domingo, 20 de junho de 2021

DOUTRINA. FILOSOFIA. MORAL

Um breve apontamento sobre o conceito de dignidade da pessoa humana


Sed dignitaten dicit principaliter retione formae
São Boaventura

 

Prof. André Marcelo M. Soares, Ph.D.* 

 

O conceito de dignidade é um dos mais relevantes para as reflexões ética, política e jurídica. Por esta razão, a sua definição filosófica é uma tarefa árdua. A dignidade não é algo que se aplica exclusivamente ao ser humano, mas, quando se fala em dignidade humana, é impossível deixar de lado o conceito de pessoa, que provoca uma variedade de questionamentos de ordem ontológica, antropológica e ética[1].

 

A expressão dignidade da pessoa é a combinação de dois substantivos, na qual a dignidade figura como termo valorativo aplicado a um sujeito que necessita se firmar como realidade ontológica (pessoa). Isto nos permite, de antemão, constatar que é possível refletir sobre o seu significado por dois caminhos: o ontológico e o ético. Através da via ontológica, pode-se conhecer uma realidade específica entre outras, que é a de ser pessoa. A via ética, por sua vez, permite pensar as razões alegadas para dizer que alguém é digno[2].

 

A origem etimológica da palavra pessoa encontra-se no termo grego prosôpon, que, longe de possuir um sentido ontológico, se referia à máscara que os atores utilizavam em suas representações teatrais. Apesar de Platão (cerca de 427-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.) aplicarem os conceitos de substância, natureza e essência, com seus respectivos matizes, ao homem, o pensamento grego desconhecia a realidade de ser pessoa. Ao longo dos anos, foi se desenvolvendo entre os gregos uma reflexão antropológica a partir de uma perspectiva cosmológica, segundo a qual o ser humano era compreendido como a realidade natural mais elevada[3]. Todavia, apesar de ser um animal racional, portador de logos e possuidor de uma alma intelectiva, não só vegetativa ou sensitiva como nos demais seres da natureza, nem os gregos e nem os romanos conseguiram perceber nele a realidade única, original, particular e concreta do ser pessoa.

 

É a perspectiva cosmológica grega que possibilitará a primeira abordagem da dignidade do homem, que, segundo Aristóteles, é mais evidente naqueles que desenvolvem de forma destacada a atividade intelectual própria da alma humana, como é o caso dos filósofos. Segundo as tradições platônica e aristotélica, a dignidade do homem seria proporcional a sua capacidade de pensar e conduzir a própria existência desde a razão.

 

No cristianismo, o conceito de pessoa teve um sentido teológico, por se aplicar primeiramente às pessoas divinas. A seguir, foi empregado para definir o ser humano, até então concebido simplesmente como homem[4]. Para o pensador franciscano Boaventura de Bagnoregio (1217-1274), era necessário ir além da definição do filósofo romano Boécio (480-524), para o qual a pessoa é “uma substância individual de natureza racional”[5]. De acordo com o Doctor Seraphicus, o conceito de relação parece definir com mais profundidade a pessoa, por se tratar de um elemento constitutivo essencial. Deste modo, a pessoa “define-se pela substância ou pela relação; se se define pela relação, a pessoa e a relação serão conceitos idênticos”[6]. Em outras palavras, na pessoa a relação não é simplesmente algo acidental, mas estrutural e, portanto, inerente a sua própria natureza[7].

 

A definição de Boécio, seguida por muitos outros filósofos, tem como núcleo o conceito aristotélico de ousia (ou substantia), utilizado fundamentalmente para definir as coisas naturais. Nesta concepção, a pessoa, tal como as demais coisas, é concebida como hypóstasis (ou suppositum), embora mais digna por ser dotada de razão. Para o Doctor Seraphicus, quando se trata das pessoas divinas, esta noção pode parecer estranha. Afinal, de forma alguma é possível interpretar as pessoas divinas como coisa. É por este motivo que ele utiliza o conceito de relação para referir-se, por analogia, à pessoa humana. O fato de o homem ser concebido como imago Dei significa que, além de ter sido criado à imagem e semelhança de Deus, está, desde a sua criação, relacionado com o seu criador.

 

Segundo Boaventura, “a pessoa é a expressão da dignidade e da nobreza da natureza racional. E esta nobreza não é uma coisa acidental, mas pertence à sua essência”[8]. Cada homem, em particular, foi criado por Deus não seguindo o modelo da natureza, mas unicamente o modelo da própria realidade divina[9]. É neste fato que repousa a dignidade humana.

 

A partir do século XVIII, sobretudo com a contribuição de Immanuel Kant (1724-1804), surgem novas perspectivas para fundamentar eticamente o conceito de dignidade. De acordo com Kant, a dignidade humana encontra-se na capacidade de autonomia, ou seja, no fato de ser o homem a única criatura capaz de se submeter livremente as leis morais que são reconhecidas como procedentes da razão prática[10]. Tal capacidade se deve ao fato do ser humano possuir, além de uma dimensão fenomênica, que o submete às leis físicas que regulam o universo e a ele mesmo, uma dimensão noumênica, que o torna um ser subjetivo, livre, constituído por uma interioridade e por uma consciência moral. Esta dimensão é a que lhe possibilita ser autônomo, isto é, um sujeito moral que reconhece o valor e a obrigatoriedade das normas que ele mesmo se impõe, sendo fiel ao imperativo categórico[11].

 

Para os pensadores da pós-modernidade, a dignidade humana nada tem a ver com os esquemas assinalados anteriormente. Nem as qualidades intelectuais (a razão), nem os pressupostos metafísicos (ontologia do ser humano) e nem a capacidade moral (autonomia) fundamentam a dignidade humana. Ela resultaria, portanto, de uma ação institucional segundo a qual determinadas sociedades, através do processo democrático, decidiriam de forma contingente e convencional (o único modo possível) o grau de sua utilidade ou eficácia para resolver conflitos sociais.

 

Segundo o neopragmatismo pós-moderno de Richard Rorty (1931-2007), os mecanismos da emotividade humana (especialmente a compaixão) explicam mais claramente como as abstrações racionalistas transformam em tendência social o reconhecimento de uma dignidade que converte em imoral o sofrimento desnecessário a quem se convencionou considerar como membro desta sociedade[12]. Os ingredientes básicos da perspectiva rortyana são: a contingência da dignidade humana, por um lado e o marco emotivista, onde se situa a raiz da defesa da dignidade, por outro.

 

Frente à racionalização do ser humano no pensamento grego clássico, à ontologização da pessoa na tradição cultural cristã e jusnaturalista e à autonomia do indivíduo na filosofia moderna germânica, o filósofo norte-americano Richard Rorty propõe um retorno ao pensamento de David Hume (1711-1776), segundo o qual os sentimentos e a utilidade social constituem o motor da ação moral e a base de qualquer direito humano[13].

 

Interpretando os diferentes modelos de dignidade, pode-se afirmar que o modelo grego clássico, o kantiano moderno e o neopragmático pós-moderno foram elaborados a partir de um tipo de reflexão denominada de fundamentação condicionada, considerando que a afirmação da dignidade humana depende do desenvolvimento e execução de determinadas qualidades intelectuais e morais da pessoa. No caso do neopragmatismo, os critérios escolhidos são os de utilidade social, conveniência e capacidade. Já a perspectiva ontológica, própria da tradição cristã e do jusnaturalismo, oferece uma fundamentação incondicionada, na qual a dignidade não depende de fatores externos ao ser humano, nem sequer do exercício de faculdades intelectuais ou morais, mais desenvolvidas nos adultos. Nesta perspectiva, a dignidade humana não está condicionada e não se sujeita às convenções jurídico-sociais.

 


* Filósofo, mestre e doutor em Teologia com pós-doutorado em Bioética pela PUC-Rio. É coordenador acadêmico e professor do curso de pós-graduação em Bioética da PUC-Rio, membro do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Instituto Nacional do Câncer (INCA – Ministério da Saúde), membro da Comissão de Bioética da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e membro da Equipe de Apoio da Seção Vida do Consejo Episcopal Latinoamericano (CELAM).

_____________________                                                                                              

[1] Cf. ADORNO, R. Bioética y dignidad de la persona. Madrid: Tecnos, 1998.

[2] Cf. WOJTILA, K. Metafisica della persona. Milano: Edizioni Bompiani Il Pensiero Occidentale, 2003; MOUNIER, E.  Il personalismo. Roma: Editrice AVE, 1999; VV.AA. Persona e personalismo. Aspetti filosofici e teologici. Padova: Gregoriana, 1992.

[3] Cf. FRAILE, G. Historia de la filosofia. Vol. I, Madrid: BAC, 1990, p. 370-381, 456, 464, 468-470, 487-504.

[4] Cf. JONES, D.A. The soul of the embryo: an enquiry into the status of the human embryo in the christian tradition. London/ New York: Continuum, 2004, p. 125-140.

[5] II Sent., d. 25, a. 2, q. 2 ad 4.

[6] MTr, q. 2, a. 2, n. 9. (V, 66s).

[7] Cf. MERINO, J.A. Historia de la filosofia franciscana. Madrid: BAC, 1993, p. 71.

[8] II Sent., d. 3, p. 1, a. 2, q. 2ad 1 (II, 107).

[9] Cf. RAPONI, S. Il tema dell’immagine-somiglianza nell’antropologia dei padri. Roma: Teresianum, 1981; RUIZ DE LA PEÑA, J.L. Immagine di Dio: antropologia teologica fondamentale. Roma: Borla, 1992; BÜHLER, P. Humain à l’image de Dieu. La théologie et lês sciences humaines face au problème de l’antropologie. Genève: Labor et Fides, 1989; ANDERSON, R. On being human. Essays in theological anthropology. Grand Rapids: Eerdmans, 1982.

[10] Cf. HIRSCHBERGER, J. Historia de la filosofia. Vol. II, Barcelona: Herder, 1956, p. 179-189.

[11] Cf. KANT, I. Crítica da razão prática. São Paulo: Martins fontes, 2002, p. 33-35; HIRSCHBERGER, J. Historia de la filosofia. Vol. II, Barcelona: Herder, 1956, p. 172-174; PASCAL, G. O pensamento de Kant. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 108-126.

[12] Cf. RORTY, R. Contingency, irony and solidarity. Cambridge: Cambridge University Press, 1989, p. 59; RORTY, R. Derechos humanos, racionalidad y sentimentalidad. In: SHUTE, S; HURLEY, S. De los derechos humanos. Madrid: Trotta, 1998, p. 117-136.

[13] Cf. CORTINA, A.; MARTÍNEZ, E. Ética. São Paulo: Loyola, 2005, p. 66-68.

 

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