AS RAÍZES
INDÍGENAS DAS FESTAS JUNINAS – PARTE I
Por Benedito Prezia (*)
Introdução
Poucos imaginam
que as festas juninas do Brasil receberam influência da cultura indígena, sobretudo
da cultura tupi, apesar de muitos elementos serem de tradição européia. Essa incorporação
se deu por meio da cultura mestiça e foi se moldando não só ao longo do período
colonial, como também em épocas mais recentes. Infelizmente, o desconhecimento das
tradições indígenas tem levado a população brasileira a ignorar esse passado, talvez
por preconceito e pela dificuldade em aceitar a existência de nossa “cultura misturada”.
Como a cultura predominante está eliminando muitas tradições, seria importante fazer
uma análise desses elementos ancestrais, para não se perder essa riqueza cultural.
Inicialmente, faremos um apanhado das tradições européias dessas festas, analisando
os elementos nativos, e finalizaremos com um olhar sobre as festas juninas atuais.
As
antigas comemorações de São João na Europa e no Brasil colonial
Para entendermos
as raízes indígenas das festas juninas, precisamos voltar às raízes portuguesas
das comemorações dos santos de junho – Santo Antônio, São João e São Pedro – e situá-los
no contexto rural. Essas festas já possuíam na Europa elementos do mundo agrário,
pois estavam ligadas à semeadura e à colheita.
Por isso,
não podemos buscar as figuras desses santos nos relatos dos evangelhos nem em suas
biografias eruditas, mas devemos ver como entraram no imaginário popular. À medida
que pesquisamos, descobrimos que muitos traços das devoções recuperam cultos antigos,
que sobreviveram nos povos recém-cristianizados da Europa.
A festa de
São João coincidia, na Europa, com o solstício de verão – o dia mais longo do ano
–, ocasião em que eram celebrados rituais agrícolas, pedindo boa colheita e agradecendo
as primícias do campo. Como observou Câmara Cascudo em um de seus estudos, era nesse
momento que “as populações do campo festejavam a proximidade das colheitas e faziam
sacrifícios para afastar os demônios da esterilidade, pestes dos cereais e estiagens”
(CASCUDO, 1988, p. 404). Na França, essa festividade estival é chamada de Feu de
Saint Jean (“Fogo de São João”), sendo celebrada com fogueiras e danças, tradição
que vem se perdendo a cada ano.
O fogo foi
elemento muito importante nos rituais de antigas culturas. Os antigos celtas celebravam
uma festa no dia 1º de maio para comemorar o início do verão. Nessa ocasião, eram
acesas grandes fogueiras, no meio das quais os druidas, seus sacerdotes, faziam
passar o gado pela brasa, para livrá-los de doenças (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1994,
p. 441). Talvez esse traço arcaico tenha se mantido na cultura lusitana, que guarda
um substrato dos antigos ocupantes da península Ibérica – godos e visigodos –, pois
havia o hábito de passar descalço pelas brasas. No Brasil, isso foi mantido pelos
“devotos do santo”, geralmente negros e mestiços, que desafiavam a lei natural passando
descalços no braseiro da fogueira de São João, como pude presenciar na minha infância,
no sul de Minas Gerais. Dessa forma se demonstrava a fé no santo, protetor do corpo
e do espírito.
No Brasil
colonial, as festas juninas tiveram grande aceitação nas missões jesuíticas e nas
vilas luso-brasileiras. O padre Fernão Cardim, no final do século XVI, escreveu
que, entre os Tupi do litoral, três festas celebram estes índios com alegria, aplauso
e gosto particular. A primeira são as fogueiras de São João, porque suas aldeias
ardem em fogos, e para saltarem as fogueiras não os estorva a roupa, ainda que algumas
vezes chamusquem o couro. A segunda é a festa de ramos […], a terceira, que mais
que todas festejam, é dia de cinza (CARDIM, 1978, p. 191).
Para descobrir
a figura do São João das festas juninas, não podemos buscar o João Batista dos evangelhos,
um personagem austero e rígido – como se vê nas pregações que fazia à beira do rio
Jordão –, cujas denúncias contra o concubinato do rei Herodes o levaram à prisão
e à morte. Temos, antes, de procurá-lo na Europa recém-cristianizada, sobretudo
na península Ibérica. Lá o precursor do Messias assumiu outro perfil, incorporando
certamente qualidades de algum herói mítico celta ou gótico e tornando-se “um deus
amável e dionisíaco, com farta alimentação, danças, músicas, bebidas e uma marcada
tendência sexual nas comemorações populares” (CASCUDO, 1988, p. 404). Isso se deve
às comemorações tradicionais dos cultos agrários, que ocorriam nesse período estival,
com o aquecimento do clima e com o aparecimento dos primeiros frutos. É possível
também que essa comemoração de verão levasse aos namoros, que podiam terminar em
encontros amorosos e na fecundidade matrimonial.
No Brasil,
a festa junina, como registra Mello Moraes Filho, tinha também o “banho de São João”.
Ocorria aos primeiros raios do sol, “porque depois as águas perderiam de sua virtude”
(MORAES FILHO, ca. 1900, p. 110). Esse banho “gozava de propriedades preservativas
e miraculosas” (idem, ibidem) e, certamente, levava a encontros casamenteiros.
No Pará foram
identificadas rezadeiras e cartomantes que “tiravam a sorte de São João”. A prática
consistia em encher um copo com água “na noite do dito santo e lançar no mesmo copo
um ovo quebrado, isto é, clara e gema, fazendo uma cruz, rezando um Pai-Nosso e
uma Ave-Maria ao dito santo, para que mostrasse o que havia de suceder a tal e qual
pessoa”, como se lê numa denúncia feita ao Santo Ofício na visitação realizada em
1769 (DEL PRIORE, 1994, p. 125).
Em outras
regiões, como em Itapira, interior de São Paulo, não há registro dessas ações mágicas
e João Batista assume uma postura mais séria. Foi tido como “padrinho de Jesus”,
segundo o depoimento de um morador, registrado por Carlos Rodrigues Brandão: “Padrinho
de Jesus é João Batista. Ele [Jesus] respeita João Batista. Ele é Deus, ele é nosso
Deus, mas respeita João Batista. Quem não respeita seu padrinho?” (BRANDÃO, 1986,
p. 182).
Não deixa
de ser curiosa sua representação iconográfica, em que aparece não como um jovem
dos cultos agrários nem de maneira mais formal, como nas imagens das igrejas, mas
como criança abraçada a um cordeiro, como se vê nas estampas erguidas no mastro
da festa junina tradicional. Valeria a pena pesquisar melhor essa representação.
As
celebrações de Santo Antônio e São Pedro
Outro santo
do ciclo junino é Santo Antônio, que chegou ao Brasil com os primeiros colonos portugueses,
tornando-se muito popular. Sua festa costuma ser preparada com uma trezena, isto
é, com encontros religiosos, que terminam no dia 13 de junho. Chamado “pai dos pobres”,
na sua festa é distribuído o pão bento, que as pessoas levam para casa, pedindo
que nunca falte o alimento.
É invocado
para encontrar não só objetos perdidos, como também o marido ideal. Por excelência,
trata-se de “santo casamenteiro”. Seria uma reminiscência dos cultos romanos ou
góticos? É mais uma dúvida a ser resolvida numa pesquisa sobre as religiões ibéricas.
Essa ligação
com a busca do amado explica por que, no Brasil, o Dia dos Namorados ocorre na véspera
de sua festa. Uma tradição portuguesa faz que as mulheres em busca de marido o amarrem
num poço ou na janela da casa até que o pretendente apareça.
A proximidade
com a festa de São João fez que Santo Antônio recebesse também a tradicional fogueira,
fogos de artifício e mastro.
Outra dimensão
pouco conhecida localizei num livro de rezas populares, em que se pede ao santo
que torne “invisível” quem o invoca e o livre de malefícios:
Meu glorioso
Santo Antônio, num caminho escuro caminho eu. Meus inimigos encontrarei, se tiverem
olhos não me verão; se tiverem boca, não falarão; se tiverem corda, não me amarrarão;
os braços dos meus inimigos para mim enfraquecerão; os corações dos meus inimigos
para mim brandos são, porque eu vivo amparado no hábito do meu glorioso Santo Antônio
(SALES, 2006, p. 54).
Esses pedidos
mostram influências da religiosidade indígena e, talvez, africana.
O terceiro
santo junino é São Pedro. Embora o calendário litúrgico o comemore juntamente com
São Paulo, este último não entrou nas comemorações populares.
Na devoção
popular brasileira, São Pedro foi identificado como o guardião do céu, aquele que
controla a entrada dos falecidos ao paraíso. A iconografia o representa com chaves
às mãos, numa alusão à passagem do evangelho em que Cristo diz que lhe dará as chaves
do céu. A farta literatura de cordel do Nordeste explora esse seu atributo, pelo
qual o santo disputa com o demônio as almas dos falecidos.
São Pedro
teve direito a comemoração semelhante às festas de São João, com fogueira e fogos
de artifício, e, por sua posição entre os santos, os fogos eram abundantes. Parece
que antigamente a comemoração pirotécnica era muito mais acentuada do que nos dias
atuais. É o que relatou o pastor estadunidense Daniel Kidder, quando de sua viagem
pelo interior de São Paulo, em 1855. Ao chegar a Campinas, no dia 28 de junho, foi
surpreendido pelos festejos:
Era a “véspera
de São Pedro”; e todo homem, que tinha um Pedro ligado a seu nome, sentia-se na
obrigação de acender uma imensa fogueira diante de sua porta e soltar uma porção
de foguetes, além de descarregar inúmeras pistolas [revólveres], mosquetes e morteiros.
[…] Os clarões e o barulho eram tais, que sem qualquer esforço de imaginação, ter-se-á
acreditado estar perto de alguma cidade sitiada, durante um violento bombardeio
(KIDDER; FLETCHER, 1941, v. 2, p. 107).
Em regiões
litorâneas, pelo fato de ter sido pescador, sua festa é muito celebrada por pescadores
com procissão de barcos, diferentemente das comemorações interioranas.
Por ser guardião
do paraíso, São Pedro é invocado para pedir esclarecimento de situações duvidosas,
como revela esta oração popular, cuja região de origem infelizmente não foi citada
pelo autor que a compilou:
Meu glorioso
Pedro, vós a Deus negastes três vezes antes do galo cantar; correstes e vos escondestes
até vos arrependerdes; sentastes num lazeiro de pedra e vos pusestes a chorar. Deus
mandou um anjo atrás de vós, dizendo: Pedro, Pedro, Pedro, a chave do céu é vossa.
Assim, meu glorioso senhor São Pedro, como estas palavras são santas e verdadeiras,
mostrai-me em sonho o que desejo ver em águas claras, campos verdes, casas caiadas
e cavalheiros bem trajados. Se não for verdade, mostrai-me águas turvas, campos
secos, casas velhas e cavalheiros mal trajados. Rezar um Pai-Nosso, uma Ave-Maria
e uma Salve-Rainha até o “nos mostrai” (SALES, 2006, p. 76).
Outros traços
característicos dessas festas são as bandeirinhas coloridas e o levantamento do
mastro. Este último remonta à cultura européia, com sua tradição de erguer mastros
comemorativos nas festas da família real. Foi o que ocorreu na Bahia em 1718, por
ocasião das celebrações pelo aniversário do filho mais velho do conde de Vila Verde,
quando se ergueu um mastro “pintado de branco e carmesim e coroado de uma grinalda
dourada” (DEL PRIORE, 1994, p. 33). Depois, passou-se a levantá-lo em festas religiosas,
como a de São Gonçalo, realizada pela Irmandade dos Pardos de Nossa Senhora do Livramento
(DEL PRIORE, 1994, p. 33-34).
Com o tempo,
essa tradição permaneceu apenas nas festas juninas, ocasião em que nos mastros eram
amarrados os frutos da terra e, sobretudo, espigas de milho. Em algumas regiões,
havia o hábito de queimar o mastro, guardando os carvões, que poderiam dar proteção
contra raios e trovões (DEL PRIORE, 1994, p. 33-34).
As festas
juninas foram as únicas que conservaram essa tradição. Sobre os mastros se colocam
estampas de pano dos três santos juninos. Em alguns lugares, havia também um mastro
para brincadeira, o chamado “pau de sebo”. Era besuntado de graxa e, na sua ponta,
se colocava uma nota de alto valor, prêmio para quem a alcançasse. Essa brincadeira
ainda presenciei em minha infância, no interior paulista.
(Continua
no próximo Domingo)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Benedito Prezia
(*) Benedito Prezia é doutor em Antropologia pela PUC-SP, pesquisador em História Indígena e autor de História da resistência indígena, 500 anos de luta (Expressão Popular, 2017), entre outras publicações. Desde 1983 atua junto aos povos indígenas e atualmente coordena o Programa Pindorama para indígenas universitários na PUC-SP. Foi professor de Religiões Indígenas nas Faculdades Integradas Claretianas (São Paulo) e de Fenômeno Religioso no Instituto de Teologia da Diocese de Santo André (SP).
https://www.vidapastoral.com.br/edicao/as-raizes-indigenas-das-festas-juninas/
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