sexta-feira, 11 de julho de 2025

XI- - REFLETINDO COM LINDOLIVO SOARES MOURA ( *) "CENAS E CENÁRIOS DO COTIDIANO: UMA HOMENAGEM A RUBEM ALVES" -- PARTE II

 

XI- -      REFLETINDO COM LINDOLIVO SOARES MOURA ( *)

 

"CENAS E CENÁRIOS DO COTIDIANO: UMA HOMENAGEM A RUBEM ALVES"    -- PARTE II

  "- E  por  que  você sempre  usa essa xícara velha? – Por  que  ela  sempre   me ouve e conhece  toda  a  minha vida"  [L.S.M.]

Observação.: esta segunda parte complementa a primeira de mesmo título.

CENA 11

– O que vai ser hoje?

– Um corte que me devolva vontade e alegria de viver.

– Isso demora.

– Eu espero.

– Quer lavar antes?

– Quero esquecer primeiro.

– A água ajuda.

– E a tesoura, não?

– Também. Mas corta só o que pesa mais.

– Então corta também os silêncios. Eles são difíceis de pentear.

– Desse jeito vai sair daqui leve.

– Leve ou vazio?

– Depende do que você ainda vai estar carregando quando voltar para casa.

CENA 12

– Pai, posso ir na casa do Rafa hoje?

– E a lição?

– Já fiz.

– E a louça?

– Tá lavada.

– E o beijo na testa da sua mãe?

– Dei dois.

– Então pode.

– Posso dormir lá?

– Só se prometer ligar antes.

– Posso ir sem celular?

– Pode! Mas sem juízo, não.

– Juízo eu levo. Celular não.

– Então leva meu coração também.

– Deixa comigo. Eu devolvo amanhã.

– Inteiro?

– Inteiro, pai, prometo.

– Vai. Mas toma cuidado com quem vai abrir seu coração.

CENA 13

– Moço, moço, você deixou cair essa moeda.

– Pode ficar com ela.

– Mas é sua.

– Está enganada. É do mundo.

– Como assim?

– Toda moeda que cai é sorte lançada e compartilhada.

– Isso existe?

– Mais do que nota de cem.

– Então tá! Obrigado.

– Compra algo bom.

– Um doce, um bolo, uma bala?

– Uma memória. Nada é tão bom quanto uma boa recordação.

CENA 14

– Você tá bem?

– Tô tentando parecer.

– E por dentro?

– Tudo desorganizado.

– Quer um abraço?

– Preciso.

– Então vem.

– Obrigado. De coração.

– Não há de quê! Posso sentar?

– Se aguentar o que tem por dentro.

– O que tem dentro?

– Lembrança de alguém que se foi sem dizer adeus.

– Quer que eu fique quieto?

– Ficar é o que mais importa.

– Então eu fico.

– Mesmo sem saber quem era?

– Mesmo assim.

– Você é dos bons.

– Sou alguém que já perdeu alguém também.

CENA 15

– Mãe, você acha que Deus ouve tudo?

– Ouve.

– Mesmo quando a gente só pensa?

– Principalmente quando a gente só pensa.

– E se eu pensar coisa ruim?

– Ele entende.

– E se eu não quiser falar com Ele?

– Ele senta do seu lado e espera.

– E amanhã, e depois, e depois?

– Ele ainda vai estar ali.

– Igual você?

– Igualzinho.

CENA 16

– Esse vestido é novo?

– Não. Mas hoje ele me serviu como nunca.

– Tá linda.

– Tô não.

– Tá sim.

– Tô tentando parecer alguém que tá bem, só isso.

– E tá conseguindo.

– Só por fora.

– Posso te ajudar com o que está rolando por dentro?

– Pode começar dizendo que eu ainda sou eu.

– Você ainda é você. Só tá doendo onde ninguém vê.

– Obrigada. Valeu.

– Tudo bem. Quando doer demais, e quiser trocar de dor, me chama. Tenho algumas que vez por outra gostaria de trocar também.

CENA 17

– Mãe, você já se arrependeu de alguma coisa na sua vida?

– Já sim.

– Do quê?

– De não ter divertido e dançado mais.

– E por que não dançou?

– Porque achava que não tinha tempo.

– E não tinha?

– Tinha, mas gastei com medo e vergonha.

– E se voltar a dançar agora?

– Vai ser muito bom e bonito, com certeza. Mesmo com joelho doendo e coluna meio fora do eixo.

CENA 18

– Você ainda escreve?

– Escrevo.

– Sobre o quê?

– Sobre aquilo que não consigo dizer.

– E adianta alguma coisa?

– Às vezes. Outras vezes, piora.

– E por que continua escrevendo?

– Porque piorar em silêncio é pior ainda ainda mais.

– Posso ler?

– Pode. Mas lê devagar, com calma.

– Por quê?

– Porque tem palavras que ainda estão doendo.

CENA 19

– Que perfume é esse?

– Lembrança.

– Lembrança de quê?

– De uma mulher que partiu deixando cheiro no vento.

– Está falando da sua mulher?

– Estou falando da minha história.

– Acabou?

– Não. Só virou capítulo antigo.

– Você ainda relê de vez em quando?

– De vez em quando, sim. Mas hoje prefiro abrir páginas novas. Me sinto melhor com elas.

CENA 20

– Já ouviu o som do varal batendo no vento?

– Já sim.

– Parece alguém chamando pelo nome da gente.

– Isso eu nunca reparei.

– Então escuta agora.

– É mesmo... tem um ritmo de saudade.

– Varal é isso: roupa dançando sem ninguém dentro.

– Triste e ao mesmo tempo bonito.

– É sim. Igual a vida da gente.

 

Obs.: esta segunda parte continua e se complementa com as seguintes, de

( * ) Texto enviado pelo autor, via Whatsapp, de Vitória (ES)

Nenhum comentário:

Postar um comentário