DESAFIOS DA VIDA RELIGIOSA CONSAGRADA HOJE
O presente texto pretende ajudar a refletir sobre a reapropriação do núcleo identitário da Vida Consagrada com um olhar antropológico, a partir da época que vivemos, marcada por intensas, velozes e profundas mudanças. As relações, os hábitos, as formas de proceder, mudam em um tempo muito rápido.
Os conflitos contemporâneos, também
penetram na Vida Consagrada hodierna, esses acontecimentos não devem desanimar,
mas ser uma ocasião favorável para o crescimento e a expectativa de um novo
tempo de esperança na dimensão profética missionária.
A VIDA RELIGIOSA NA CONJUNTURA DA SOCIEDADE LÍQUIDA
A Vida Religiosa Consagrada (VRC) vive inserida em uma época de grandes transformações com profundas mudanças, o que nos leva a pensar que os desafios se multiplicam, de maneira especial entre as novas gerações nelas diretamente envolvidas, bem como as outras gerações desafiadas pela realidade nova. Mudanças causadas por vários aspectos, entre elas, as novas plataformas de comunicação resultante de novas tecnologias. Neste sentido, a chegada das novas tecnologias como internet, celulares, redes sociais... facilitam as informações, quebram as barreiras geográficas e culturais, criam multiplicidade cultural e alteram o deslocamento de fronteiras, dando novas ressignificações às práticas tradicionais da sociedade de acordo com os protocolos do ciberespaço no contexto da modernidade líquida[2]. Nesta conjuntura a Vida Consagrada é desafiada a buscar uma nova identidade e uma ressignificação para melhor responder aos "sinais dos tempos". A questão está em saber distinguir entre o que permanece e o que muda, entre o mais central e o periférico na realidade humana. Isso facilita uma avaliação da realidade anterior e atual.
A época que vivemos é marcada por
intensas, velozes e profundas mudanças. Isso nos leva a pensar que após a
"época de mudanças" entramos na "mudança de época", que
enfraquece e altera muitos dos paradigmas tradicionais que sustentavam uma
visão de mundo, e gera-se instabilidade, incertezas, inseguranças e até
desorientações. Esta nova realidade se deve a um complexo de fatores, talvez
jamais todos elencáveis de forma satisfatória. Para o papa Francisco "esta
mudança de época foi causada pelos enormes saltos qualitativos, velozes e
acumulados que se verificam no progresso cientifico, nas inovações tecnológicas
e nas suas rápidas aplicações em diversos âmbitos da vida[3]". Em outras
palavras, as novas visões do mundo, da vida, da sociedade e do sagrado são
fruto do mundo globalizado e tecnológico. As mudanças estão em todos os campos
e em todas as atividades humanas, que influenciam direta ou indiretamente a VRC.
Inclusive, "o regresso ao sagrado e a busca espiritual, que caracterizam a
nossa época, são fenômenos ambíguos[4]".
As grandes mudanças da época são
comparadas com a liquidez, talvez, porque seja a que mais se encaixa com a
realidade que se vive. Neste sentido, os líquidos estão sempre prontos para
mudar sua forma de maneira rápida. A mobilidade que lhes é característico faz
com que passem pela leveza, associada à mobilidade e inconstância. A situação
da presente época pode ser muito semelhante a essa condição dos líquidos. A
modernidade derreteu os sólidos. Os sólidos são destruídos, se derretem e se
tornam líquidos. Tudo passa a ser temporário e líquido.
Entre outros aspectos, a dimensão do
sólido desta descrição social, corresponde mais a formas institucionais
rígidas, estáveis, imutáveis; a rituais pouco flexíveis em vários aspectos da
vida; a regras de vida pouco dinâmicas; a um acentuar exagerado da tradição e a
pouca abertura ao novo. A dimensão líquida inclui os aspectos do passageiro, da
fragmentação, do provisório, do descartável, da mudança rápida, da atenção à
tecnologia que acentua o diferente e a mudança...
Não basta apenas assumir a sociedade
líquida como alternativa. Tanto na sociedade sólida quanto na líquida existe
uma realidade humana que se expressa em formas de conteúdos e de processos.
Dentro de um processo histórico dialético sabemos que uma determinada forma de
ser e agir pode incluir com o tempo, aspectos espúrios, negativos. Estes
‘desvios’ explicam e fazem germinar uma nova forma de ser e de agir, muitas
vezes oposta à anterior. Não é aqui o lugar para analisar este aspecto, mas
convém ter presente esta dinâmica humana para compreender o novo, as razões
deste novo e deste diferente. Evidentemente, tudo isso tem sua influência na
questão da identidade.
Sempre convém ver bem o que de fato muda
e o que permanece. Há mudanças superficiais, mas há-as também profundas. Estas
últimas repercutem nestes novos modelos sociais e humanos dos quais temos
conhecimento. Não é que o líquido em si é melhor do que o sólido, nem que o
sólido era a alternativa saudável e o líquido a ‘desordem’. Sempre convém ver
qual conteúdo em questão e quais metodologias o expressam, dentro de uma
expressão humana ampla, a questão antropológica.
Para Sygmunt Bauman, vivemos na
sociedade líquida, onde as relações, os hábitos, as formas de proceder, mudam
em um tempo muito rápido. A vida é resumida na valorização de coisas
supérfluas, isto é, a vida sempre se reinicia. Algo é comprado, logo é
descartado. Metaforicamente, os fluidos não são facilmente contidos. Os
líquidos penetram nos lugares, nas pessoas, contornam o todo, vão e vem ao
gosto das ondas do mar. O mundo fluido ou líquido penetra nas rachaduras por
onde passa. A sociedade sólida está impregnada de disciplina, certezas e
rigidez. A VRC muito se pensa assim e por isso pouco se encaixa nas novas
formas. As certezas da modernidade sólida se foram, inclusive, parece que até
muitas utopias desmoronaram.
Hoje tudo parece ser líquido, isto é,
provisório. As relações humanas são provisórias, os casamentos são
provisórios, o trabalho é provisório, as alianças e pactos são também
provisórios e oportunistas. Vive-se clima cheio de incerteza, quanto ao
futuro. No entanto, a Vida Religiosa continua a sustentar
a perpetuidade dos compromissos, mesmo sofrendo as amargas perdas de
pessoal que a abandona. Isso faz pensar que, "se a dedicação aos valores
duradores está em crise é porque a própria ideia de duração, também está em
crise[5]". Em outras palavras, os valores estáveis e duráveis têm pouca
chance de ocorrer em uma vida fragmentada vivida em episódios e eventos
desconectados. Outra realidade é que muitas das novas gerações não respiram um
clima cultural religioso católico herdado da família. Elas chegam de diversas
experiências transitórias e líquidas[6].
INCERTEZAS DA VIDA RELIGIOSA
Na sociedade líquida, vive-se de incertezas e inseguranças. Os medos são muitos e indissociáveis da vida humana. Por exemplo, a sociedade atual tem medo da violência urbana, das catástrofes naturais, do desemprego, das epidemias, do terrorismo, da exclusão. No ambiente líquido moderno, as incertezas, perigos e ameaças são constantes[7]. A VRC vive também muitas incertezas e medos. Muito se discute sobre o decréscimo das vocações, sobre o envelhecimento e sobre as crises atuais, inclusive sobre o futuro da vida religiosa. Um dos medos que aflige fortemente grande parte das Congregações é a elevada média de idade, resultado de vários fatores como pequena entrada de vocações, saída de consagrados (as) jovens e de média idade, assim como o envelhecimento dos membros como parte do fenômeno do aumento da expectativa de vida[8]. É claro que o envelhecimento gera a diminuição das forças físicas e traz incertezas, o que deve levar a repensar os compromissos assumidos em algumas frentes. Neste contexto é bom propor um projeto originário, a partir da fragilidade histórica que se vive.
A sociedade líquida cheia de
ambivalências[9] na qual a individualização se tornou um destino e não uma
opção, pode levar à busca de uma falsa identidade em alguns paradigmas do
passado. Na modernidade líquida, há uma nova vitalidade religiosa, que pode
aparecer como ultraconservadora e neo-integrista, na defensiva de manter a
tradição perante a sociedade líquida, ao relativismo e ao indiferentismo, que
pode influenciar de maneira direta ou indireta a VRC. A ansiedade diante do
novo pode levar a sistemas e estruturas regressivas e arqueológicas. O
fundamentalismo religioso é um filho legítimo da modernidade líquida, nascido
de suas alegrias e tormentos, e herdeiro, do mesmo modo, de seus
empreendimentos e inquietações[10]. Inclusive, existe uma religião
especificamente moderna, nascida das contradições modernas da vida líquida[11],
em que se revelam as insuficiências do homem e a futilidade dos sonhos de ter o
destino humano sob controle. Enfim, há uma "metamorfose" da
religiosidade e da fé.
A ambivalência como fenômeno representa
algo que não se sabe ao certo o que vai acontecer nem saber como comportar,
tampouco prever qual será o resultado de determinadas ações. Isso acarreta um
sentimento de incerteza. "A falta de clareza de hoje é um produto da
ânsia de tornar as coisas mais claras; a maior parte da ambivalência sentida se
origina nos esforços difusos e disparatados para eliminar a equivocabilidade de
localidades selecionadas, separadas e sempre confinadas".[12] A
ambivalência traz a falta de clareza e como consequência a insegurança dos
riscos aparecem na conjuntura das incertezas da Vida Religiosa.
Diante da ambivalência e do relativismo
moderno, frutos da sociedade líquida, a identidade das instituições se fragilizaram.
Como consequência, veio a angústia, a reação defensiva, a organização e o
fechamento saudosista, na tentativa de preservação e sobrevivência
institucional. A reação apareceu reforçando o controle, fazendo o apelo à
coesão institucional. A proposta da ortodoxia radical encontrou eco favorável
nos meios conservadores e em alguns jovens das novas gerações, desencantados
com o cristianismo social, que marcou em dados momentos o cristianismo do fim
do século XX. Enfim, parece que, a "ortodoxia radical tentará corrigir os
reducionismos[13]" como um reflexo nostálgico de outro tempo. Porém, esta
reação não deixa de ser o retorno para a pré-modernidade de maneira
ambivalente, mas tentando forçar e adaptar às condições sociais e culturais da
modernidade líquida que penetra na VRC.
Perante o desafio e o questionamento da
diminuição das vocações, alguns religiosos (as) pensam que é preciso assumir
algumas atitudes do passado para atrair os jovens, voltando às antigas formas
de vida católica tridentina que parecem agradar a juventude, como o uso do
hábito, a disciplina, o afastamento do mundo entre outras, ou também,
adequar-se às novas ondas juvenis sem tanta disciplina, pouco estudo
sistemático, uma espiritualidade pentecostal, subjetiva, cheia de emoção,
ambivalente e fluida. Seria uma Vida Religiosa que mistura símbolos do medievo
e da pós-modernidade. Isso poderia ser uma forma sutil de engano e manipulação,
ou mesmo um retardar soluções e visões objetivas da vida religiosa dentro da
realidade atual.
O sentido de pertença e de identidade
parece ser sempre mais líquido. Vivemos um mundo em que todos os meios de vida
são permitidos, mas nenhum é seguro. O fundamentalismo na Vida Consagrada
parece ser, de maneira errada, um remédio radical contra as ambivalências da
sociedade líquida. Aliás, o fundamentalismo é um fenômeno que marca a
conjuntura da modernidade líquida, expressão de uma reação às influências da
globalização. Mas a busca da identidade não se deve empenhar em trilhar
caminhos de reinstitucionalização e retradicionalização, mas uma renovação
missionária e profética, através da leitura adequada aos novos "sinais dos
tempos". A identidade, dessa forma, passa a levar fortemente em
consideração os aspectos novos e menos os estáveis do passado. Muitas vezes
isso significa um distanciamento grande das experiências do passado pessoal
marcado pela família, cultura, etnia, religião. Esta espécie de ruptura pode
ter consequências as mais diversas. Vividas e assumidas conscientemente segundo
critérios de valores antropologicamente positivos estas novas formas darão
características novas à identidade.
Nesta identidade convém encontrar formas
de inclusão de aspectos evangélicos, cristológicos, eclesiais e do Reino de
Deus. As realidades espirituais não são necessariamente estranhas à realidade
da sociedade líquida. Para além desta fenomenologia permanece a motivação e o
desejo de realização do mais profundo de cada ser humano. A VRC tem uma nova
missão decorrente desta vida com características fragmentárias: discernir os
desejos profundos não necessariamente manifestos, dar consistência a uma nova
identidade que integre esta mudança de época e ajude a todos a encontrar um
sentido de vida naquilo que é, do que faz e das expressões tecnológicas como
possíveis manifestações saudáveis do ser humano.
Portanto, não se quer um modelo que
busque recuperar um passado que já foi, mas que se busque no aqui e agora
sinais e formas humanas que expressam o profundo desejo de amar e ser amado,
sempre considerando as contribuições significativas de Jesus e daqueles que
nele se inspiraram e inspiram no dia a dia.
(Continua no próximo domingo)
Pe
Rafael Lopez Villasenor.
[1] Missionário Xaveriano. Mestre em Ciências da
Religião PUC-SP. Doutor em Ciências Sociais PUC-SP. Diretor do Centro Cultural
Conforti - Curitiba-PR. e-mail: rafamx65@gmail.com
[2] Cf. BAUMAN. Modernidade líquida. Rio de Janeiro:
Zahar 2003.
[3] Exortação Apostólica Evangelii Gaudium do
papa Francisco EG, 52.
[4] EG, 89.
[5] BAUMAN. A sociedade individualizada, vidas contadas
e histórias vividas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor 2008. p 202.
[6] Cf. MENDOÇA. Vida religiosa provisória: um desafio
a ser enfrentado. Revista Convergência. Brasília, Dezembro de 2008.
[7] Cf. BAUMAN. Medo líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
[8] Cf. MURAD. Breve panorama da vida consagrada.
Permanece conosco! CRB, 2003. p. 74
[9] Ambivalência é a “possibilidade de conferir a um
objeto ou evento mais de uma categoria. É uma desordem especifica da linguagem,
uma falha da função moderna que a linguagem deve desempenhar". BAUMAN,
Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1991., p 9.
[10] BAUMAN O mal estar da estar da modernidade. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor 1998. p 228.
[11] BAUMAN O mal estar da estar da modernidade. p 226.
[12] BAUMAN. A sociedade individualizada, vidas contadas
e histórias vividas: Jorge. p 93.
[13] MENDOZA-ÁLVAREZ. René Girard, o Deus escondido da
pós-modernidade: desejo, memória e imaginação escatológica. Ensaio de teologia
fundamental pós-moderna. São Paulo, 2011: Realizações editora. p. 129.
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