Mc
8, 27-35
AMBIENTE
O texto que nos é hoje
proposto é um texto central no Evangelho segundo Marcos. Apresenta-nos os
últimos versículos da primeira parte (cf. Mc 8,27-30) e os primeiros versículos
da segunda parte (cf. Mc 8,31-35) deste Evangelho.
A primeira parte do Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 1,14-8,30) tem como objetivo
fundamental levar à descoberta de Jesus como o Messias que proclama o Reino de
Deus. Ao longo de um percurso que é mais catequético do que geográfico, os
leitores do Evangelho são convidados a acompanhar a revelação de Jesus, a
escutar as suas palavras e o seu anúncio, a fazerem-se discípulos que aderem à
sua proposta de salvação. Este percurso de descoberta do Messias que o
catequista Marcos nos propõe termina, em Mc 8,29-30, com a confissão messiânica
de Pedro, em Cesaréia de Filipe (que é, evidentemente, a confissão que se
espera de cada crente, depois de ter acompanhado o percurso de Jesus a par e
passo): “Tu és o Messias”.
Depois, vem a segunda parte do Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 8,31-16,8).
Nesta segunda parte, o objetivo do catequista Marcos é explicar que Jesus, além
de ser o Messias libertador, é também o “Filho de Deus”. No entanto, Jesus não
veio ao mundo para cumprir um destino de triunfos e de glórias humanas, mas
para oferecer a sua vida em dom de amor aos homens. Ponto alto desta
“catequese” é a afirmação do centurião romano junto da cruz (que Marcos
convida, implicitamente, os seus cristãos a repetir): “realmente este homem era
o Filho de Deus” (Mc 15,39).
Cesaréia de Filipe – o quadro geográfico onde o Evangelho de hoje nos coloca – era uma cidade situada no Norte da Galileia, perto das nascentes do rio Jordão (na zona da atual Bânias). Tinha sido construída por Herodes Filipe (filho de Herodes o Grande) no ano 2 ou 3 a.C., em honra do imperador Augusto.
MENSAGEM
O nosso texto apresenta,
portanto, duas partes bem distintas. Na primeira, Pedro dá voz à comunidade dos
discípulos e constata que Jesus é o Messias libertador que Israel esperava; na
segunda, Jesus explica aos discípulos que a sua missão messiânica deve ser entendida
à luz da cruz (isto é, como dom da vida aos homens, por amor).
A primeira parte do nosso texto (vers. 27-30) começa com Jesus a pôr uma dupla
questão aos discípulos: o que é que as pessoas dizem d’Ele e o que é que os
próprios discípulos pensam d’Ele?
A opinião dos “homens” vê Jesus em continuidade com o passado (“João Batista”,
“Elias”, ou “algum dos profetas”). Não captam a condição única de Jesus, a sua
novidade, a sua originalidade. Reconhecem apenas que Jesus é um homem convocado
por Deus e enviado ao mundo com uma missão – como os profetas do Antigo
Testamento… Mas não vão além disso. Na perspectiva dos “homens”, Jesus é apenas
um homem bom, justo, generoso, que escutou os apelos de Deus e que Se esforçou
por ser um sinal vivo de Deus, como tantos outros homens antes d’Ele (vers.
28). É muito, mas não é o suficiente: significa que os “homens” não entenderam
a novidade de Jesus, nem a profundidade do seu mistério.
A opinião dos discípulos acerca de Jesus vai muito além da opinião comum.
Pedro, porta-voz da comunidade dos discípulos, resume o sentir da comunidade do
Reino na expressão: “Tu és o Messias” (vers. 29). Dizer que Jesus é o “Messias”
(o Cristo) significa dizer que Ele é esse libertador que Israel esperava,
enviado por Deus para libertar o seu Povo e para lhe oferecer a salvação
definitiva.
A resposta de Pedro estava correta. No entanto, podia prestar-se a graves
equívocos, numa altura em que o título de Messias estava conotado com
esperanças político-nacionalistas. Por isso, os discípulos recebem ordens para
não falarem disso a ninguém. Era preciso clarificar, depurar e completar a
catequese sobre o Messias e a sua missão, para evitar perigosos equívocos. É
isso que Jesus vai fazer, logo de seguida.
Na segunda parte do nosso texto (vers. 31-35), há duas questões. A primeira
(vers. 31-33) é a explicação dada pelo próprio Jesus de que o seu messianismo
passa pela cruz; a segunda (vers. 34-35) é uma instrução sobre o significado e
as exigências de ser discípulo de Jesus.
Jesus começa, portanto, por anunciar que o seu caminho vai passar pelo
sofrimento e pela morte na cruz (vers. 31-33). Não é uma previsão arriscada:
depois do confronto de Jesus com os líderes judeus e depois que estes
rejeitaram de forma absoluta a proposta do Reino, é evidente que o judaísmo
medita a eliminação física de Jesus. Jesus tem consciência disso; no entanto,
não se demite do projeto do Reino e anuncia que pretende continuar a
apresentar, até ao fim, os planos do Pai.
Pedro não está de acordo com este final e opõe-se, decididamente, a que Jesus
caminhe em direção ao seu destino de cruz. A oposição de Pedro (e dos
discípulos, pois Pedro continua a ser o porta-voz da comunidade) significa que
a sua compreensão do mistério de Jesus ainda é muito imperfeita. Para ele, a missão
do “messias, Filho de Deus” é uma missão gloriosa e vencedora; e, na lógica de
Pedro – que é a lógica do mundo – a vitória não pode estar na cruz e no dom da
vida.
Jesus dirige-se a Pedro com alguma dureza, pois é preciso que os discípulos
corrijam a sua perspectiva de Jesus e do plano do Pai que Ele vem realizar. O
plano de Deus não passa por triunfos humanos, nem por esquemas de poder e de
domínio; mas o plano do Pai passa pelo dom da vida e pelo amor até às últimas
consequências (de que a cruz é a expressão mais radical). Ao pedir a Jesus que
não embarque nos projetos do Pai, Pedro está a repetir essas tentações que
Jesus experimentou no início do seu ministério (cf. Mc 1,13); por isso, Jesus
responde a Pedro: “Vai-te, Satanás”. As palavras de Pedro pretendem desviar
Jesus do cumprimento dos planos do Pai; e Jesus não está disposto a transigir
com qualquer proposta que O impeça de concretizar, com amor e fidelidade, os
projetos de Deus.
Depois de anunciar o seu destino (que será cumprido, em obediência ao plano do Pai, no dom da própria vida em favor dos homens), Jesus convida os seus discípulos a seguir um percurso semelhante… Quem quiser ser discípulo de Jesus, tem de “renunciar a si mesmo”, “tomar a cruz” e seguir Jesus no caminho do amor, da entrega e do dom da vida.
O que é que significa, exatamente, renunciar a si mesmo? Significa renunciar ao seu egoísmo e autossuficiência, para fazer da vida um dom a Deus e aos outros. O cristão não pode viver fechado em si próprio, preocupado apenas em concretizar os seus sonhos pessoais, os seus projetos de riqueza, de segurança, de bem estar, de domínio, de êxito, de triunfo… O cristão deve fazer da sua vida um dom generoso a Deus e aos irmãos. Só assim ele poderá ser discípulo de Jesus e integrar a comunidade do Reino.
O que é que significa “tomar a cruz” de Jesus e segui-l’O? A cruz é a expressão de um amor total, radical, que se dá até à morte. Significa a entrega da própria vida por amor. “Tomar a cruz” é ser capaz de gastar a vida – de forma total e completa – por amor a Deus e para que os irmãos sejam mais felizes.
No final desta instrução, Jesus explica aos discípulos as razões pelas quais eles devem abraçar a “lógica da cruz”. Convida-os a entender que oferecer a vida por amor não é perdê-la, mas ganhá-la. Quem é capaz de dar a vida a Deus e aos irmãos, não fracassou; mas ganhou a vida eterna, a vida verdadeira que Deus oferece a quem vive de acordo com as suas propostas (vers. 35).
ATUALIZAÇÃO
• Quem é Jesus? O que é que “os homens” dizem de Jesus? Muitos dos nossos conterrâneos veem em Jesus um homem bom, generoso, atento aos sofrimentos dos outros, que sonhou com um mundo diferente; outros veem em Jesus um admirável “mestre” de moral, que tinha uma proposta de vida “interessante”, mas que não conseguiu impor os seus valores; alguns veem em Jesus um admirável condutor de massas, que acendeu a esperança nos corações das multidões carentes e órfãs, mas que passou de moda quando as multidões deixaram de se interessar pelo fenómeno; outros, ainda, veem em Jesus um revolucionário, ingénuo e inconsequente, preocupado em construir uma sociedade mais justa e mais livre, que procurou promover os pobres e os marginais e que foi eliminado pelos poderosos, preocupados em manter o “status quo”. Estas visões apresentam Jesus como “um homem” – embora “um homem” excepcional, que marcou a história e deixou uma recordação imorredoira. Jesus foi apenas um “homem” que deixou a sua pegada na história, como tantos outros que a história absorveu e digeriu?
• “E vós, quem dizeis que Eu sou?” É uma pergunta que deve, de forma constante, ecoar nos nossos ouvidos e no nosso coração. Responder a esta questão não significa papaguear lições de catequese ou tratados de teologia, mas sim interrogar o nosso coração e tentar perceber qual é o lugar que Cristo ocupa na nossa existência… Responder a esta questão obriga-nos a pensar no significado que Cristo tem na nossa vida, na atenção que damos às suas propostas, na importância que os seus valores assumem nas nossas opções, no esforço que fazemos ou que não fazemos para o seguir… Quem é Cristo para mim? Ele é o Messias libertador, que o Pai enviou ao meu encontro com uma proposta de salvação e de vida plena?
• Frente a frente o Evangelho deste domingo coloca a lógica dos homens (Pedro) e a lógica de Deus (Jesus). A lógica dos homens aposta no poder, no domínio, no triunfo, no êxito; garante-nos que a vida só tem sentido se estivermos do lado dos vencedores, se tivermos dinheiro em abundância, se formos reconhecidos e incensados pelas multidões, se tivermos acesso às festas onde se reúne a alta sociedade, se tivermos lugar no conselho de administração da empresa. A lógica de Deus aposta na entrega da vida a Deus e aos irmãos; garante-nos que a vida só faz sentido se assumirmos os valores do Reino e vivermos no amor, na partilha, no serviço, na solidariedade, na humildade, na simplicidade. Na minha vida de cada dia, estas duas perspectivas confrontam-se, a par e passo… Qual é a minha escolha? Na minha perspectiva, qual destas duas propostas apresenta um caminho de felicidade seguro e duradouro?
• Jesus tornou-se um de nós para concretizar os planos do Pai e propor aos homens – através do amor, do serviço, do dom da vida – o caminho da salvação, da vida verdadeira. Neste texto (como, aliás, em muitos outros), fica claramente expressa a fidelidade radical de Jesus a esse projeto. Por isso, Ele não aceita que nada nem ninguém O afastem do caminho do dom da vida: dar ouvidos à lógica do mundo e esquecer os planos de Deus é, para Jesus, uma tentação diabólica que Ele rejeita duramente. Que significado e que lugar ocupam na minha vida os projetos de Deus? Esforço-me por descobrir a vontade de Deus a meu respeito e a respeito do mundo? Estou atento a esses “sinais dos tempos” através dos quais Deus me interpela? Sou capaz de acolher e de viver com fidelidade e radicalidade as propostas de Deus, mesmo quando elas são exigentes e vão contra os meus interesses e projetos pessoais?
• Quem são os verdadeiros discípulos de Jesus? Muitos de nós receberam uma catequese que insistia em ritos, em fórmulas, em práticas de piedade, em determinadas obrigações legais, mas que deixou para segundo plano o essencial: o seguimento de Jesus. A identidade cristã constrói-se à volta de Jesus e da sua proposta de vida. Que nenhum de nós tenha dúvidas: ser cristão é bem mais do que ser batizado, ter casado na igreja, organizar a festa do santo padroeiro da paróquia, ou dar-se bem com o padre… Ser cristão é, essencialmente, seguir Jesus no caminho do amor e do dom da vida. O cristão é aquele que faz de Jesus a referência fundamental à volta da qual constrói toda a sua existência; e é aquele que renuncia a si mesmo e que toma a mesma cruz de Jesus.
• O que é “renunciar a si mesmo”? É não deixar que o egoísmo, o orgulho, o comodismo, a autossuficiência dominem a vida. O seguidor de Jesus não vive fechado no seu cantinho, a olhar para si mesmo, indiferente aos dramas que se passam à sua volta, insensível às necessidades dos irmãos, alheado das lutas e reivindicações dos outros homens; mas vive para Deus e na solidariedade, na partilha e no serviço aos irmãos.
• O que é “tomar a cruz”? É amar até às últimas consequências, até à morte. O seguidor de Jesus é aquele que está disposto a dar a vida para que os seus irmãos sejam mais livres e mais felizes. Por isso, o cristão não tem medo de lutar contra a injustiça, a exploração, a miséria, o pecado, mesmo que isso signifique enfrentar a morte, a tortura, as represálias dos poderosos.
https://www.dehonianos.org/portal/24o-domingo-do-tempo-comum-ano-b/
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