sábado, 5 de julho de 2025

XII- REFLETINDO COM LINDOLIVO SOARES MOURA ( *) CENAS E CENÁRIOS DO COTIDIANO: UMA HOMENAGEM A RUBEM ALVES"

 

 

XII-       REFLETINDO COM LINDOLIVO SOARES MOURA ( *)

 

CENAS  E CENÁRIOS DO COTIDIANO: UMA HOMENAGEM A RUBEM ALVES"

                         [Parte I]

  "- Olá!  Quer namorar  comigo? – Vê se  se  enxerga!" - Não posso! Sou cego!"[L.S.M.]

 

Há cenas que passam diante dos nossos olhos todos os dias, mas que só um coração sensível e atento consegue registrar. Uma palavra dita ao acaso, um silêncio entre frases, um gesto distraído que revela alegria, dor, raiva, memória ou ternura. Não são cenas de novela ou de cinema. São recortes do real - às vezes cômico, às vezes pesado, mas sempre repleto da mais profunda humanidade. Nesta coletânea, selecionamos uma série de pequenos fragmentos do cotidiano, uma homenagem ao grande poeta e sonhador Rubem Alves. Sem narrador, sem explicação, sem moldura. Somente a fala viva de quem se senta num banco, entra num salão, olha para o céu ou carrega sacolas pela rua. Tudo simples, mas nada banal. Porque é do simples - da matéria da vida - que se tece o fio do extraordinário. Não importa como esteja seu estado mental nesse momento. Provavelmente uma dessas cenas vai tocar seu coração.

 

CENA 01

 

– Olá! Quer namorar comigo?

– Vê se se enxerga!

– Tô tentando, desde o dia em que você começou a passar por mim desviando o olhar.

– Já conheço essa história. Começa com um pedido de namoro e termina em boletim de ocorrência.

– E se terminar em casamento?

– Pior ainda.

– Qual o medo?

– De alguém que começa com uma cantada gasta demais.

– E se eu tentar fazendo silêncio?

– Silêncio também pode ser grito.

– Então me ensina a falar bonito.

– Não precisa. Só aprender a ouvir direito.

– Tô ouvindo agora.

– Então vê se entende: não estou interessada em você.

– E se um dia ficar?

– Com certeza você não vai mais estar aqui.

– Não quer tentar?

– Não preciso. Já perdi outras apostas parecidas. Fui.

CENA 02

– Vó, me dá café?

– Claro! Mas senta primeiro.

– Por quê?

– Porque café se toma com calma, sem correria.

– Mas tô com pressa.

– Café tomado com pressa é veneno.

– Vó, fala sério.

– Sério eu só falo depois do segundo gole.

– E por que você só usa essa xícara velha?

– Porque ela sempre me ouviu a vida toda.

– Não tem medo de quebrar?

– Quem tem medo de quebrar ou de errar não vive como se deve.

– E se eu derrubar?

– Com certeza vou chorar. Mas te perdoo.

– Me perdoa porque me ama?

– Também por isso. Mas porque café e neto escorrem fácil fácil.

– E se eu só derramar um pouquinho?

– Leva uma palmada e limpa tudinho.

CENA 03

– Olá! Esse banco tá ocupado?

– Tá esperando por alguém que não esteja apressado.

– Então posso me sentar?

– Claro! Mas só se não trouxer barulho junto.

– Eu só trouxe silêncio.

– Isso é bom. É o que tá em falta por aqui.

– O senhor vem sempre aqui?

– Todos os dias, às 17 horas.

– Por que todos os dias, e exatamente às 17 horas?

– Porque o mundo desacelera às 17.

– E o que  faz nesse meio-tempo?

– Dou milho aos pombos, escuto o vento, e fico tentando entender a pressa das pessoas.

– Consegue?

– Quase nunca.

– Então por que insiste?

– Porque não fazer nada também é um jeito de desistir.

– Posso voltar amanhã?

– Se não trouxer perguntas difíceis demais, pode. Será um prazer.

CENA 04

– Mãe, posso te contar uma coisa?

– Pode, claro. Mas vê se termina antes de começar a novela.

– Eu beijei o Pedro.

– Que Pedro?

– O Pedro da esquina.

– Você gosta dele?

– Não sei direito.

– Então por que beijou?

– Porque ele me fez rir.

– E agora, o que vai ser?

– Fiquei em dúvida se ele gostou ou não.

– E se não tiver gostado?

– Eu vou fingir que não ligo.

– E vai ligar?

– Ah mãe, claro! E Muito!

– Então escuta: quem faz a gente rir, às vezes só tá brincando, distraído ou zuando a gente.

– E se eu fizer ele rir de volta?

– Aí talvez ele volte, ou quem sabe fuja mais rápido.

– E você vai brigar comigo?

– Prometo que não. Só não quero te ver chorando escondida.

– Ah, mãeee!

CENA 05

– Senhora, deixou cair essa fotografia.

– Ah... Obrigada. É do meu marido. Ele é falecido.

– Posso perguntar há quanto tempo ele se foi?

– Pode, claro! Ele partiu em 2009.

– E a senhora ainda carrega a foto dele no bolso?

– No bolso da blusa, e bem perto do peito.

– É amor ainda?

– É lembrança. Amor se espalha e se dissolve facilmente. Já lembrança insiste em ficar o tempo todo com a gente.

– Ele gostava dessa praça?

– E como! Gostava mais do que de mim.

– E por que a senhora vem aqui?

– Porque eu ainda gosto dos lugares que ele amava.

– A senhora já pensou em gostar de outros lugares?

– Já. Mas não consegui. Essa praça era nosso ponto de encontro.

– E o que a senhora sente quando fica sentada aqui?

– Que ele ainda me espera, e que permanece o tempo todo me observando. Mas isso você não pode perceber nem sentir.

CENA 06

– A senhora quer ajuda com essas sacolas?

– Quero. Mas por favor não me chama de senhora.

– Desculpa.

– Me chama de moça. Me sinto melhor.

– Então vou refazer tudo. Moça, posso te ajudar?

– Pode sim, por favor.

– Pode me dizer até onde você vai?

– Até onde as costas aguentarem.

– Quer que eu leve tudo até o portão?

– Quero que leve até a minha alma, se puder. Ela também anda cansada.

– A alma? Como assim?

– Esquece! Há coisas que a gente só aprende mais tarde. A alma é onde mora o cansaço que a gente não mostra.

– Então pode incluir a alma nos pacotes.

– Obrigada, meu filho. Mas esse tipo de peso não tem como você ajudar a carregar. Mesmo assim, obrigada por tentar.

CENA 07

– Você vem sempre aqui?

– Só quando estou precisando que o mundo me esqueça.

– E hoje precisa?

– Hoje mais do que ontem.

– Posso me sentar?

– Fique à vontade. Mas por favor, sem falar demais.

– Tudo bem. Sem problemas.

– Você é bom de silêncio?

– Pra dizer a verdade, sou melhor do que de conversa.

– Isso é raro hoje em dia.

– Eu sei. Mas isso às vezes me faz sentir sozinho.

– Então aproveita que o banco é grande. Meu silêncio também tem vontade de companhia de vez em quando.

CENA 08

– Se lembra daquele dia na chuva?

– Qual?

– A gente correndo feito louco debaixo da marquise.

– E o vendedor de pipoca insistindo em nos vender um guarda-chuva já velho, todo quebrado.

– Isso mesmo. E você parou de correr só pra retirar uma folha que grudou no meu cabelo.

– Era uma folha de amora.

– Como você conseguiu se lembrar disso?

– Porque foi ali que eu percebi que gostava muito de você .

– E por que não disse?

– Porque amor que chega com chuva demora pra secar.

– Eu teria ficado.

– Eu teria dito.

– E agora?

– Agora tá chovendo de novo. Melhor correr, senão a gente vai se molhar.

CENA 09

– Tia, seu cachorro fala?

– Fala. Mas só quando ninguém está escutando.

– Ele late engraçado.

– Late igual ao meu finado marido: sem avisar e sempre cheio de razão.

– Posso brincar com ele?

– Se você não gritar, pode. Ele tem trauma de grito.

– Igualzinho eu mesma.

– Você também? Como assim?

– Meu pai grita até dormindo.

– Então você e o Totó vão se entender muito bem.

– Posso ensinar ele a deitar?

– Poder, pode. Mas já vou logo avisando: ele só deita se você fizer carinho nele.

– Eu também.

CENA 10

– Seu Joaquim, o senhor não acha que tá frio pra lavar calçada?

– Frio é coração que não sente mais alegria.

– Mas a essa hora da manhã?

– É a melhor. Ninguém me pede nada e nem fica falando no meu ouvido.

– E o senhor não sente dor nas costas?

– Sinto, claro. Mas a água ajuda a aliviar.

– Mas por que o senhor limpa essa calçada todo dia?

– Porque a sujeira sempre volta. E eu gosto de começar o dia com cheiro de limpeza.

– Engraçado! O senhor é diferente das outras pessoas.

– Pode ser. Sou de um tempo em que as calçadas brilhavam e a palavra valia.

– Tá certo, seu Joaquim.

– Só não me chama de senhor, pode ser? Isso me dá mais dor do que essa velha coluna que não me deixa dormir.

 

Observação.: esta primeira parte continua e se complementa com as partes seguintes, de mesmo título.

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