XII-
REFLETINDO
COM LINDOLIVO SOARES MOURA ( *)
CENAS
E CENÁRIOS DO COTIDIANO: UMA HOMENAGEM A RUBEM ALVES"
[Parte I]
"- Olá! Quer namorar
comigo? – Vê se se enxerga!" - Não posso! Sou
cego!"[L.S.M.]
Há cenas que passam
diante dos nossos olhos todos os dias, mas que só um coração sensível e atento
consegue registrar. Uma palavra dita ao acaso, um silêncio entre frases, um
gesto distraído que revela alegria, dor, raiva, memória ou ternura. Não são
cenas de novela ou de cinema. São recortes do real - às vezes cômico, às vezes
pesado, mas sempre repleto da mais profunda humanidade. Nesta coletânea,
selecionamos uma série de pequenos fragmentos do cotidiano, uma homenagem ao
grande poeta e sonhador Rubem Alves. Sem narrador, sem explicação, sem moldura.
Somente a fala viva de quem se senta num banco, entra num salão, olha para o
céu ou carrega sacolas pela rua. Tudo simples, mas nada banal. Porque é do
simples - da matéria da vida - que se tece o fio do extraordinário. Não importa
como esteja seu estado mental nesse momento. Provavelmente uma dessas cenas vai
tocar seu coração.
CENA 01
– Olá! Quer namorar
comigo?
– Vê se se enxerga!
– Tô tentando, desde
o dia em que você começou a passar por mim desviando o olhar.
– Já conheço essa
história. Começa com um pedido de namoro e termina em boletim de ocorrência.
– E se terminar em
casamento?
– Pior ainda.
– Qual o medo?
– De alguém que
começa com uma cantada gasta demais.
– E se eu tentar
fazendo silêncio?
– Silêncio também
pode ser grito.
– Então me ensina a
falar bonito.
– Não precisa. Só
aprender a ouvir direito.
– Tô ouvindo agora.
– Então vê se
entende: não estou interessada em você.
– E se um dia ficar?
– Com certeza você
não vai mais estar aqui.
– Não quer tentar?
– Não preciso. Já
perdi outras apostas parecidas. Fui.
CENA 02
– Vó, me dá café?
– Claro! Mas senta
primeiro.
– Por quê?
– Porque café se toma
com calma, sem correria.
– Mas tô com pressa.
– Café tomado com
pressa é veneno.
– Vó, fala sério.
– Sério eu só falo
depois do segundo gole.
– E por que você só
usa essa xícara velha?
– Porque ela sempre
me ouviu a vida toda.
– Não tem medo de
quebrar?
– Quem tem medo de
quebrar ou de errar não vive como se deve.
– E se eu derrubar?
– Com certeza vou
chorar. Mas te perdoo.
– Me perdoa porque me
ama?
– Também por isso.
Mas porque café e neto escorrem fácil fácil.
– E se eu só derramar
um pouquinho?
– Leva uma palmada e
limpa tudinho.
CENA 03
– Olá! Esse banco tá
ocupado?
– Tá esperando por
alguém que não esteja apressado.
– Então posso me
sentar?
– Claro! Mas só se
não trouxer barulho junto.
– Eu só trouxe
silêncio.
– Isso é bom. É o que
tá em falta por aqui.
– O senhor vem sempre
aqui?
– Todos os dias, às
17 horas.
– Por que todos os
dias, e exatamente às 17 horas?
– Porque o mundo
desacelera às 17.
– E o que faz nesse meio-tempo?
– Dou milho aos
pombos, escuto o vento, e fico tentando entender a pressa das pessoas.
– Consegue?
– Quase nunca.
– Então por que
insiste?
– Porque não fazer
nada também é um jeito de desistir.
– Posso voltar
amanhã?
– Se não trouxer
perguntas difíceis demais, pode. Será um prazer.
CENA 04
– Mãe, posso te
contar uma coisa?
– Pode, claro. Mas vê
se termina antes de começar a novela.
– Eu beijei o Pedro.
– Que Pedro?
– O Pedro da esquina.
– Você gosta dele?
– Não sei direito.
– Então por que
beijou?
– Porque ele me fez
rir.
– E agora, o que vai
ser?
– Fiquei em dúvida se
ele gostou ou não.
– E se não tiver
gostado?
– Eu vou fingir que
não ligo.
– E vai ligar?
– Ah mãe, claro! E
Muito!
– Então escuta: quem
faz a gente rir, às vezes só tá brincando, distraído ou zuando a gente.
– E se eu fizer ele
rir de volta?
– Aí talvez ele
volte, ou quem sabe fuja mais rápido.
– E você vai brigar
comigo?
– Prometo que não. Só
não quero te ver chorando escondida.
– Ah, mãeee!
CENA 05
– Senhora, deixou
cair essa fotografia.
– Ah... Obrigada. É
do meu marido. Ele é falecido.
– Posso perguntar há
quanto tempo ele se foi?
– Pode, claro! Ele
partiu em 2009.
– E a senhora ainda
carrega a foto dele no bolso?
– No bolso da blusa,
e bem perto do peito.
– É amor ainda?
– É lembrança. Amor
se espalha e se dissolve facilmente. Já lembrança insiste em ficar o tempo todo
com a gente.
– Ele gostava dessa
praça?
– E como! Gostava
mais do que de mim.
– E por que a senhora
vem aqui?
– Porque eu ainda
gosto dos lugares que ele amava.
– A senhora já pensou
em gostar de outros lugares?
– Já. Mas não
consegui. Essa praça era nosso ponto de encontro.
– E o que a senhora
sente quando fica sentada aqui?
– Que ele ainda me
espera, e que permanece o tempo todo me observando. Mas isso você não pode
perceber nem sentir.
CENA 06
– A senhora quer
ajuda com essas sacolas?
– Quero. Mas por
favor não me chama de senhora.
– Desculpa.
– Me chama de moça.
Me sinto melhor.
– Então vou refazer
tudo. Moça, posso te ajudar?
– Pode sim, por
favor.
– Pode me dizer até
onde você vai?
– Até onde as costas
aguentarem.
– Quer que eu leve
tudo até o portão?
– Quero que leve até
a minha alma, se puder. Ela também anda cansada.
– A alma? Como assim?
– Esquece! Há coisas
que a gente só aprende mais tarde. A alma é onde mora o cansaço que a gente não
mostra.
– Então pode incluir
a alma nos pacotes.
– Obrigada, meu
filho. Mas esse tipo de peso não tem como você ajudar a carregar. Mesmo assim,
obrigada por tentar.
CENA 07
– Você vem sempre
aqui?
– Só quando estou
precisando que o mundo me esqueça.
– E hoje precisa?
– Hoje mais do que
ontem.
– Posso me sentar?
– Fique à vontade.
Mas por favor, sem falar demais.
– Tudo bem. Sem
problemas.
– Você é bom de
silêncio?
– Pra dizer a
verdade, sou melhor do que de conversa.
– Isso é raro hoje em
dia.
– Eu sei. Mas isso às
vezes me faz sentir sozinho.
– Então aproveita que
o banco é grande. Meu silêncio também tem vontade de companhia de vez em
quando.
CENA 08
– Se lembra daquele
dia na chuva?
– Qual?
– A gente correndo
feito louco debaixo da marquise.
– E o vendedor de
pipoca insistindo em nos vender um guarda-chuva já velho, todo quebrado.
– Isso mesmo. E você
parou de correr só pra retirar uma folha que grudou no meu cabelo.
– Era uma folha de
amora.
– Como você conseguiu
se lembrar disso?
– Porque foi ali que
eu percebi que gostava muito de você .
– E por que não
disse?
– Porque amor que
chega com chuva demora pra secar.
– Eu teria ficado.
– Eu teria dito.
– E agora?
– Agora tá chovendo
de novo. Melhor correr, senão a gente vai se molhar.
CENA 09
– Tia, seu cachorro
fala?
– Fala. Mas só quando
ninguém está escutando.
– Ele late engraçado.
– Late igual ao meu
finado marido: sem avisar e sempre cheio de razão.
– Posso brincar com
ele?
– Se você não gritar,
pode. Ele tem trauma de grito.
– Igualzinho eu
mesma.
– Você também? Como
assim?
– Meu pai grita até
dormindo.
– Então você e o Totó
vão se entender muito bem.
– Posso ensinar ele a
deitar?
– Poder, pode. Mas já
vou logo avisando: ele só deita se você fizer carinho nele.
– Eu também.
CENA 10
– Seu Joaquim, o
senhor não acha que tá frio pra lavar calçada?
– Frio é coração que
não sente mais alegria.
– Mas a essa hora da
manhã?
– É a melhor. Ninguém
me pede nada e nem fica falando no meu ouvido.
– E o senhor não
sente dor nas costas?
– Sinto, claro. Mas a
água ajuda a aliviar.
– Mas por que o
senhor limpa essa calçada todo dia?
– Porque a sujeira
sempre volta. E eu gosto de começar o dia com cheiro de limpeza.
– Engraçado! O senhor
é diferente das outras pessoas.
– Pode ser. Sou de um
tempo em que as calçadas brilhavam e a palavra valia.
– Tá certo, seu
Joaquim.
– Só não me chama de
senhor, pode ser? Isso me dá mais dor do que essa velha coluna que não me deixa
dormir.
Observação.: esta primeira parte continua e se
complementa com as partes seguintes, de mesmo título.
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