3.
Contribuições
indígenas às festas juninas
As
celebrações religiosas populares de matriz portuguesa, com o tempo, passaram a
receber da cultura nativa elementos indígenas, por serem festas comemoradas por
mestiços, os chamados caboclos ou caipiras, isto é, “moradores do mato” ou moradores
do interior.
Mesmo com
o processo de urbanização, até meados do século passado, as cidades mantiveram
essas comemorações com o colorido mestiço.
Os santos
juninos, sobretudo São João e São Pedro, passaram a receber atributos dos
heróis míticos de matriz tupi-guarani, como Tupã e Karaí ou Karaíba. É possível
que São João fosse identificado com Karaí-ru-ete ou Karaí, entidade que se
manifesta no fogo, no corisco e no “crepitar da chama”. É uma das quatro
divindades do panteão guarani (GODOY, 2003, p. 74-75). Daí a importância da
fogueira e da brasa nessas comemorações.
Os
portugueses foram chamados de caraíbas no século XVI, nome genérico dado aos
demiurgos tupis (THEVET, 2009, p. 56). Sua pele branca, as armas de fogo que
traziam e sua procedência, vindos pelo mar, levaram-nos a serem identificados
como demiurgos.
Esse
substrato ancestral talvez explique por que cada família, sobretudo no
Nordeste, costuma fazer sua fogueira em frente da casa, numa maneira de
homenagear o santo e pedir-lhe proteção.
Não é de
estranhar a tradição “casamenteira” – encontrada nessa região pelo barão de
Studart no século passado – que associa o fogo à adivinhação. Tomava-se um ramo
de manjericão e, depois de passá-lo pela fogueira, ele era jogado pela moça
casadoura sobre o telhado. Se no dia seguinte continuasse verde, o noivo seria
um jovem; se murchasse, seria um velho (CASCUDO, 1988, p. 405).
A festa
de São João fundiu-se no Brasil com a festa tupi do milho, celebrada em agosto,
quando se comemorava o início do ano-novo, tradição ainda conservada entre os
Guarani Mbyá. Este povo denomina essa época de Ara Pyaú (Tempo Novo). Segundo
Luciana Galante, “os fortes ventos (yvytu) iniciam o período, anunciando a
chegada da primavera. É chegada a hora de realizar o batismo da erva-mate, o
ka’a nheemongaraí, cujas projeções sobre o ano-novo são interpretadas pelo
Xeramoi [pajé]” (GALANTE, 2011, p. 57). É o momento não só de realizar o
“batismo” da erva-mate, como também de celebrar o nheemongaraí, cerimônia de
nominação, quando as crianças recebem o nome guarani dado pelo pajé. Devido a
influências católicas, esse ritual é chamado de “batismo guarani”.
Nesse
período, em algumas aldeias, ocorre a “festa do milho”, quando se reúnem a
comunidade e os parentes de aldeias vizinhas numa comemoração que pode durar
vários dias. É o que constatamos na aldeia Tekoá Ytu, da terra indígena do
Jaraguá, na capital paulista.
Dessa
tradição nativa permaneceu, em nossa cultura mestiça, não o “batismo do milho”,
ligado à bênção das primícias agrícolas, mas o “batizado da boneca de milho”,
como pude identificar numa foto, da década de 1950, de um antigo morador de
minha terra natal (Acervo fotográfico de Águas da Prata, 1992). Nesse caso,
houve uma transposição de significantes, permanecendo o significado subjacente.
Essa festa rural, que caiu em desuso, era uma oportunidade para as famílias
realizarem um encontro de vizinhos.
Não se
pode esquecer o papel do milho nas culturas indígenas, sendo um dos alimentos
mais ricos da agricultura da América. Entre os Maia do México e Guatemala, é
reverenciado como uma divindade, Yum Kaax, o senhor do milho (CENAMI; CCD,
1993, p. 33-36).
No
Sudeste e Nordeste, as comemorações são marcadas por comidas à base de milho –
numa recuperação da antiga festa do milho, de tradição tupi –, cujos nomes são
também de origem tupi: a canjica (do guarani: kangy = mole + kaa = planta),
feita com milho seco despolpado e cozido; o curau (kure = ralado + u = comida),
creme de milho ralado; a pamonha (pomonga = pegajoso), creme de milho cozido na
água fervente e servido, já endurecido, na casca de milho, fazendo lembrar
pratos indígenas assados em folha de bananeira.
Outros
alimentos elaborados com milho também aparecem, como o bolo de fubá, a pipoca e
o milho verde assado na brasa. No Nordeste, com a influência africana, a
canjica passou a ser chamada de munguzá, termo de língua banto.
O quentão
lembra o cauim indígena, que antigamente era feito com mandioca ou milho
fermentado e servido morno, como ocorre ainda hoje entre os Guarani Mbyá.
Atualmente, na ausência da fermentação natural, faz-se o quentão com cachaça e
gengibre.
Além do
milho, encontram-se nessa festa outros alimentos de origem indígena, como a
batata-doce e a mandioca, servida de diversas formas, assada, cozida ou como
bolo. Em Minas Gerais são acrescentados o famoso pé de moleque e a paçoca de
amendoim, alimento indígena. No Sul, é agregado o pinhão, alimento básico do
povo Kaingang e de outros povos que viviam da coleta desse fruto no Sudeste,
como os Guaianá e Guarulho, hoje extintos.
Quanto a
São Pedro, foi identificado com Tupã, a todo-poderosa entidade indígena, o
“senhor da chuva e dos trovões”. Embora não fosse o deus maior do panteão tupi,
muitas vezes assumiu o papel primordial, como se lê nos registros de
missionários e cronistas coloniais. O deus maior, que seria Monã ou Monhã, não
tinha culto e era um “deus escondido”. Como registrou o capuchinho Thevet, “os
selvagens deste lugar mencionam um Grande Ser, cujo nome em sua língua é Tupan,
acreditando que viva nas alturas e faça chover e trovejar” (THEVET, 1978, p.
99).
Essa
ligação entre Tupã e São Pedro manifesta-se em várias regiões do Brasil, quando
se identifica São Pedro com o responsável pela chuva: é frequente dizer que se
precisa “pedir chuva a São Pedro”, quando há estiagem, ou que “São Pedro
exagerou na chuva”, quando há muita água. Existe até a expressão popular
“mandachuva”, com duplo significado: no sentido original, atualmente
desconhecido, devia referir-se a Tupã; no sentido analógico, refere-se a um
chefe, isto é, “àquele que manda”.
São Pedro
aparece também num conto popular baiano que o aproxima dos heróis míticos
tupis. Foi recolhido por João da Silva Campos, no Recôncavo Baiano, na década
de 1920, e publicado por Basílio de Magalhães.
Num
povoado vivia um velho com uma filha e três filhos. Certo dia, apareceu um
rapaz que pediu a moça em casamento. Pedido aceito, o jovem levou-a para sua
casa. Nem imaginava ela que era São Pedro. Ela vivia bem, mas sentia falta do
marido, que passava muito tempo fora cuidando das ovelhas. Um dia um dos irmãos
veio visitá-la, e ela reclamou do marido. O irmão sugeriu então ao cunhado
fazer, em seu lugar, as tarefas de pastor, de modo que o outro tivesse mais
tempo para ficar com a esposa. O marido aceitou, mas no caminho surgiram
dificuldades que não foram enfrentadas pelo rapaz. Este, ao voltar, foi enviado
para casa, pois São Pedro lhe disse que não tinha dado conta da tarefa.
O mesmo
ocorreu com o segundo irmão. Só o terceiro conseguiu enfrentar os desafios. E,
voltando para a casa da irmã, foi bem acolhido pelo cunhado. A história termina
com São Pedro, depois de lavar os pés da mulher e do cunhado, colocando-os nas
palmas da mão e subindo com eles para o céu (MAGALHÃES, 1939, p. 300-303).
Tal narrativa
assemelha-se muito aos mitos tupis, recolhidos no século XVI pelo capuchinho
André Thevet, nos quais os diversos Karaíba convivem com os humanos,
protegendo-os ou castigando-os, e transitam com facilidade entre a terra e o
céu (THEVET, 2009, p. 66-75).
Quanto ao
mastro português, encontramos um similar na tradição tupi, como registrou o
capuchinho Claude d’Abbeville. Ele escreveu sobre o hábito dos Tupinambá do
Maranhão de “fincar, à entrada de suas aldeias, um madeiro alto com um pedaço
de pau atravessado por cima; aí penduram quantidade de pequenos escudos feitos
de folha de palmeira e do tamanho de dois punhos. Neles pintam com preto e
vermelho um homem nu”. Ao serem indagados sobre o objetivo daquele mastro, os
indígenas responderam que “seus pajés haviam recomendado para afastar os maus
ares” (D’ABBEVILLE, 1975, p. 253).
4.
As
festas juninas atuais
Com a
urbanização, essas celebrações foram levadas para a cidade, e no Sudeste,
especialmente no estado de São Paulo, tornaram-se festas carregadas de preconceitos,
reproduzindo o estereótipo do “caipira”: o homem aparece com roupas velhas e
remendadas, dente cariado, chapéu de palha velho, cigarro de palha na orelha,
botina velha… A mulher, com trança, vestido de chita e pintura do rosto
exagerada.
Contudo
no Nordeste, que conserva traços fortes da cultura indígena, essa festa
felizmente conseguiu cidadania, sem sofrer representação preconceituosa. Não há
“roupas caipiras”, mas vestidos bem confeccionados e de bom gosto. É a festa
mais importante em vários estados, atraindo turistas, como se vê em Caruaru, em
Pernambuco ou em Campina Grande, na Paraíba. Em todo o Nordeste, as férias
escolares do meio do ano foram antecipadas para junho, para que alunos e
professores organizem essas festas e delas participem. Até deputados e
senadores promovem um recesso branco para se fazerem presentes nessas
comemorações.
Nos
festejos juninos, a quadrilha, com o “casamento caipira”, é sempre presente.
Este último pode ser analisado como uma paródia do cerimonial católico, própria
do teatro popular colonial, na qual um padre bêbado tenta casar um noivo
ingênuo com uma noiva sirigaita e, após a cerimônia, o público é surpreendido
por um delegado que leva presos os convidados bêbados. Contra esse tipo de
representação jocosa, a Igreja católica do século XVIII foi muito severa,
proibindo encenações que pudessem depor contra a instituição (DEL PRIORE, 1994,
p. 91-104). Entretanto a sátira contra o clero perdurou por todo o século XIX,
como relata John Lucook, comerciante inglês que esteve no Brasil entre os anos
de 1808 e 1818 e pôde assistir a peças teatrais nas quais os clérigos eram
ridicularizados (LUCCOCK, 1975, p. 61).
Pode-se
também ver aí uma sátira contra a nobreza, deposta com a República. A
quadrilha, baile das festas da corte imperial do Rio de Janeiro, foi parodiada,
sendo mantidas, inclusive, palavras francesas como en avant e en arrière
(CASCUDO, 1988, p. 646).
As
músicas da quadrilha não eram evidentemente as dos bailes da corte imperial, e
sim das regiões interioranas, que elaboraram melodias regionais com certa
influência indígena, como as músicas do Nordeste que tiveram a contribuição da
cultura do povo Kariri, entre as quais o baião, o forró e o xaxado (PREZIA;
JOSIVAN, 2006, p. 218). No Sudeste, as músicas “caipiras” ou sertanejas foram
influenciadas pela tradição tupi-guarani, sendo mais chorosas e lentas (PREZIA;
JOSIVAN, 2006, p. 180). No entanto, hoje predominam as músicas nordestinas, que
se tornaram típicas, sendo identificadas como “músicas de quadrilha”.
Se na
festa junina o casamento é geralmente visto como paródia, em algumas regiões do
interior o casamento das festas juninas era encarado de forma mais séria, como
uma espécie de contrato provisório, já que a presença do padre católico não era
constante. Falava-se então de “casamento na fogueira”. Artur Neiva e Belizário
Pena narram esse tipo de casamento nos “gerais” do Piauí e Goiás, que ocorria
na noite de São João. Era realizado “junto à fogueira, em presença dos pais dos
noivos, padrinhos, pessoas da família e convidados”, e “considerado válido para
todos os efeitos” (CASCUDO, 1988, p. 407).
Havia
também o compadrio de fogueira, quando alguém se tornava “padrinho” de uma
criança, como forma de comprometê-lo num futuro batizado, a ser realizado posteriormente
pelo padre, na cidade.
Conclusão
Por tudo
que se apresentou, vê-se que, diante da sociedade urbana, tradições de raiz,
como as festas juninas, vão perdendo elementos importantes ou até
desaparecendo, num empobrecimento da cultura nacional. Hoje essas festas estão
restritas às escolas e paróquias católicas, com certa descaracterização, a
ponto de nelas encontrar-se até “cachorro quente”. Por isso, é importante
conhecer esse passado cultural, para que essa festa se realize de forma
conveniente, resgatando a manifestação folclórica e procurando entender as
contribuições das culturas nativas. Fica aqui também o recado para o agente de
pastoral estar atento ao catolicismo popular, para que possa compreender esse
universo religioso mestiço e não se excluam essas manifestações como elementos
nocivos ou atrasados. É o “Brasil profundo” que se esconde no interior de muita
gente.
__________
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Benedito Prezia(*)
Benedito Prezia é doutor em Antropologia pela PUC-SP, pesquisador em História Indígena e autor de História da resistência indígena, 500 anos de luta (Expressão Popular, 2017), entre outras publicações. Desde 1983 atua junto aos povos indígenas e atualmente coordena o Programa Pindorama para indígenas universitários na PUC-SP. Foi professor de Religiões Indígenas nas Faculdades Integradas Claretianas (São Paulo) e de Fenômeno Religioso no Instituto de Teologia da Diocese de Santo André (SP).
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