domingo, 16 de agosto de 2020

VOCAÇÃO DOS CONSAGRADOS

DESAFIOS DA VIDA RELIGIOSA CONSAGRADA HOJE

O presente texto pretende ajudar a refletir sobre a reapropriação do núcleo identitário da Vida Consagrada com um olhar antropológico, a partir da época que vivemos, marcada por intensas, velozes e profundas mudanças. As relações, os hábitos, as formas de proceder, mudam em um tempo muito rápido.

 

Os conflitos contemporâneos, também penetram na Vida Consagrada hodierna, esses acontecimentos não devem desanimar, mas ser uma ocasião favorável para o crescimento e a expectativa de um novo tempo de esperança na dimensão profética missionária.

 

A VIDA RELIGIOSA NA CONJUNTURA DA SOCIEDADE LÍQUIDA

A Vida Religiosa Consagrada (VRC) vive inserida em uma época de grandes transformações com profundas mudanças, o que nos leva a pensar que os desafios se multiplicam, de maneira especial entre as novas gerações nelas diretamente envolvidas, bem como as outras gerações desafiadas pela realidade nova. Mudanças causadas por vários aspectos, entre elas, as novas plataformas de comunicação resultante de novas tecnologias. Neste sentido, a chegada das novas tecnologias como internet, celulares, redes sociais... facilitam as informações, quebram as barreiras geográficas e culturais, criam multiplicidade cultural e alteram o deslocamento de fronteiras, dando novas ressignificações às práticas tradicionais da sociedade de acordo com os protocolos do ciberespaço no contexto da modernidade líquida[2]. Nesta conjuntura a Vida Consagrada é desafiada a buscar uma nova identidade e uma ressignificação para melhor responder aos "sinais dos tempos". A questão está em saber distinguir entre o que permanece e o que muda, entre o mais central e o periférico na realidade humana. Isso facilita uma avaliação da realidade anterior e atual.

 

A época que vivemos é marcada por intensas, velozes e profundas mudanças. Isso nos leva a pensar que após a "época de mudanças" entramos na "mudança de época", que enfraquece e altera muitos dos paradigmas tradicionais que sustentavam uma visão de mundo, e gera-se instabilidade, incertezas, inseguranças e até desorientações. Esta nova realidade se deve a um complexo de fatores, talvez jamais todos elencáveis de forma satisfatória. Para o papa Francisco "esta mudança de época foi causada pelos enormes saltos qualitativos, velozes e acumulados que se verificam no progresso cientifico, nas inovações tecnológicas e nas suas rápidas aplicações em diversos âmbitos da vida[3]". Em outras palavras, as novas visões do mundo, da vida, da sociedade e do sagrado são fruto do mundo globalizado e tecnológico. As mudanças estão em todos os campos e em todas as atividades humanas, que influenciam direta ou indiretamente a VRC. Inclusive, "o regresso ao sagrado e a busca espiritual, que caracterizam a nossa época, são fenômenos ambíguos[4]".

 

As grandes mudanças da época são comparadas com a liquidez, talvez, porque seja a que mais se encaixa com a realidade que se vive. Neste sentido, os líquidos estão sempre prontos para mudar sua forma de maneira rápida. A mobilidade que lhes é característico faz com que passem pela leveza, associada à mobilidade e inconstância. A situação da presente época pode ser muito semelhante a essa condição dos líquidos. A modernidade derreteu os sólidos. Os sólidos são destruídos, se derretem e se tornam líquidos. Tudo passa a ser temporário e líquido.

 

Entre outros aspectos, a dimensão do sólido desta descrição social, corresponde mais a formas institucionais rígidas, estáveis, imutáveis; a rituais pouco flexíveis em vários aspectos da vida; a regras de vida pouco dinâmicas; a um acentuar exagerado da tradição e a pouca abertura ao novo. A dimensão líquida inclui os aspectos do passageiro, da fragmentação, do provisório, do descartável, da mudança rápida, da atenção à tecnologia que acentua o diferente e a mudança...

 

Não basta apenas assumir a sociedade líquida como alternativa. Tanto na sociedade sólida quanto na líquida existe uma realidade humana que se expressa em formas de conteúdos e de processos. Dentro de um processo histórico dialético sabemos que uma determinada forma de ser e agir pode incluir com o tempo, aspectos espúrios, negativos. Estes ‘desvios’ explicam e fazem germinar uma nova forma de ser e de agir, muitas vezes oposta à anterior. Não é aqui o lugar para analisar este aspecto, mas convém ter presente esta dinâmica humana para compreender o novo, as razões deste novo e deste diferente. Evidentemente, tudo isso tem sua influência na questão da identidade.

 

Sempre convém ver bem o que de fato muda e o que permanece. Há mudanças superficiais, mas há-as também profundas. Estas últimas repercutem nestes novos modelos sociais e humanos dos quais temos conhecimento. Não é que o líquido em si é melhor do que o sólido, nem que o sólido era a alternativa saudável e o líquido a ‘desordem’. Sempre convém ver qual conteúdo em questão e quais metodologias o expressam, dentro de uma expressão humana ampla, a questão antropológica.

 

Para Sygmunt Bauman, vivemos na sociedade líquida, onde as relações, os hábitos, as formas de proceder, mudam em um tempo muito rápido. A vida é resumida na valorização de coisas supérfluas, isto é, a vida sempre se reinicia. Algo é comprado, logo é descartado. Metaforicamente, os fluidos não são facilmente contidos. Os líquidos penetram nos lugares, nas pessoas, contornam o todo, vão e vem ao gosto das ondas do mar. O mundo fluido ou líquido penetra nas rachaduras por onde passa. A sociedade sólida está impregnada de disciplina, certezas e rigidez. A VRC muito se pensa assim e por isso pouco se encaixa nas novas formas. As certezas da modernidade sólida se foram, inclusive, parece que até muitas utopias desmoronaram.

 

Hoje tudo parece ser líquido, isto é, provisório. As relações humanas são provisórias, os casamen­tos são provisórios, o trabalho é provisório, as alianças e pactos são também provisórios e opor­tunistas. Vive-se clima cheio de incerteza, quanto ao futuro. No entanto, a Vida Religiosa continua a sustentar a perpetuidade dos compromissos, mesmo sofrendo as amargas perdas de pessoal que a abandona. Isso faz pensar que, "se a dedicação aos valores duradores está em crise é porque a própria ideia de duração, também está em crise[5]". Em outras palavras, os valores estáveis e duráveis têm pouca chance de ocorrer em uma vida fragmentada vivida em episódios e eventos desconectados. Outra realidade é que muitas das novas gerações não respiram um clima cultural religio­so católico herdado da família. Elas chegam de diversas experiências transitórias e líquidas[6].

 

INCERTEZAS DA VIDA RELIGIOSA

Na sociedade líquida, vive-se de incertezas e inseguranças. Os medos são muitos e indissociáveis da vida humana. Por exemplo, a sociedade atual tem medo da violência urbana, das catástrofes naturais, do desemprego, das epidemias, do terrorismo, da exclusão. No ambiente líquido moderno, as incertezas, perigos e ameaças são constantes[7]. A VRC vive também muitas incertezas e medos. Muito se discute sobre o decréscimo das vocações, sobre o envelhecimento e sobre as crises atuais, inclusive sobre o futuro da vida religiosa. Um dos medos que aflige fortemente grande parte das Congregações é a elevada média de idade, resultado de vários fatores como pequena entrada de vocações, saída de consagrados (as) jovens e de média idade, assim como o envelhecimento dos membros como parte do fenômeno do aumento da expectativa de vida[8]. É claro que o envelhecimento gera a diminuição das forças físicas e traz incertezas, o que deve levar a repensar os compromissos assumidos em algumas frentes. Neste contexto é bom propor um projeto originário, a partir da fragilidade histórica que se vive.

 

A sociedade líquida cheia de ambivalências[9] na qual a individualização se tornou um destino e não uma opção, pode levar à busca de uma falsa identidade em alguns paradigmas do passado. Na modernidade líquida, há uma nova vitalidade religiosa, que pode aparecer como ultraconservadora e neo-integrista, na defensiva de manter a tradição perante a sociedade líquida, ao relativismo e ao indiferentismo, que pode influenciar de maneira direta ou indireta a VRC. A ansiedade diante do novo pode levar a sistemas e estruturas regressivas e arqueológicas. O fundamentalismo religioso é um filho legítimo da modernidade líquida, nascido de suas alegrias e tormentos, e herdeiro, do mesmo modo, de seus empreendimentos e inquietações[10]. Inclusive, existe uma religião especificamente moderna, nascida das contradições modernas da vida líquida[11], em que se revelam as insuficiências do homem e a futilidade dos sonhos de ter o destino humano sob controle. Enfim, há uma "metamorfose" da religiosidade e da fé.

 

A ambivalência como fenômeno representa algo que não se sabe ao certo o que vai acontecer nem saber como comportar, tampouco prever qual será o resultado de determinadas ações. Isso acarreta um sentimento de incerteza. "A falta de clareza de hoje é um produto da ânsia de tornar as coisas mais claras; a maior parte da ambivalência sentida se origina nos esforços difusos e disparatados para eliminar a equivocabilidade de localidades selecionadas, separadas e sempre confinadas".[12] A ambivalência traz a falta de clareza e como consequência a insegurança dos riscos aparecem na conjuntura das incertezas da Vida Religiosa.

 

Diante da ambivalência e do relativismo moderno, frutos da sociedade líquida, a identidade das instituições se fragilizaram. Como consequência, veio a angústia, a reação defensiva, a organização e o fechamento saudosista, na tentativa de preservação e sobrevivência institucional. A reação apareceu reforçando o controle, fazendo o apelo à coesão institucional. A proposta da ortodoxia radical encontrou eco favorável nos meios conservadores e em alguns jovens das novas gerações, desencantados com o cristianismo social, que marcou em dados momentos o cristianismo do fim do século XX. Enfim, parece que, a "ortodoxia radical tentará corrigir os reducionismos[13]" como um reflexo nostálgico de outro tempo. Porém, esta reação não deixa de ser o retorno para a pré-modernidade de maneira ambivalente, mas tentando forçar e adaptar às condições sociais e culturais da modernidade líquida que penetra na VRC.

 

Perante o desafio e o questionamento da diminuição das vo­cações, alguns religiosos (as) pensam que é preciso assumir algumas atitudes do passado para atrair os jovens, voltando às antigas formas de vida católica tridentina que parecem agradar a juventude, como o uso do hábito, a disciplina, o afastamento do mundo entre outras, ou também, adequar-se às novas ondas juvenis sem tanta disciplina, pouco estudo sistemático, uma espiritualidade pentecostal, subjetiva, cheia de emoção, ambivalente e fluida. Seria uma Vida Religiosa que mistura símbolos do medievo e da pós-modernidade. Isso poderia ser uma forma sutil de engano e manipulação, ou mesmo um retardar soluções e visões objetivas da vida religiosa dentro da realidade atual.

 

O sentido de pertença e de identidade parece ser sempre mais líquido. Vivemos um mundo em que todos os meios de vida são permitidos, mas nenhum é seguro. O fundamentalismo na Vida Consagrada parece ser, de maneira errada, um remédio radical contra as ambivalências da sociedade líquida. Aliás, o fundamentalismo é um fenômeno que marca a conjuntura da modernidade líquida, expressão de uma reação às influências da globalização. Mas a busca da identidade não se deve empenhar em trilhar caminhos de reinstitucionalização e retradicionalização, mas uma renovação missionária e profética, através da leitura adequada aos novos "sinais dos tempos". A identidade, dessa forma, passa a levar fortemente em consideração os aspectos novos e menos os estáveis do passado. Muitas vezes isso significa um distanciamento grande das experiências do passado pessoal marcado pela família, cultura, etnia, religião. Esta espécie de ruptura pode ter consequências as mais diversas. Vividas e assumidas conscientemente segundo critérios de valores antropologicamente positivos estas novas formas darão características novas à identidade.

 

Nesta identidade convém encontrar formas de inclusão de aspectos evangélicos, cristológicos, eclesiais e do Reino de Deus. As realidades espirituais não são necessariamente estranhas à realidade da sociedade líquida. Para além desta fenomenologia permanece a motivação e o desejo de realização do mais profundo de cada ser humano. A VRC tem uma nova missão decorrente desta vida com características fragmentárias: discernir os desejos profundos não necessariamente manifestos, dar consistência a uma nova identidade que integre esta mudança de época e ajude a todos a encontrar um sentido de vida naquilo que é, do que faz e das expressões tecnológicas como possíveis manifestações saudáveis do ser humano.

 

Portanto, não se quer um modelo que busque recuperar um passado que já foi, mas que se busque no aqui e agora sinais e formas humanas que expressam o profundo desejo de amar e ser amado, sempre considerando as contribuições significativas de Jesus e daqueles que nele se inspiraram e inspiram no dia a dia.

 

(Continua no próximo domingo)

 

Pe Rafael Lopez Villasenor.


[1]
  Missionário Xaveriano. Mestre em Ciências da Religião PUC-SP. Doutor em Ciências Sociais PUC-SP. Diretor do Centro Cultural Conforti - Curitiba-PR. e-mail: rafamx65@gmail.com
[2]  Cf. BAUMAN. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar 2003.
[3]  Exortação Apostólica Evangelii Gaudium  do papa Francisco EG, 52.
[4]  EG, 89.
[5] BAUMAN. A sociedade individualizada, vidas contadas e histórias vividas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor 2008. p 202.
[6]  Cf. MENDOÇA. Vida religiosa provisória: um desafio a ser enfrentado. Revista Convergência.  Brasília, Dezembro de 2008.
[7]  Cf. BAUMAN. Medo líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
[8]  Cf. MURAD. Breve panorama da vida consagrada. Permanece conosco! CRB, 2003.  p. 74
[9] Ambivalência é a “possibilidade de conferir a um objeto ou evento mais de uma categoria. É uma desordem especifica da linguagem, uma falha da função moderna que a linguagem deve desempenhar". BAUMAN, Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1991., p 9.
[10] BAUMAN O mal estar da estar da modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor 1998. p 228.
[11] BAUMAN O mal estar da estar da modernidade. p 226.
[12] BAUMAN. A sociedade individualizada, vidas contadas e histórias vividas: Jorge. p 93.
[13] MENDOZA-ÁLVAREZ. René Girard, o Deus escondido da pós-modernidade: desejo, memória e imaginação escatológica. Ensaio de teologia fundamental pós-moderna.  São Paulo, 2011: Realizações editora. p. 129.

Fonte: https://www.xaverianos.org.br/noticias-e-artigos/teologia/552-desafios-da-vida-religiosa-consagrada-hoje

 

 

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