XI- -
REFLETINDO
COM LINDOLIVO SOARES MOURA ( *)
"CENAS E
CENÁRIOS DO COTIDIANO: UMA HOMENAGEM A RUBEM ALVES" -- PARTE II
"- E
por que você sempre
usa essa xícara velha? – Por
que ela sempre
me ouve e conhece toda a
minha vida" [L.S.M.]
Observação.: esta segunda parte complementa a
primeira de mesmo título.
CENA 11
– O que vai ser hoje?
– Um corte que me devolva vontade e alegria
de viver.
– Isso demora.
– Eu espero.
– Quer lavar antes?
– Quero esquecer primeiro.
– A água ajuda.
– E a tesoura, não?
– Também. Mas corta só o que pesa mais.
– Então corta também os silêncios. Eles são
difíceis de pentear.
– Desse jeito vai sair daqui leve.
– Leve ou vazio?
– Depende do que você ainda vai estar
carregando quando voltar para casa.
CENA 12
– Pai, posso ir na casa do Rafa hoje?
– E a lição?
– Já fiz.
– E a louça?
– Tá lavada.
– E o beijo na testa da sua mãe?
– Dei dois.
– Então pode.
– Posso dormir lá?
– Só se prometer ligar antes.
– Posso ir sem celular?
– Pode! Mas sem juízo, não.
– Juízo eu levo. Celular não.
– Então leva meu coração também.
– Deixa comigo. Eu devolvo amanhã.
– Inteiro?
– Inteiro, pai, prometo.
– Vai. Mas toma cuidado com quem vai abrir
seu coração.
CENA 13
– Moço, moço, você deixou cair essa moeda.
– Pode ficar com ela.
– Mas é sua.
– Está enganada. É do mundo.
– Como assim?
– Toda moeda que cai é sorte lançada e
compartilhada.
– Isso existe?
– Mais do que nota de cem.
– Então tá! Obrigado.
– Compra algo bom.
– Um doce, um bolo, uma bala?
– Uma memória. Nada é tão bom quanto uma boa
recordação.
CENA 14
– Você tá bem?
– Tô tentando parecer.
– E por dentro?
– Tudo desorganizado.
– Quer um abraço?
– Preciso.
– Então vem.
– Obrigado. De coração.
– Não há de quê! Posso sentar?
– Se aguentar o que tem por dentro.
– O que tem dentro?
– Lembrança de alguém que se foi sem dizer
adeus.
– Quer que eu fique quieto?
– Ficar é o que mais importa.
– Então eu fico.
– Mesmo sem saber quem era?
– Mesmo assim.
– Você é dos bons.
– Sou alguém que já perdeu alguém também.
CENA 15
– Mãe, você acha que Deus ouve tudo?
– Ouve.
– Mesmo quando a gente só pensa?
– Principalmente quando a gente só pensa.
– E se eu pensar coisa ruim?
– Ele entende.
– E se eu não quiser falar com Ele?
– Ele senta do seu lado e espera.
– E amanhã, e depois, e depois?
– Ele ainda vai estar ali.
– Igual você?
– Igualzinho.
CENA 16
– Esse vestido é novo?
– Não. Mas hoje ele me serviu como nunca.
– Tá linda.
– Tô não.
– Tá sim.
– Tô tentando parecer alguém que tá bem, só
isso.
– E tá conseguindo.
– Só por fora.
– Posso te ajudar com o que está rolando por
dentro?
– Pode começar dizendo que eu ainda sou eu.
– Você ainda é você. Só tá doendo onde
ninguém vê.
– Obrigada. Valeu.
– Tudo bem. Quando doer demais, e quiser
trocar de dor, me chama. Tenho algumas que vez por outra gostaria de trocar
também.
CENA 17
– Mãe, você já se arrependeu de alguma coisa
na sua vida?
– Já sim.
– Do quê?
– De não ter divertido e dançado mais.
– E por que não dançou?
– Porque achava que não tinha tempo.
– E não tinha?
– Tinha, mas gastei com medo e vergonha.
– E se voltar a dançar agora?
– Vai ser muito bom e bonito, com certeza.
Mesmo com joelho doendo e coluna meio fora do eixo.
CENA 18
– Você ainda escreve?
– Escrevo.
– Sobre o quê?
– Sobre aquilo que não consigo dizer.
– E adianta alguma coisa?
– Às vezes. Outras vezes, piora.
– E por que continua escrevendo?
– Porque piorar em silêncio é pior ainda
ainda mais.
– Posso ler?
– Pode. Mas lê devagar, com calma.
– Por quê?
– Porque tem palavras que ainda estão doendo.
CENA 19
– Que perfume é esse?
– Lembrança.
– Lembrança de quê?
– De uma mulher que partiu deixando cheiro no
vento.
– Está falando da sua mulher?
– Estou falando da minha história.
– Acabou?
– Não. Só virou capítulo antigo.
– Você ainda relê de vez em quando?
– De vez em quando, sim. Mas hoje prefiro
abrir páginas novas. Me sinto melhor com elas.
CENA 20
– Já ouviu o som do varal batendo no vento?
– Já sim.
– Parece alguém chamando pelo nome da gente.
– Isso eu nunca reparei.
– Então escuta agora.
– É mesmo... tem um ritmo de saudade.
– Varal é isso: roupa dançando sem ninguém
dentro.
– Triste e ao mesmo tempo bonito.
– É sim. Igual a vida da gente.
Obs.: esta segunda parte continua e se
complementa com as seguintes, de
( * ) Texto enviado pelo autor, via Whatsapp,
de Vitória (ES)
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