domingo, 14 de março de 2021

QUESTÃO DE OPINIÃO

O tradicionalismo como ameaça para uma Igreja em saída


Por Eliseu Wisniewski

 

Introdução

 

A Igreja, como sacramento universal de salvação, existe para evangelizar. Não existe outra razão, a não ser essa. Fiel à sua missão, a Igreja, conduzida pelo Espírito, escuta os sinais dos tempos, discernindo e revendo sua prática pastoral como resposta aos desafios que emergem a cada tempo, proclamando com coragem, entusiasmo e criatividade a mensagem do Evangelho. Anuncia sempre o mesmo Evangelho. As transformações sociais, culturais, políticas, religiosas que experimentamos como cidadãos e cristãos pedem que a Igreja, em sua missão evangelizadora, saiba transmitir, por meio de linguagens sempre adaptadas à realidade presente, sua mensagem de modo condizente com os desafios e inquietações atuais, encarnando a Palavra revelada na história e fazendo fecundar a vida dos seguidores de Jesus. Caso contrário, a Igreja será vista como realidade arcaica e pouco significativa para nossos contemporâneos.

Com essa consciência eclesial, dom Walmor Oliveira de Azevedo, atual presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em vídeo e texto publicado no site dessa instituição e reproduzido em outros sites, apresentou três ameaças e três oportunidades para a Igreja católica no Brasil nos próximos cinco anos.

Ameaças: 1) o crescimento de segmentos conservadores e reacionários; 2) as dificuldades para reverter situações com funcionamentos pesados; 3) a fragilização de processos de evangelização e serviços em defesa e promoção da vida.

Oportunidades: 1) novo modo de presença pública da Igreja, advindo da escuta das mudanças em curso na cultura mundial; 2) recuperação da força do cristianismo como vetor determinante do sonho de um mundo novo, solidário e fraterno; 3) conquista de novas feições e dinâmicas na ministerialidade da Igreja à luz da mistagogia evangélica.

Neste texto, concentramos nossa atenção na primeira ameaça: o crescimento de segmentos conservadores e reacionários. Nos últimos tempos, esses grupos e tendências ganharam força política, pastoral, moral e litúrgica dentro da Igreja católica e crescente visibilidade nas redes sociais, gerando resistências e empecilhos para uma evangelização consequente com os tempos atuais. Segundo dom Walmor, esses grupos têm levado “à estagnação e ao comprometimento do diálogo construtivo, com preponderância de obscurantismos e escolhas medíocres, com força de justificação das desigualdades existentes e neutralização magistral da Doutrina Social da Igreja”.

Concordamos também com o que o Papa Francisco constata na encíclica Fratelli Tutti (FT), quando afirma que “a história dá sinais de regressão”, com “conflitos anacrônicos que se consideravam superados”, bem como com o ressurgimento de “nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos” (FT 11). Nas “sombras de um mundo fechado”, em que os “sonhos são desfeitos em pedaços” (FT, título e subtítulo do 1º capítulo), Francisco reconhece que o atual momento é difícil e o tempo da humanidade é obscuro, uma vez que “criam-se novas barreiras de autodefesa, de tal modo que deixa de haver o mundo, para existir apenas o ‘meu’ mundo” (FT 27), sendo preciso reconhecer que os fanatismos, que induzem a destruir os outros, são protagonizados também por pessoas religiosas, sem excluir os cristãos, que podem fazer parte de redes de violência verbal através da internet e vários fóruns ou espaços de intercâmbio digital. Mesmo nos media católicos, é possível ultrapassar os limites, tolerando-se a difamação e a calúnia e parecendo excluir qualquer ética e respeito pela fama alheia (FT 46).

Empenhados em contribuir para que a Igreja seja uma Igreja em saída, hospitaleira, missionária, que ajude de fato a recompor o esgarçado tecido de nossa sociedade brasileira, não podemos deixar de examinar essa tendência tradicionalista que contradiz a finalidade missionária, a razão de ser da Igreja. Buscaremos entender melhor esse fenômeno, orientando-nos pelas ideias/reflexões do dr. João Décio Passos presentes no livro A força do passado na fraqueza do presente. O tradicionalismo e suas expressões. Seguindo de perto a estrutura desse livro e transcrevendo as ideias fundamentais aí contidas, iniciaremos nossa reflexão aproximando-nos dessa temática do ponto de vista conceitual. Em seguida, abordaremos as estruturações do tradicionalismo e suas afinidades políticas, e concluiremos propondo alguns discernimentos que se fazem necessários. Esses pontos ajudarão a detectar elementos que perfilam a frente tradicionalista com seus projetos bem demarcados, presentes em posturas implícitas e explícitas em muitos grupos institucionalizados dentro da Igreja, em programas exibidos pelos canais católicos de televisão, em homilias dominicais e em discursos que circulam pelas redes sociais.

1. “Fora do passado não há salvação.” Considerações sobre os tradicionalismos

 

Não parece ser necessário exigir pesquisas numéricas para demonstrar a existência de grupos e tendências tradicionalistas visíveis e atuantes no interior da Igreja católica. O tradicionalismo católico atravessou o século XX com seus ideários, projetos, grupos e tendências. Trata-se de sistema, de matriz escolástica, que se estrutura e opera com base em uma cosmologia teocêntrica, em uma filosofia da história, em uma epistemologia essencialista, em uma sociologia cristã, em uma antropologia pessimista, em uma moral autoritária e em uma devoção espiritualista. Como grupo e como tendência, existem ao menos desde o século XIX. Saíram dos velhos guetos institucionais, romperam com as posturas diplomáticas e com a etiqueta da elegância eclesial e assumiram a lógica das bolhas sociais, reproduzidas pelas redes sociais. Sejam grupos mais intelectualizados ou mais militantes, sejam mais institucionalizados ou mais espontâneos, estão todos dispostos a enfrentar aquilo que julgam ser um desvio doutrinal e atacar os sujeitos divulgadores dos erros, tachando-os como perigosos, a fim de serem expurgados da Igreja.

O tradicionalismo foi construído como uma espécie de antídoto contra a modernidade. Encara o presente como crise, entendendo os tempos modernos como equivocados e, por si mesmos, sem solução, incapazes de propor uma referência de valor e ação, retirada de um fundamento seguro de verdade recebido do passado como revelação de Deus ou como lei inscrita na própria natureza.

Considerando-se portadores da autêntica tradição, os tradicionalistas se entendem e se definem como os autênticos católicos, que se opõem aos católicos equivocados. Reivindicam não somente um lugar legítimo dentro do catolicismo, mas também uma posição de portadores da verdade autêntica da tradição cristã e, com frequência, são intolerantes às diferenças religiosas e políticas. Perfilam um tipo de catolicismo que se referência por visões, valores e práticas de matriz pré-moderna; legitimam-se com base no passado e têm grande dificuldade de assimilar as mudanças do presente, sobretudo no que se refere às que ocorrem no campo da doutrina, da moral e das vivências litúrgicas católicas.

Fonte: https://www.vidapastoral.com.br/edicao/o-tradicionalismo-como-ameca-para-uma-igreja-em-saida/#

 




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