontes entre o afeto e a ausência, a ternura e o trauma, o que já se foi e aquilo que insiste em permanecer. Não se trata, antes de tudo, de julgar, e sim de compreender. "Humanas actiones, non ridere, no lugere, neque detestari, sed intelligere" - "Das ações humanas não se deve rir [ou zombar], chorar [ou lamentar], tampouco detestar [ou odiar], e sim, compreender", advertia Baruch Spinoza. "Ama e faze o que quiseres", ensinava Santo Agostinho. E por que dizia isso? Porque "sem amor, nada, absolutamente nada tem valor", nos lembra São Paulo. O reborn pode ser terapêutico, mas também pode ser patológico, pode acolher a dor, mas também pode ajudar a ocultá-la, pode promover a aceitação da perda, mas também pode retardar ou até mesmo impedir a elaboração do luto. Por essas e outras razões precisamos falar sobre ele com humanidade e sensibilidade, sem romantismo mas também sem ironia, sem excesso de otimismo mas também sem passionalismo, sem idealização mas também sem demonização. O que leva alguém a adotar um boneco artificial e sem vida, como se fosse um filho de carne e osso? Uma simples pergunta como essa pode ter várias respostas; respostas que podem ser tudo, menos simples e óbvias.

Bonecos e bebês reborn - renascidos, ou nascidos de novo - com certeza não se encaixam no pré-requisito colocado por Jesus em seu diálogo com Nicodemos, de que para se poder entrar no Reino de Deus é necessário "nascer de novo". Tampouco se encaixam na interpretação literal de Nicodemos - "como alguém, já sendo velho, poderá retornar ao ventre de sua mãe?". Jesus, claro, não falava de um renascimento físico - uma espécie de "ressurreição" ou de "reencarnação" - e sim de um renascimento interior e espiritual. No caso das criações e bebês reborn, é preciso reconhecer, não se trata nem de uma coisa nem de outra, nem de renascimento físico nem de renascimento espiritual. Mas então por qual razão eles são chamados de "reborn"? Os bonecos e as criações reborn recebem esse nome em virtude da magnitude e do refinamento do processo ao qual eles são submetidos: um autêntico "renascimento artístico", com a finalidade de torná-los o mais realistas possível, como se de fato “ganhassem uma nova vida". O termo inglês - "reborn" - surgiu ao final da década de oitenta e início da década de noventa, sobretudo nos Estados Unidos e na Europa, dentro de uma comunidade de artistas e artesãos que recolhiam bonecos comerciais com pouca ou nenhuma expressão realista - em brechós e lojas de brinquedos de segunda mão - e com técnicas artesanais apuradas e avançadas os transformavam em réplicas extremamente fiéis aos bebês humanos. Esse processo de transformação - com pintura de camadas da pele, veias, cabelo implantado fio a fio, peso corporal ajustado, entre outros - era tão delicado e detalhado, que seus [re]criadores começaram a se referir a ele como um verdadeiro e autêntico "renascimento". Desse processo originou-se a denominação "reborn doll", com o significado de "boneco renascido". Com o tempo, reborn passou a refletir também o renascimento simbólico, emocional e até mesmo terapêutico que essas criações tendem a provocar naqueles que com elas interagem.

A seguir - partes dois e três - você terá oportunidade de entrar em contato com dez situações - número aleatório e escolha absolutamente pessoal - que revelam usos e finalidades ora terapêuticos ora patogênicos dos bonecos e bebês reborn. Alguns são tocantes, outros intrigantes, outros ainda, desconcertantes. Todos eles, entretanto, mantendo entre si um elo comum: são profundamente humanos.

[01] Preencher um vazio ou uma carência que gritam por socorro, mas também reprimir e até impedir a externalização da dor real: para quem perdeu um filho, passou pela experiência dramática de um aborto, ou mesmo nunca pôde ser mãe, o bebê reborn pode representar consolo, conforto e reequilíbrio emocional. Mas, tudo aquilo que porta consigo potencial para o bem, porta também potencial para o mal, como nos lembra Lou Marinoff. Em razão disso, a utilização de bebês reborn pode ser também expressão de fuga, recalque, negação e alienação. Pode tanto ser abraço simbólico que alivia e consola, quanto tentativa desesperada e enganosa de calar a dor e reprimir a emoção, pode ser tanto instrumento que trata, restaura e por vezes cura, quanto falso refúgio que apenas adia o enfrentamento da realidade e aprofunda a ilusão. Em razão dessa ambiguidade, requer-se que sejam tratados com cautela, prudência e moderação. Por trás dos braços que acolhem e do colo que embala um bebê ou uma criança reborn, há quase sempre uma alma agonizante tentando respirar livremente. Nem sempre a escolha pela adoção reborn é guiada pela lógica da razão, e sim pelo impulso de um coração em busca de saída e solução. Tal tipo de vínculo não se explica com palavras; revela-se no silêncio do toque, do cuidado, e das mais diversas formas de manifestação do afeto. Tudo isso demanda, antes de tudo, respeito e empatia e compreensão, mas na maioria das vezes requer também acompanhamento e adequada orientação.

[02] Acompanhar o idoso num mundo cada vez mais líquido e carente de afeto, mas também se transformar em fetiche gerador de fixação e regressão: num mundo cada vez mais apressado e automatizado como o nosso, muitos idosos têm tempo demais e companhia de menos. O reborn pode sim, em situações desse tipo, permitir a "troca" saudável de afeto como uma alternativa viável; como "substituto" e equivalente do real, com certeza jamais. Há quem encontre nele sentido e razão de continuar vivendo, acreditando, mas há também quem dele faça uso como forma de esquiva, para não ter que enfrentar a carência e o vazio reais ao redor de si. Nem sempre, portanto, a companhia reborn cumpre uma função reconfortadora e terapêutica, e mesmo quando isso ocorre, pode estar sendo à custa de efeitos colaterais indesejáveis e prejudiciais. No presente caso, seu uso é também sintomático: revela, com inconfundível clareza a falha e a omissão, da parte de que quem foi cuidado, para com quem tanto se dedicou e tanto cuidou. Muitos idosos se veem sozinhos em casas grandes e demasiado silenciosas, com dias  excessivamente longos e afeto demasiado curto. Aqui o reborn não é brinquedo ou simples passatempo; é companhia, é parte de um ritual, é revivescência, possível, de um tempo em que o abraço e o toque  eram reais. A carência afetiva do idoso, claro, não se resolve adequadamente com bonecos inanimados, sem vida, mas tampouco deve ser menosprezada e menos ainda ridicularizada quando consegue encontrar uma alternativa de conforto para a solidão e alívio para o coração.

[03] Amenizar e apaziguar dores e crises emocionais, mas também aprofundá-las e agravá-las ainda mais: em crises como ansiedade, pânico e depressão, incluindo traumas psíquicos e emocionais, criações reborn podem servir de conforto, apoio e âncora, mas podem  também representar desvios, rota de fuga, regressão e negação. Também aqui a linha fronteiriça entre o saudável e o patológico costuma ser tênue, razão pela qual é recomendável que esse tipo de vínculo receba acompanhamento e orientação. Quem se apega em excesso pode estar clamando por socorro, mesmo quando envolto no mais completo silêncio. Mais do que simplesmente criticar ou ridicularizar, é preciso observar com atenção, expressar empatia, e intervir com compaixão. Não raro a companhia reborn pode estar representando o principal e até mesmo único ponto de apoio e equilíbrio emocional para determinada pessoa. E embora uma companhia reborn não tenha vida, ela pode, simbolicamente, sustentar alguém que está por um fio, quem sabe, prestes ao acometimento de um gesto tresloucado de ameaça à própria vida. Antes de condenar ou retirar esse suporte, portanto, é preciso que se esteja seguro de que a alternativa a ser oferecida é melhor e mais funcional do que aquela pela qual se decide por abrir mão.

 

[04] Reconectar memórias onde a lucidez se torna cada vez mais ausente, mas também favorecer regressão profunda e isolamento afetivo: pessoas com Alzheimer e outras doenças degenerativas, capazes de  comprometer a memória e a evocação saudável de lembranças e recordações, muitas vezes reagem positivamente com acolhimento e afeição para com a companhia reborn. Nesse caso o vinculo pode atuar como uma ferramenta poderosa de suporte e estimulação emocional. Mas também aqui é preciso cuidado. Se usada de forma inadequada, a companhia reborn pode mais confundir que contribuir para a clareza mental e o equilíbrio emocional. O que para uns tem potencial para acalmar e tranquilizar, para outros pode causar estranhamento, angústia e desconforto. Há pacientes que ao interagir com o boneco reborn voltam a sorrir, a cantar, e a [re]contar histórias de um tempo que parecia definitivamente perdido no passado. Diferentemente da memória racional, a memória emocional responde melhor ao tato, ao cheiro, à imagem e aos estímulos sensoriais em geral.  Entretanto, o excesso de exposição a tais estímulos, desacompanhado de supervisão e orientação, pode desencadear delírios e confusões tanto mentais como emocionais, difíceis de ser revertidos. A linha fronteiriça  entre o terapêutico e o patogênico, nesse caso, é sutil e delicada. A intervenção de um profissional especializado contribui, e muito, para que a função terapêutica prevaleça sobre a patológica.

[05] Possibilitar a vivência de um sonho não realizado, mas também sustentar uma ilusão humanamente impossível: há mulheres que encontram no bebê reborn uma alternativa bem sucedida de vivenciar o amor materno que, por uma série de razões, não pôde ser materializado em uma gravidez na vida real. A opção pela adoção reborn decorre do fato de que nem sempre o casal está mental, emocional e economicamente capacitado para arcar com a criação de uma criança ou de um bebê humanos, a primeira alternativa geralmente sugerida nesses casos. Assim, o ideal inatingível cede lugar ao real possível. Num outro extremo estão aquelas mulheres que optam pela adoção reborn numa clara postura de negação e recusa em aceitar a impossibilidade de serem mães biológicas, persistindo obstinadamente na expectativa por uma gestação reconhecidamente impossível. O fato é que nem sempre o amor impossibilitado de ser vivido na vida real pode ser direcionado, com sucesso, para uma réplica humana, por mais perfeita que ela seja. Se a decisão pela adoção reborn é orientada por simples intuição e improvisação, e não à luz de acompanhamento e orientação profissional, o risco de insucesso aumenta consideravelmente. Ainda assim parece correto afirmar que expectativas e sonhos considerados  impossíveis sempre oferecem alternativas simbólicas e válidas de vivenciação - tais como as criações reborn - sobretudo quando a empatia e a compreensão entram em cena. É o que sugere o vídeo anexo com o qual você poderá interagir em seguida, já finalizando esta segunda e penúltima parte de nossa reflexão.

( * ) Texto enviado pelo autor, via Whatsapp, de Vitória (ES).

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